Madrugada - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Madrugada - Conto de Sergio Faraco
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Madrugada - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"A rua estava deserta. Abriu o portão e entrou. Ajoelhando-se, deitou o filho no capacho. A criança se contraiu num ligeiro espasmo. Vendo-a sossegar, levantou-se e saiu."

A mulher terminou de banhar a criança, com água de uma lata aquecida ao fogareiro. De fraldas não dispunha, usou um pano que servia de toalha e que, na véspera, lavara umas quantas vezes. Vestiu-a com o macacãozinho azul e a mantilha rasgada, mas limpa, que pertencera aos outros filhos. A criança a olhava com olhos muito abertos, quieta, ela desviou os seus e fez um gesto brusco de cabeça, como a espantar um inseto teimoso ou um pensamento zumbidor.

Na mesma lata amornou a mamadeira, resto de leite engrossado com farinha, e abancada num cepo com a criança ao colo, à chama de uma vela que trocava as sombras de lugar, olhava outras sombras rasteiras, imóveis, os corpos adormecidos dos filhos maiores e do homem que viera morar ali e agora era o seu homem — o anterior, pai do caçula, um dia saíra para jogar mini-snooker e não voltara.

Madrugada.

Apagou a vela, arredou o compensado que era a porta e saiu, aconchegando o menininho ao peito. Andou por vielas malcheirosas, espremidas entre valas de detritos, atravessou a lezíria onde jazia uma ossada de cavalo e, com os pés enlameados, foi dar numa rua de cascalho, onde havia uma placa. Ali quedou à espera, na companhia de uma mulher idosa e de um jovem que, um pouco afastado, fumava.

A velha se aproximou para ver o bebê, mas estava muito escuro.

— Riquinho... Já mamou?

— Já — disse a mulher.

— Criança sempre tem fome — e olhando para o rapaz, que se afastara mais ainda e sentara-se nos calcanhares: — Olha a magreza dele.

Um cão latiu, outros cães latiram e ouviu-se ao longe, muito longe, algo que era ou podia ser um áspero mugido. Das valas e do lameirão vinham emanações de amoníaco e matéria orgânica decomposta.

— Os velhos não têm tanta fome assim.

— É — fez a mulher.

— Mas eu, que não sou boba, tomei um bom café. Vou longe, levo uma lembrancinha pro meu neto lá em Viamão. E tu?

— Eu?

— Aonde vais com esse jesusinho?

E ao erguer a mão para colher a mantilha, colheu o vazio: a mãe dera um passo atrás.

— Eu só queria olhar...

— Ele tá dormindo, pode acordar.

A velha andou um pouco, esfregando as mãos, e disse ao rapaz:

— E tu, filhote? Vais ao centro?

— Não enche.

Ela voltou-se para a mulher:

— Viu só? Num dia como hoje! Que mundo!

A outra nada disse, a velha calou-se. Em algum lugar uma porta bateu e alguém gritou. E sobre aqueles viventes sem nome e sem história, sobre os tetos de zinco, amianto e papelão, sobre os escoadouros mefíticos, sobre a lezíria e seus miasmas fibrilantes, sobre a miséria e todos os desesperos, sobre a escuridão, reinava a lua com seu cetro de prata.


* * *


Desembarcaram no abrigo da Praça Parobé e logo a mulher subia uma das ladeiras que conduzem ao largo defronte à Santa Casa. Escuro ainda, quase nulo o movimento de pedestres e automóveis. Uma vitrina, granida de excremento de mosca, ainda conservava as luzes acesas e a decoração das últimas semanas: arranjos de mercadorias entre globos policromos e flocos de algodão. Ao lado, no único bar aberto naquela redondeza, a garçonete, ao balcão, contava moedinhas, e numa mesa ao fundo cabeceava sobre o copo um Papai Noel embriagado. Sob o viaduto, dormiam mendigos enrolados em mantas pardas de sujeira. A tenda de revistas estava fechada e pelas suas paredes laterais, cobertas de cartazes, escorriam gotas do suor da noite.

A mulher passou por ali e desceu a avenida. Nas esquinas, parava, olhava e tornava a andar. Adiante, parou outra vez.

Um quase sorriso, era a rua onde morava a senhora tão bonita que, um dia antes, dera-lhe dinheiro e o macacãozinho azul.

Noite ainda.

Olhou em torno, vigilante, um olhar que compreendia as calçadas cinzentas, os gradeados negros de sereno, as janelas de postigos cegos, as portas ornadas de sinos e guirlandas, as extremosas e os ciprestes feericamente enlaçados de cordões de luzes e os pequenos jardins que arfavam ao derradeiro frescor da noite. A rua estava deserta. Abriu o portão e entrou. No alpendre, ajoelhando-se, deitou o filho no capacho, dobrando várias vezes a ponta da mantilha para que não viesse a rolar na laje dura. Descobriu-lhe o rosto e o beijou, murmurando palavras que alguém, se ouvisse, não compreenderia. A criança se contraiu num ligeiro espasmo, ela a ninou com um cicio e, vendo-a sossegar, levantou-se e saiu.

Não foi embora.

Permaneceu, à distância, oculta no portal de um edifício, olhos fitos no alpendre, do qual via apenas a fraca lâmpada pendurada, e dali só se moveu, aos saltos e como transtornada, para afugentar um gato que se aproximara do portão.

Ela esperava.

A lua, então, já resignara o reino vil que escondia as chagas da cidade, e grassavam já as labaredas que haveriam de mostrá-las, clareando o dia da cristandade. E ela esperava. E ela esperou. E depois de muito esperar, ao ver que se apagava a lâmpada do alpendre, ao ouvir que se abria a porta da casa e logo uma exclamação, sentou-se no degrau e seu corpo magro se sacudiu num soluço contido.

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