Com o negócio formalizado, prazos de parte a parte estipulados, escasseavam os pretextos e mesmo assim, naquele dia chuvoso, ele voltou à ruazinha suburbana. Passou em frente da casa e andou até a esquina, sem se importar com a chuva fina que não cessava. E fez mais uma passada e parou diante da casa. O que ia dizer? Que ia tirar a medida das cortinas?
Espirrou, tornou a espirrar, molhado, e os pingos agora eram mais grossos, pesados. Abriu o portão do jardim, entrou, ouvindo o tilintar do algeroz ao redor da chaminé, a água rolando nas calhas e descendo pelos condutores. Subiu os três degraus do alpendre e deteve-se no último. Ia dizer uma bobagem, claro, não havia motivo sério que pudesse justificar tantas visitas.
Queria rever algumas coisas, disse, desculpasse o incômodo, não ia demorar, e ela o fitou, indecisa, a voz difícil: Miguel viajara, só voltava no domingo à noite.
— Eu sei, mas não queria esperar. Não gostaria.
Ela o fitava ainda, olhos muito abertos, o senhor está encharcado, e então pediu que entrasse, por favor sentasse, e mandou a criada pendurar a gabardina no vestíbulo. Cruzou as pernas no sofá defronte e o que, exatamente, ele desejava ver de novo? No joelho dela havia uma pequena arranhadura. Ver de novo? Ah, sim, o pé-direito do quarto, a janela do banheiro.
— Não se importa de esperar um pouquinho?
O sorriso era incerto, vago. Porque a criada estava arrumando, um minutinho só, não, não tem importância, espero, e olhava as pernas dela, via os pontinhos dos pelos recém-raspados e detinha-se nos pés, os dedinhos finos e compridos despontando das sandálias. Ela descruzou as pernas, reuniu os joelhos, não aceitava um cafezinho? Está esfriando e ainda essa chuva...
Sim, a chuva, ele pensou, vendo-a levantar-se, e notou que num canto da sala havia um balde, e acima, no forro de lambris, uma goteira. Já observara que a cumeeira estava em mau estado e que, assim como o telhado, outras e muitas coisas necessitavam de reparos.
Era uma casinha comum, antiga. Via-se da rua, no telhado, a fosca claraboia, a chaminé de guarda-vento, e na empena uma trapeira de arejar o sótão. Tinha um embasamento de pedras nas paredes, correndo abaixo das janelas, e nestas o arco de cantaria com fecho e saimel. Alcançava-se a porta pelo alpendre com degraus, e atrás dela o vestíbulo, a sala, dois quartos e poucas dependências mais, todas pequeninhas. Não era a casa que procurava e no entanto retornara muitas vezes para olhar, marcara encontros, discutira preço, condições...
A chuva continuava. Nas vidraças, as gotas abriam translúcidos caminhos que se interrompiam na aspereza dos caixilhos. Ele olhava ao redor, via a cristaleira e sobre ela, na parede, o relógio-cuco, via um retrato amarelo no consolo da lareira, via uma estante com o Tesouro da Juventude e o Lello Universal, matérias antigas como a casa e, afinal, como os sentimentos que pareciam ressuscitar em seu coração.
Ela trouxe o café numa bandeja de azulejos, colocando-a na mesinha de centro. Enquanto ele se servia, abriu a cristaleira, pegou um maço de recortes de jornal. Por mim eu ficava nesta casa, gosto dela, do lugar, da rua.
— Estamos procurando outra maior — complementou, mostrando os anúncios.
Sentou-se novamente, tentando um sorriso que parecia sorrir para alguém ao lado dele, ou mais atrás, e ele notou que outra vez juntava os joelhos, tensa, preocupada. Não, não era essa a atmosfera que sonhara, não era nada disso. E agora a sensação de que ia espirrar, e não espirrava, só um frêmito e então agarrou os cotovelos com os braços cruzados, tinha frio.
— O senhor vai se resfriar — ela disse.
— E você insiste em me chamar de senhor — conseguiu dizer, num arranco.
Ela ruborizou, pôs-se a ler ou a fingir que lia os recortes presos por um clipe, as longas pestanas semicerradas, o peito subindo e descendo, as narinas se abrindo de leve. Entardecia. Nalgum lugar da casa uma porta bateu. Ouviu depois um bater de asas, talvez um pombo que vinha se abrigar no fuste da chaminé, ou seria que, do fuste, partia esse pombo em busca de outro abrigo. Estariam sozinhos? Ah, se pudesse entardecer ali com ela, a roda do tempo girando para trás ou mesmo parando, emperrada pela umidade daquele dia chuvoso, e ver esse dia morrer nos vidros embaciados, e ouvir a chuva no algeroz e tomar café com sonhos e jogar uma canastra até dois mil, que bom seria o amor num dia assim, tão especial, e o serão depois e os corpos lassos, a lareira consumindo cheirosos nós de pinho e longas achas de acácia, a claridade rubra das móveis labaredas e mais o vinho tinto e um velho bolero do Trio Los Panchos, o batom, não, batom não, por que o batom?
Viu novamente o retrato na lareira e levantou-se, tomou-o.
— Miguel?
Ela não respondeu, mas devia ser Miguel, o jovem Miguel, no tempo em que, como Miguel, ele também era jovem e amava perdidamente uma mulher, e havia chaminés de guarda-vento, arcos de cantaria, trapeiras, cucos, claraboias, e havia boleros e um tesouro, a juventude, e o mundo não ia além do que sabiam, no Porto, o vetusto Lello e seu irmão — era como se fosse noutro século! —, um tempo que estava morto e que podia ressuscitar, claro, que ressuscitava, mas como um detrito à deriva no rio de Heráclito, singrando a cada instante novas águas, novos rumos, outras profundidades e com diferentes gradações de vento. Ressuscitava sim, mas para morrer e continuar morrendo em cada ressurreição.
— Pode me chamar como quiser, não faz diferença — disse. — A não ser que... qualquer dia... Ela meneou a cabeça, lentamente.
— Está bem — tornou ele, pondo o retrato no lugar. — Vou embora.
Ela ergueu-se também. Trouxe a gabardina, levou-o até a porta, estendeu a mão. Ele a tomou e num impulso que a si mesmo surpreendeu, que era seu e ao mesmo tempo parecia ser de outro, ou de muitos outros, de todos os homens que, como ele, tinham amado no tempo do Trio Los Panchos, puxou-a com força e a beijou na boca. Ela ficou parada no alpendre, vendo-o descer os três degraus, abrir o portão, erguer a gola do capote para proteger-se da chuva fria. Mas quando ele parou adiante e olhou para trás, ela não estava mais ali.