Conto do Inverno - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Conto do Inverno - Conto de Sergio Faraco
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Conto do Inverno - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 7 set. 2024
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"Entrou em casa num passo de general, com sua falsa espada paraguaia. A mulher o esperava na calçada, com o bebê enrolado numa manta."

Tarde da noite, o escritor foi despertado por ruídos incomuns à frente da pequena casa onde morava só. Da janela, viu um velho caminhão estacionado junto ao poste de luz, era dali que vinham batidas de porta, conversas, e ele ouviu também o choro de um bebê. O capô estava erguido e dois homens examinavam o motor com uma lanterna. Vestiu uma japona e foi até o alpendre perguntar o que havia.

— Queimou a bobina — disse um dos homens.

O escritor pulou a pequena grade que separava o jardim da rua. Ao aproximar-se, notou que o outro, o que segurava a lanterna, era um menino.

— Se é bobina não tem jeito.

— Pois é, vamos passar a noite aqui.

— De onde vocês vêm?

— Santa Rosa.

— Mudança? — quis saber o escritor, examinando a paupérrima mobília amontoada na carroceria. O homem o olhou com pouca simpatia.

— Dá pra ver, não é? E essa merda vem pifar logo agora, na chegada.

— Sorte sua. Na estrada seria pior.

O homem tornou a fitá-lo, mas não disse nada, e começou a colocar no lugar os cabos de velas que estivera a testar. O escritor olhava para a carga e via entre os móveis um lençol, que se mantinha esticado pelas pontas presas.

— Tem gente aí?

— A dona da mudança. Por quê?

— Ouvi um chorinho.

— Ah, ouviu um chorinho? Nós também ouvimos.

— Bah, nesse frio...

— Qual é o problema? — e fechou o capô com um estrondo que fez estremecer a cabina.

— Se vão passar a noite no caminhão, o senhor e seu ajudante podiam trocar de lugar com ela. O homem limpava as mãos com um pano sujo e, ao responder, olhava para o menino:

— Não acredito. O caminhão é meu e ele quer que eu durma na carroceria.

— O guri, quem sabe...

— Ele é meu filho!

Entrou na cabina, batendo a porta. Esperou que o menino subisse pelo outro lado e abriu uma fresta do vidro.

— O senhor pode conseguir uma bobina nessa hora da noite? Não, não pode. Então não fique aí enchendo o saco.

"Ele vai dormir", pensou o escritor, "como consegue?" De volta ao quarto, tirou a japona e deitou-se. Ainda que se cobrisse com dois cobertores, tiritava de frio. Pôde cochilar, decerto, ou só chegou, talvez, àquela consciência difusa que é o umbral do sono, mas estremeceu e sentou-se na cama ao ouvir novamente o choro do bebê.

Levantou-se, protegeu-se com o mesmo agasalho. Antes de sair, pegou na parede da sala uma espada enferrujada que adquirira num belchior, supostamente arrebatada de um oficial paraguaio na guerra contra López.

Pulou outra vez a grade do jardim e bateu com a espada na carroceria do caminhão. Não via ninguém, só os móveis e a alvura da barraca improvisada.

— Como está o bebê? — perguntou, alto.

Uma sombra moveu-se sob o lençol e a lâmpada do poste revelou o rosto ainda jovem de uma mulher, que se aproximou de joelhos.

— O cara de novo — era a voz do menino, na cabina.

— Puta que o pariu — era a voz do homem.

— Como está o bebê? — ele insistiu.

— Com febre, mas é pouca — disse a mulher.

— A senhora não pode dormir ao relento com uma criança que tem febre. Para onde vai sua mudança?

Antes que ela respondesse, o dono do caminhão saltou da cabina. No mesmo instante, viu a espada. Deteve-se, hesitante, por fim resmungou:

— Olhe aqui, amigo, fiz uma viagem de quatorze horas, estou no bagaço. Se não leva a mal...

— Eu levo a mal.

O homem abriu os braços e retornou à cabina, fechando a porta com novo estrondo. "O cara é louco", disse ao menino. O escritor tocou na mão da mulher, ainda ajoelhada à guarda da carroceria.

— Combine com ele a entrega da mudança, e enquanto isso tiro o carro da garagem. Vou levar a senhora, está bem?

— Está — disse ela. — Muito obrigada.

Entrou em casa num passo de general, com sua falsa espada paraguaia. Minutos depois estava de volta, com o carro. A mulher o esperava na calçada, com o bebê enrolado numa manta. Trazia também uma sacola.

— Onde vamos? — perguntou o escritor, ao dar a partida.

— Não é longe — e indicou um morro a poucos quilômetros dali.

— Esse morro é um labirinto de ruelas. A senhora conhece bem?

— Mais ou menos. Meu marido comprou uma casinha lá. É perto de onde mora minha cunhada.

— Por que seu marido não veio?

— Ele veio antes, eu fiquei pra trazer a mudança.

O bebê estava inquieto. A mulher procurou algo na sacola e não encontrou.

— Quer que acenda a luz?

E o fez. Ela ergueu a sacola para ver melhor e ele sentiu o cheiro de suas axilas. O bebê recusou a chupeta e continuou a protestar.

— É garganta?

— Tá gripadinho, não é nada. Acho que esse choro é de fome. O senhor tem horas?

— Três e meia.

— Passou da hora dele.

Viu a mulher despir e oferecer à criança um formoso seio, e constatou que uma ponta de desejo se insinuava no desprendimento do general paraguaio. Mas não apagou a luz. Na última sinaleira antes do acesso ao morro, olhou novamente, dizendo-se que o fazia para conferir se o seio realmente era bem-feito. Era.

— Bonito o seu seio.

— Obrigada.

"Canalha", disse consigo, "tentando aproveitar-se da situação". E apagou a luz.

No morro, levou algum tempo para achar a rua. Grande parte daquelas encostas já era favela, outro tanto puro mato, atravessado por ruas estreitas e esburacadas, flanqueadas de valetas enormes por onde corriam as águas que vinham do topo. Num desses aclives, a mulher avisou:

— É aqui.

— Aqui onde? — perguntou o escritor, que só via o arvoredo ao redor.

— Nessa subida.

Olhou morro acima e os fachos de luz do automóvel davam-lhe a impressão ilusória de que estava à beira de um abismo.

Havia mais buracos e pedras atravessadas no caminho.

— Não sei se consigo subir.

— Não precisa, é perto.

Tornou a ligar a luz interna. O bebê estava enrolado, com o rosto coberto, mas o seio da mulher continuava exposto, com seu mamilo arroxeado e úmido. O escritor percebeu que ela estava fazendo aquilo por gosto.

— Vista-se, está muito frio.

Num gesto que lhe pareceu quase infantil, ela fez que não com a cabeça. Por momentos, o escritor permaneceu imóvel, mãos ao volante, como a esquadrinhar o falso abismo da ladeira. Depois voltou-se, passou a mão nos cabelos dela, no pescoço, no colo. Depois ainda, inclinando-se, tomou o seio, ergueu-o delicadamente e o beijou. Mas logo se afastou. Desembarcou, contornou o carro e abriu a outra porta.

— Obrigada — disse ela, descendo, e antes de ir-se ofereceu-lhe a mão. — O senhor é um homem bom.

Tinha certeza de que aquela noite gelada poderia terminar com outra temperatura, mas assim estava melhor, era uma atitude mais elegante, mais nobre, de acordo, afinal, com o tempo em que os homens usavam espadas para defender suas damas. "Boa história", pensou, contente, enquanto manobrava para retornar e via a mulher subindo laboriosamente a rampa. Meu winter's tale, disse em voz alta. E logo um pensamento desagradável: talvez tivesse desconfiado, desde o início, de que aquilo era um conto. Nesse caso, era quase certo que estivera a representar. Era espantoso como os escritores, às vezes, podiam ser interesseiros, e no fundo, bem no fundo, tão ou mais cruéis do que um dono de caminhão como o que conhecera naquela madrugada.

— Que coisa — murmurou.

Embora menos alegre, compreendeu que tinha encontrado também o fim da história.

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