Para Homero Magajevski
— Bola quatro ao meio — disse o velho.
Um homem entrava no bar e parou, ficou olhando. A bola bateu no bico da caçapa, não caiu e o velho se queixou:
— Não é meu dia.
O recém-chegado sentou-se a uma mesinha de canto e chamou o garçom. Era moço ainda, moreno-claro, traços indiáticos. Vestia calça de brim azul, tênis e um colete preto sobre a camisa branca, arremangada. Trazia a barba por fazer e presos os longos cabelos pretos numa fita que, desde muitas luas, não gozava dos benefícios da água.
O garçom trouxe a bebida, o homem observava o jogo, em que se enfrentavam um mulato retaco e o velho de tez azeitonada que perdera a bola quatro. O mulato dava vantagem e vencia. Era bom jogador, ao passo que o velho, sobre aparentar nervosismo, era aquilo que, nas rodas de sinuca, chamam pangaré.
A certa altura, qualquer aficionado teria percebido que o mulato, deliberadamente, começou a jogar mal. Derrotado, propôs dobrar a parada. E logo tornou a ganhar. Teria percebido também, pelo diálogo dos olhos, que três ou quatro indivíduos à volta da mesa eram comparsas do ganhador.
Mais de hora se passava quando o velho, errando uma bola seis que o outro lhe facilitara, desanimou e sentou-se, cabisbaixo, taco entre os joelhos. O mulato, quase irritado com tanta ruindade, matou a bola cor-de-rosa com um tiro seco ao meio e fechou a partida com duas pretas na mesma caçapa, ao fundo.
— Venha — exigiu, fazendo sinal com os dedos.
— Tá na caçapa.
— Não tá, não. Venha.
O homem do rabo-de-cavalo olhava placidamente para o velho, decerto também vira que nenhuma cédula fora colocada na caçapa, como até então vinham fazendo e é o que se impõe num jogo a valer. A aposta, ainda que dobrada, era irrisória, mas o velho meneava a cabeça e não dizia nada. O mulato agarrou-o pelo braço, sacudindo-o, e a resposta veio num fio de voz:
— Perdi tudo...
— Até a vergonha — rosnou o mulato. E aplicou-lhe um joelhaço na coxa.
— Calma, Gorila — disse o dono do bar, atrás do balcão.
O velho, mancando, foi guardar o taco na taqueira, e o garçom, que ouvira a conversa, foi atrás.
— A despesa, amizade.
— Amanhã eu...
— Amanhã? Tá sonhando? Amanhã é pó de traque — e mostrou-lhe um papel com uns rabiscos.
Antes que o velho dissesse qualquer coisa, o homem do rabo-de-cavalo estalou os dedos e indicou o próprio peito.
— Deus é grande — disse o garçom —, o prejuízo mudou de bolso.
O velho olhou em torno, como querendo identificar seu benfeitor, e rapidamente se retirou. Gorila e seus amigos se olharam.
— Bonito gesto — disse Gorila, arrastando uma cadeira para a mesa do desconhecido. — Me acompanha numa cervejinha?
— Não bebo.
O mulato pegou o copo e provou:
— Arre! Guaraná! É promessa?
— Questão de gosto.
O garçom esperava. O homem desembolsou uma carteira estofada, que todos viram, mas ao abri-la protegeu-a com o corpo. Pagou a conta do velho e o guaraná.
— Valeu, comandante — disse o garçom.
— Traz uma, Alemão — disse Gorila. — Tô simpatizando contigo, cabeludo. Não vai me dizer que também faz rolar uma bolinha...
— Às vezes.
— Olha aí, gente, o cabeludo diz que rola uma bolinha às vezes. A modéstia dele! Garanto que é um campeão! A parceria achou graça.
— Dos bons, quem tu já viu jogar? O Boneco? O Tuzinho? — tornou, obtendo como resposta um gesto vago. — Confessa, cabeludo, tu é do ramo — e deu-lhe um tapinha nas costas.
O homem retesou-se, o mulato não percebeu e continuou:
— Já te vi em algum lugar. No Check-Point? No Julius?
— Pode ser — disse o outro, levantando-se.
— Ué, já vai? — e o mulato abriu os braços, como condoído. — E vai assim, sem fazer pra galera uma demonstração da tua catega?
— Uma partida só eu posso jogar, se faz questão.
— Uma só? Que egoísmo, cabeludo! Vá lá, uma só, pra refrescar o saco — e foi colocar as bolas em seus pontos. O homem escolheu um taco na taqueira. Antes de sortearem a saída, Gorila espalmou a mão no pano.
— Vale uma cervejinha? Pra ter graça.
— Pra ter graça, uma cervejinha é pouco.
— Ora, ora, ora — riu-se Gorila, e com um gesto de quem se rende estipulou um valor maior. — Tá bom assim?
— Mixaria.
O sorriso apagou-se no rosto do mulato e entre ele e os comparsas houve uma troca de olhares que, por certo, valia muitas frases.
— Quanto te agrada?
O outro quintuplicou a aposta e repetiu: "Pra ter graça".
— Numa partida só? Que é isso, cabeludo? Olha que eu te conheço, eu sinto que te conheço! E sentou-se. Encostado na mesa, o homem o olhava, impassível.
— Olha o índio tripudiando — disse um dos comparsas.
— Eu conheço esse cara... Porra, cabeludo, eu te conheço! O homem pôs-se a taquear sem direção, contra as tabelas.
— Alguém mais quer jogar? Uma partida só e dou sete pontos.
— Pra mim também? — quis saber o Gorila, num tom de quem se exclui.
— Não. Pra ti... te dou dez.
— O índio é galo — disse um baixinho de boné virado, que bebia debruçado no balcão. Gorila levantou-se, pálido.
— Olha aqui, figurinha...
— Devagar, Gorila — advertiu o dono do bar, com impaciência.
— Devagar? O cara tá querendo me humilhar!
— Tá com medo, Gorila? — de novo o baixinho.
— Medo? Eu? Não viram o que eu fiz com aquele velho de merda, que também cantou de galo? Saiu depenado. Eu tenho história, tá sabendo? Arruma as bolas!
— Arruma tu — disse o homem.
Houve um momento de indecisão, mas o garçom, solicitamente, fez com que as bolas tornassem aos seus pontos. Sorteada a saída, esta tocou para o mulato. Ambos colocaram as cédulas na caçapa do meio e as do Gorila, amarrotadas, eram aquelas que ganhara do velho e muitas outras que teve de juntar.
— Mas que te conheço, te conheço — resmungou, enquanto passava giz no taco. — Como é teu nome?
— Nome não vale ponto — disse o outro, sem olhá-lo.
— Essa eu quero ver — disse o dono do bar.
Gorila deu a saída, deixando a bola vermelha encostada na tabela oposta, ao fundo, e a bola branca quase atrás da sete. A vermelha não estava descoberta e ouviu-se um zunzum quando o homem, ao invés de optar por nova saída, cantou sua jogada:
— Bola seis ao meio.
A bola cor-de-rosa caiu limpa na caçapa onde estava o dinheiro, e a branca, seguindo em frente, roçou na tabela lateral e, passando por trás da amarela, foi repicar na vermelha, desencostando-a da tabela do fundo.
— Puta que o pariu! — murmurou o baixinho.
— Bola ás ao fundo — disse o homem.
Encaçapou a vermelha, duas vezes a marrom, encaçapou a amarela, outras duas vezes a marrom, encaçapou a verde e logo a marrom mais duas vezes. Com uma puxeta levou a bola branca para o meio da mesa e ali, depois de um tiro seco na bola azul, preparava-se para jogá-la novamente quando Gorila praguejou. O homem ergueu-se, passou giz no taco, mas não disse nada. Deu outro tiro seco na bola azul, fazendo com que a branca retrocedesse e, dando na tabela, rodasse vagarosamente até a vizinhança da cor-de-rosa. Não era preciso jogá-la. Partida encerrada.
Gorila, que acompanhara as últimas manobras da bola branca sentado entre os amigos, encostou o taco na parede e ergueu-se.
— Tu não presta, cabeludo, teu lugar não é aqui. Aqui só tem gente honesta e tu é gatuno.
O outro fez que não ouviu e pegou o dinheiro na caçapa. Gorila se aproximava, com dois de seus parceiros.
— Ah, não vai levar.
Mais um passo e viu uma faca encostada em seu umbigo.
— Quieto — disse o homem. — Não quero te machucar.
— Ô Gorila, ele ganhou na lei do jogo — era o dono do bar.
O mulato respirava forte, olhando para a faca, os parceiros imóveis, atrás dele. Em meio ao inusitado silêncio do bar, ouviram-se pela primeira vez os ruídos da cozinha.
— Agora vou sair — disse o homem, calmamente. — Não quero furar ninguém, certo? Mas se tiver que furar, eu furo.
Recuou dois passos e, sem descuidar-se do mulato, encaminhou-se para a porta. Na calçada, guardou a faca sob o colete e olhou para trás. Não vinha ninguém e ele apurou o passo. Dobrou a esquina e, no meio da quadra, entrou numa lanchonete. O velho de tez azeitonada estava sentado ao balcão.
— Pai.
O velho voltou-se.
— E aí? Deu certo?
O homem meteu o maço de cédulas no bolso do velho.
— Hoje deu.
— Isso é o que vale. Vamos comer uma pizza.
— E aquele joelhaço?
— Tá doendo um pouco. Foda-se.