Tentara distrair-se com o cardápio sujo, depois com as mulheres que estavam na mesa ao lado, sem companhia masculina, mas se surpreendia espiando o outro. Era um tipo acobreado, ossudo, vagamente familiar, que bebia no balcão, em pé, e insistia em fitá-lo com um olhar irônico. Quem seria? Olhou uma vez mais, o homem saudou-o com o copo e veio sentar-se à mesa.
— Dá licença? Tudo bem, major?
Paulinho, Paulinho da Velha, e a lembrança não era propriamente gloriosa. Um remoto futebol numa prainha do Guaíba, um banho de rio, salsos, passarinhos... Mas eram apenas dois meninos, pensou, e aquelas coisas, de resto, aconteciam a todos os meninos.
— Tudo em ordem — respondeu, contrafeito. — E tu, por onde tens andado?
— Por aí, no desvio. Me paga um limãozinho.
Não era um pedido, mas fez questão de anuir como se fosse.
— Tô duro — tornou Paulinho.
— Sem trabalho?
— Trabalho? Meu ramo é outro, major.
Ia calar-se para abreviar o encontro e ouviu-se a perguntar:
— Dá pra saber qual?
— Por que não? Tenho interesse em divulgar: artes visuais — e riu. — Com este olho aqui eu identifico os solitários, os necessitados, os que já não se iludem com esse mundo cão, e com o outro descubro por onde eles querem receber uma demonstração de afeto.
— Veados?
— Palavra forte. Tô falando é de solidão. Sentiu que ruborizava e obrigou-se a sorrir.
— Não tens jeito mesmo.
— Eu? Eu me considero um benfeitor da humanidade — disse Paulinho. — E tu? Como é tua vidinha?
— Batalhando, como todo mundo.
— Conta própria?
— Tenho uma lancheria — mentiu.
— Por aqui?
— Na Azenha — mentiu de novo.
— Azenha, Azenha, garanto que te dá um bom dinheirinho, não é, seu patife? Anda, confessa.
— Vou vivendo — disse, sério.
Era muito azar. Vinha ao bar pegar mulher, adoçar, ainda que de mentirinha, o sensabor de suas noites solteiras, e topava com um azedo fantasma do passado, um tipo ignóbil, nojento. Procurava um pretexto para levantar-se, ir-se embora, Paulinho tocou no seu braço.
— Quando te vi fiquei te olhando, cismando... E aquela tarde no Guaíba? Lembra? Não pôde dissimular o assombro e a voz lhe saiu quase em falsete:
— A pelada?
— Não, depois.
— Mais ou menos.
— Lembra ou não lembra?
— Acho que sim — disse, baixo. — Faz tanto tempo — e passou-lhe pela cabeça a ideia absurda de sair correndo porta afora.
— Tuas pernas eram brancas.
— É.
— A turma te chamava Coxa de Palmito.
— Lembro.
— E lembra também quem foi por cima? Não respondeu.
— Fui eu — disse Paulinho, segurando seu joelho.
Olhava para o fundo do copo, tentando inutilmente decifrar uma figura que o vidro com defeito desenhara. Muito à vontade, o outro levou a mão e apalpou-lhe o sexo.
— Gostou de te lembrar, hein, safado? Queria dizer não e o corpo dizia sim.
— Tenho uma peça no outro lado da quadra — sugeriu Paulinho. — Entrada independente.
A localização era exata, as condições de acesso um artifício para encorajá-lo. Sórdida espelunca, espremida entre um sobrado em ruínas e uma construção inacabada, o porteiro os deixou passar, mas reteve um documento do visitante como penhor de uma gorjeta na saída.
Subiram.
Roupa suja pendendo de caixotes, manchas de gordura no chão, garrafas vazias, uma bacia enferrujada, pó sobre pó e uma faca espetada num banco de três pernas, isso foi o que viu, de relance, no quarto de Paulinho. E viu depois, na parede, cartazes de mulheres e o desenho rudimentar de um pênis atropelando nádegas sem corpo.
— Apaga a luz — pediu.
— Tá com vergonha?
Quis sorrir. Quis ser natural, dizendo consigo que a história dos homens não estava começando e tampouco terminando na cama de Paulinho da Velha, mas a ansiedade nada consentia senão mais carne para seus mil dentes.
— Não sei o que eu tenho — murmurou, deixando-se abraçar.
— Eu sei — disse Paulinho.
Fechou os olhos. Lentamente, hesitando, procurou o sexo do parceiro. Por um tempo vago o conservou nas mãos frias e agora já sentia no peito, crescendo, uma cálida emoção, uma fisgada de desejo e medo, uma mistura de dor e de triunfo. Paulinho virou-lhe o corpo com um safanão, mas o momento era grande demais para se importar com a grosseria. Tinha novamente doze anos, queria fazer muitos agrados naquele guri moreno, cara de mau e de cigano, que no futebol lhe dera umas patadas. Estava nu, deitadinho entre as moitas, na areia fina que moldava seu corpo e engolia, com boca de maciez e de frescor, seu pênis duro de menino. E como era bom. A prainha silenciosa, os salsos molhados, debruçados no rio, e lá vinha a passarada, asas trepidantes, ligeiras, que passavam dando um susto e calores no coração. Era bom e agora ele voava também, como os passarinhos, voava, subia, subia mais e mais, lá em cima fazia um arco e agora começava a cair, cair cada vez mais, como se faltasse o chão e ia caindo, desesperadamente ia caindo e então abandonou-se à queda e sentiu o ventre úmido e logo um torpor.
— Gostou, confessa — disse Paulinho, levantando-se.
Agora o via curvado na bacia, a lavar-se, o dorso encrespado de costelas, o tufo de pelos entre as nádegas, as pernas magriças, arqueadas, a panturrilha embolotada. Como responder, se o ardor de repente se esvaía? Agora não sentia mais nada e tudo aquilo que chegara a possuí-lo com fúria convertia-se numa sucessão de engulhos.
— Não diz nada? Ergueu-se.
— Não tenho dinheiro — disse. Paulinho cuspiu no chão com raiva.
— Por acaso te pedi, seu puto? Vai embora, some!
Quis reagir, dizer ou fazer alguma coisa forte, bem marcante, mas não achava o que servisse e para onde olhasse via-se a si mesmo, num espelho ubíquo e insolente, como um homem pequeno, frágil, doente. Procurou a roupa. Comandava os olhos para não ver a cama, os caixotes, a faca no banco, suspendia a respiração para não sentir cheiros que lhe insultavam o nariz.
— Anda — gritou Paulinho, ameaçando-o com o punho.
Tropeçou num caixote e por momentos seus olhos pousaram na faca. O outro se interpôs de um salto.
— Não banca o machinho, Coxa de Palmito.
Deixou o quarto. Na portaria o homem devolveu-lhe o documento com um sorriso cínico e ele saiu andando, lenta e pesadamente, pela rua escura.