Os Negros do Quênia - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Os Negros do Quênia - Conto de Sergio Faraco
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Os Negros do Quênia - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 6 set. 2024
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"Estava sonhando, claro, por isso alguém lhe dissera: vamos acordar. Um sonho tolo, como tantos outros, não era o caso de se preocupar."

— Vamos acordar? — disse alguém.

Não respondeu.

Estava desperto e ia caminhar no parque, como em regra se prescrevia aos enfartados. Ao levantar-se, viu que já se vestira, embora não se lembrasse de quando e como o fizera. E não havia mais ninguém no quarto. Parece um sonho, disse consigo, ao mesmo tempo em que percebia, como nos sonhos, súbita mudança de cenário: não tomara o elevador, tampouco descera as escadas e, no entanto, lá estava no volante do automóvel.

Não quis deixar o carro no estacionamento do parque, perto dali havia uma garagem da qual já se servira. Antes de alcançá-la, defrontou-se com outra que nunca tinha visto, ao lado do Hospital Americano.

Entrou.

O manobrista abriu-lhe a porta.

— Cuidado — recomendou —, é um carro especial.

No Caixa, recebeu o cartão magnético. Agora ia fazer seu exercício e se felicitou por notar que os acontecimentos se ordenavam numa fluência regular, já sem lacunas.

— A saída é por ali — disse o Caixa.

Ao invés de sair, viu-se atravessando um longo corredor com um renque de portas atrás das quais deviam estar pessoas enfermas. Ao fim do corredor, uma escadaria que ia dar num jardim e ali brincava uma menina. Perto dela, um homem que o olhou e continuou olhando, como se o vigiasse. Retornou, pouco à vontade. Errara o caminho e tinha de passar novamente pelo corredor vestido daquele jeito, bermuda, camisa-de-meia e... pés no chão? Estava sonhando, claro, por isso alguém lhe dissera "vamos acordar". Um sonho tolo, como tantos outros, não era o caso de se preocupar. Mas foi com desafogo que encontrou a porta que comunicava o saguão do hospital com a garagem. Antes de cruzá-la alguém travou seu braço.

— Volte para o quarto.

— Eu?

— Você mesmo.

— E quem o senhor pensa que é?

— O gerente do hospital.

— Pois saiba que está me confundindo! E desvencilhou-se com maus modos.

Sonho ou não, era um dia estranho e melhor que fosse embora, antes de se enredar noutro mal-entendido e impacientar-se o bastante para padecer outro enfarto. Apresentou o cartão, pagou e foi sentar-se no comprido banco de madeira, onde outras pessoas já se achavam. Esperou uns minutos e chamou o manobrista.

— Tem gente que chegou depois de mim e já saiu.

O rapaz fez um gesto, querendo dizer que aquilo não era com ele. Continuou esperando, e depois de esperar por um tempo que entendeu como um acinte, novamente reclamou do empregado.

— Já faz mais de vinte minutos...

— Não posso fazer nada. Enquanto a gerência não pede o carro, não estou autorizado a buscar.

— Não pediu o meu?

— Que carro é o seu?

— Um Ford 1929, bege. O manobrista riu.

— Qual é a graça? — perguntou, levantando-se. Indignado, foi bater a uma porta onde se lia: Gerência.

— Entre.

Entrou, viu um balcão e uma estante com medicamentos.

— Às ordens — disse o homem atrás do balcão.

— Isso é uma farmácia? — erguendo um pouco a voz. — Aí fora não tem uma placa dizendo que aqui é a gerência?

— Tem. E eu sou o gerente.

— Da garagem?

— Não, da farmácia.

— Mas que coisa! — e bateu com o punho no balcão.

— Não se exalte — tornou o gerente. — O senhor pode estar sonhando e os sonhos são assim, uma confusão dos diabos.

Quem sabe eu posso ajudá-lo...

— Pode? Então vamos lá. Deixei meu carro na garagem para caminhar no parque e... Hesitou, o fato é que não caminhara.

— O senhor disse que deixou o carro...

— Sim, um Ford 1929, bege. Um carro especial, como aqueles que aparecem nos filmes de gângsteres.

— Estragaram?

— Não, mas faz um tempão que estou esperando e não há jeito do manobrista trazer.

— Menos mal, pensei que tinham arranhado, roubado, sei lá.

— Quero reclamar da demora.

— Então vou lhe explicar como funciona a empresa, para que não perca tempo batendo em porta errada. Isto aqui é um hospital americano, por isso o nome: Hospital Americano.

— Meu problema é com a garagem.

— Exato. Neste Hospital Americano temos o hospital propriamente dito, temos a farmácia, o parque, a garagem...

— O parque?

— Também é nosso. No fim do corredor há uma escadaria que dá num de seus recantos.

— Ah, sei. Vi uma menina e também um homem que...

— Continuando: cada área tem seu gerente. O homem que o senhor viu deve ser o gerente do parque, pois aquela escada é privativa. O acesso do público é por fora.

— Aonde o senhor quer chegar?

— Já cheguei, o que estou tentando lhe dizer é que deve procurar o gerente da garagem, o senhor Rossi.

— Onde é o escritório?

— A garagem não tem escritório. Pergunte ao Caixa, ele dirá onde está o senhor Rossi. Viu só? Com paciência tudo se resolve, mesmo em sonhos. Procure o senhor Rossi. O senhor disse que é um Ford, não é?

— Ford 1929, bege.

— Belo carro.

— Conhece?

— Não, mas se aparece nos filmes...

"Esse sujeito é louco", pensou, e foi até o Caixa.

— Quero falar com o senhor Rossi.

— Sobre o quê? — disse o homem.

— O assunto é com o senhor Rossi. O gerente da farmácia disse que o senhor sabe onde ele está.

— Ele disse isso?

— Disse.

— Está bem. Sou eu. Mas isso não vai ficar assim.

— Assim como?

— Nada. Depois veremos. Qual é o problema?

— Já fazem... quarenta e cinco minutos... veja só, quarenta e cinco minutos que estou esperando meu carro e nada.

— Tem a nota?

— Que nota? O senhor me deu um cartão, que devolvi.

— Certo, mas sempre pergunto ao cliente se quer nota fiscal. O senhor deve estar com a nota, a não ser que tenha dito que não precisava.

— Não tenho nota nenhuma. Fui caminhar no parque e... bem, fui, voltei, entreguei o cartão e estou aqui, feito um palhaço.

— Calma — disse o senhor Rossi. — Que carro é o seu?

— Um Ford 1929, bege.

— Quê? Não acredito.

— Como não acredito? Acha que estou mentindo?

— Ora, dizer alguém que "não acredita" é força de expressão. Descreva o veículo, por favor.

— Tem capota de lona, o estepe de lado, como aqueles que aparecem nos filmes de gângsteres.

— Filmes de...?

— Gângsteres.

— Ah... — fez o senhor Rossi, lançando-lhe um olhar significativo. — Foi o que ouvi. Tipo o Al Capone, certo?

— Certo.

— Interessante o pormenor.

— Pormenor? Que pormenor? Acaso isto aqui é um hospício? Já faz mais de quarenta e cinco minutos que...

— Vamos ver o que está acontecendo — cortou o senhor Rossi, levantando-se. — Quer dizer que o gerente da farmácia disse ao senhor o que o senhor me disse?

— Disse.

— Com as mesmas palavras?

— Sei lá com que palavras. Se isso é um problema, não é um problema meu, é seu e dele. O senhor Rossi tinha saído da casinhola do Caixa e o olhou:

— Meu e dele? O senhor disse meu e dele?

— Disse.

— O senhor está opinando sobre o organograma da empresa?

— Quem? Eu? Olhe aqui, meu amigo...

E notou que o senhor Rossi o examinava de alto a baixo.

— Fui caminhar no parque — tratou de explicar. — Por isso estou assim e por isso cometi o disparate de deixar o carro em sua garagem.

— É estranho.

— O que é estranho?

— Ir caminhar assim... pés no chão... e o mais estranho é que hoje o parque está fechado.

— Na verdade, eu... sim, estive no parque, vi uma menina.

— De trancinhas? É a filha do gerente. Quando o parque está fechado, ele costuma trazer a família. E onde o senhor deixou seus tênis?

— Não sei.

— Ah, não sabe? Essa é boa.

— O que o senhor tem a ver com isso, se caminhei ou não caminhei, se uso tênis ou não uso? Por que não vai reclamar dos negros do Quênia, que correm de pé no chão?

— Negros do Quênia... bah, definitivamente a coisa se complica. Que carro o senhor disse que é?

— Ford 1929, bege.

— Do tempo da Lei Seca...

— E daí?

— Não, nada... Parque fechado... pé no chão... um carro que podia ser do Al Capone... e agora essa, negros do Quênia...

Enfim, vamos julgar o caso. Aguarde um instante.

Chamou um manobrista para assumir seu lugar no Caixa e, ao aproximar-se novamente, estendeu-lhe a mão:

— Prazer, Francisco Rossi.

Ele olhou para o lado, como não acreditando no que ouvia.

— Por favor, me acompanhe. Tomou a frente do senhor Rossi.

— Vou lhe dizer algo que não precisava dizer. Sabe por que preciso caminhar? Prescrição médica. Sou cardiopata.

Provavelmente estou sonhando, mas resolva esse assunto antes que algo me aconteça. O senhor pode ser responsabilizado.

— Então trate de manter seu sonho sob controle — disse o senhor Rossi. — Venha comigo.

Seguiram pelo corredor que ele já conhecia, desceram a escadaria do parque e tornaram a entrar no edifício por uma porta lateral, dando noutro corredor que fletia ora à esquerda, ora à direita e, como num labirinto, ia cruzando com outros corredores parecidos.

— Chegamos — disse o senhor Rossi.

Uma sala bem-iluminada, a mesa de conferência e quatro homens sentados: os gerentes do parque, do hospital e da farmácia, e o quarto era um magrelo esguedelhado.

— Olá — disse o gerente do parque.

— Olá — disse o gerente do hospital.

— Olá — disse o gerente da farmácia. — Cá estamos de novo. O senhor Rossi abriu os braços.

— Ia apresentá-los, mas vejo que já se conhecem.

— Que espécie de reunião é esta? — e apontando o magrelo com o queixo. — E quem é o senhor? O Minotauro? O senhor Rossi adiantou-se:

— Seja gentil. É o americano. Ele recuou um passo.

— Bateram meu carro? Foi roubado?

— É o senhor que está dizendo — disse o senhor Rossi. E voltando-se para os demais: — Que quiproquó! Vejam os senhores: parque fechado... tênis "não sei"... Al Capone e a Lei Seca... e isso sem falar nos negros do Quênia.

— Negros do Quênia! — assombrou-se o gerente do parque.

— Que estou a ouvir? — disse o gerente do hospital. E o da farmácia:

— Que insolência!

O senhor Rossi ergueu as mãos abertas:

— Não nos precipitemos, julgando pelas aparências. O assunto está em discussão. O nosso mister — e tocou no ombro do americano —, o que acha desse conjunto de indícios?

— Acho — respondeu o magrelo.

— É a minha opinião — assentiu o senhor Rossi, e voltou-se: — Como o senhor explica essa... isso tudo que aí está? Sobretudo a questão queniana... a aludida negritude... a relação desses elementos com seu interesse pelo organograma da empresa.

Ele sacudia a cabeça, incrédulo.

— Suas razões — insistiu o senhor Rossi.

— Minhas razões? — e agarrou a cadeira que lhe estava reservada. — Minhas razões, é? — e deu com ela no tampo da mesa, partindo-lhe um pé, que foi bater na parede, ferindo o reboco.

— Considere-se preso — disse o senhor Rossi, e chamou para o corredor: — Guardas! Alguém o agarrou por trás e começou a arrastá-lo para fora.

— Sou cardiopata! — gritou. — Me solta! Sou cardiopata!

Lembrou-se novamente de que aquilo era um pesadelo, do qual, sem demora, haveria de despertar. E se não fosse? No mesmo instante viu que o americano fazia um sinal, com o polegar para baixo.

— Mister! — tornou a gritar. — Mister!

Na verdade, ele não estava ali e tampouco saíra de onde estivera na última semana. E quem o visse num dos leitos daquele corredor, primeiro a murmurar, com a respiração acelerada, e logo um estremecimento, um ronco cavernoso, e quem o visse, depois, aquietar-se, e um fio de baba a lhe escorrer do canto da boca, quem o visse assim, saberia que do sonho que tivera, fosse qual fosse, ele nunca mais despertaria.

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