Legião Estrangeira - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Legião Estrangeira - Conto de Sergio Faraco
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Legião Estrangeira - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 7 set. 2024
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"Agora confira no espelho. Busto caído? Que vergonha! Mais esbelta, mais bela, mais sedutora. Você está ótima!"

Abrandou o passo e olhou pela janela do Hotel Moderno. Era cedo e Bete ainda não estava no salão, a balançar entre as mesas suas formosas tetas. Andou mais uma quadra e entrou no prédio dos correios. Lili estava só e pediu que aguardasse, já distribuiria às caixas postais o malote da véspera. Ele fez um gesto vago. Encostado no balcão, viu a funcionária desenlaçar um maço de cartas e por trás dela, na rua, a carroça de um verdureiro a rinchar. Era no sábado que os verdureiros da campanha vinham à cidade, animando as ruas com seus pregões. E ele também se animava. A manhã começava como qualquer das manhãs antecedentes — ia ao correio ver se tinha chegado a carta —, mas no resto do dia o programa era único, próprio do sábado: ia à praça comprar a revista e almoçava no hotel. Era o melhor dia da semana.

— Só um minuto — disse Lili.

— Não tenho pressa.

Gozar o sábado, isso sim. Os outros dias, se pudesse, metia-os num saco e os lançava ao rio, atrás do cabaré da Célia, naquele juncal onde as putas iam mijar. Domingo era o pior, ai, domingo... Despertava cheirando papel velho e dava com a mãe na bergère, ouvindo missa pelo rádio. E o correio fechado, claro. Depois do almoço fazia as cruzadas da revista, decifrando questões como a mania suicida entre os malaios — seis letras —, e o mais era conformar-se com horas indistintas, paradas, como se a tarde não fosse passar nunca. No tempo do Guarani e dos pelotaços de Basay costumava ir ao estádio, todo mundo ia, mas o glorioso alvirrubro, desmilinguindo-se, fora rebaixado, logo extinto, e a tarde, agora, era tão-só um marco de angústia na viagem para a noite. E à noite ia ao clube, que remédio, voltava ziguezagueando o porre pelas ruas silenciosas e massageando o ventre flatulento. Antes de deitar-se beijava a foto da senhorinha Acauan e jurava que em seguidinha iria vê-la no Paraíso. Mas a semana começava, ele comparecia ao trabalho no Posto de Saúde e resolvia conceder-se outra chance, esperando a carta. De segunda a sábado. E esperando viver e morrendo no domingo — em desespero, como aquele infortunado senhor Boose.

— Já está.

Abriu a caixa e encontrou mais uma lição do curso de línguas por correspondência.

— E nada da minha carta...

Outra carroça demandava à rua da feira, carregada de verduras. A moça fazia anotações num livro.

— Tenho uma coisa pra te mostrar — tornou. Lili viu nas mãos dele uma caderneta.

— Que é isso?

— Estou pronto — era um passaporte. — A documentação em ordem e já me defendo no francês.

— Que coragem.

— Coragem é ficar aqui, nessa vidinha. Se eu tivesse um motivo...

— E tua mãe? Não é um motivo?

— Mãe? La France est votre mère, diz no hino — e sorriu. — Eu digo um motivo meu, pessoal, se tivesse eu ficava. Que achas?

— Eu não acho nada e tenho toda essa correspondência pra lançar.

— Pena — e guardou o documento. — Muito serviço hoje?

— O de sempre.

Ele bateu com o nó do dedo no balcão.

— Vou indo.

Lili fez uma careta, mas ele não viu.

Agora ia ao quiosque, na praça. Na mesma direção seguia um homenzinho retaco e melenudo, carregando um porta-voz. Era Ibrahim, que chamavam Turquinho, popular reclamista da cidade, com seu andar de petiço marchador. Num impulso pôs-se a arremedá-lo, um-dois, um-dois, um-dois. Na esquina, Turquinho olhou para trás e o viu. Ele parou. O reclamista atravessou a rua, olhou de novo, desconfiado, e ergueu a trombeta.

Segunda-feira tem fogueira e a Farmácia Brasil previne sua distinta freguesia masculina: a festa de São João remoça o coração, mas não se esqueça da cabeça. Para a queda precoce dos cabelos, Petrolina Minâncora, o tônico capilar por excelência. Caspa? Seborreia? Juventude Alexandre, use e não mude. Depois penteie-se e seduza com Óleo Glostora, elas ficarão caidinhas por você. Tudo isso e muito mais na Farmácia Brasil, de Josezinho Santos, o recurso dos bacanas!

Comprou a revista e retornou pela mesma calçada. Páginas e páginas sobre a visita do General Craveiro Lopes ao Brasil e nenhum fato marcante, muito menos uma guerra como a da Coréia. Imagine, uma guerra! As guerras eram uma tragédia para a humanidade, mas que enchiam uma vida, isso enchiam, o sujeito ia dormir pensando nos últimos boletins da A.P. e no dia seguinte acordava pensando a mesma coisa: "Como será que vai a guerra?" Um desastre de avião também enchia, e como!, aquele de abril ofuscara até a lembrança da carta que não chegava nunca. Quando os jornais vinham da estação para o quiosque, já uma multidão estava à espera e havia títulos para todos os gostos. Os genéricos: ENLUTADO O RIO GRANDE COM O DESASTRE. Os específicos: QUARENTA FAMÍLIAS CHORAM A PERDA DE SEUS ENTES QUERIDOS. Os literários: PARA OS PASSAGEIROS DO PP-VCF A ÚLTIMA ESCALA FOI A MORTE.

Abril, 7 (domingo). Aeroporto de Bagé.

Decola o Curtiss-Comander com trinta e cinco passageiros e cinco tripulantes, e três minutos depois o comandante avisa que o motor esquerdo está em chamas. Retorna o avião a baixa altura. A trinta metros do solo, ao invés de baixar mais, sobe outra vez. A cinquenta metros despenca a asa esquerda, o bimotor gira sobre seu eixo horizontal e cai de dorso com formidável estrondo. Arrasta-se ao longo da pista e explode no final, arrojando destroços num raio de cem metros. A assistência de terra, transida, está imóvel, e eis que das chamas sai a correr uma tocha humana, e tropeça, cai, e soergue-se nos joelhos e por fim desfalece, não longe da sucata ardente. A assistência desperta, ruge, e o viajante comercial Victor Boose é transportado para o hospital, onde vai morrer em meia hora. Nenhum sobrevivente mais.

Quando os ecos desse drama começaram a escassear, tornou a pensar na carta e a esperá-la ansiosamente. E tudo voltou a ser como era antes de abril, exceto pela foto da senhorinha Acauan, Rainha do Clube Comercial de Livramento, que aparecera nos necrológios lado a lado com a de Liberato Salzano e ele recortara e colara no espelho do roupeiro. A vidinha de sempre. O expediente no Posto, cadastrando a porca humanidade que vinha mostrar suas feridas, e a jogatina no Clube dos Sargentos com o Sadi, noites de sinuca, chope, batatinha frita e sonhos que não tinham fim.

Londres e Sidi-bel-Abbes.

Sadi vencera o campeonato citadino de snooker e esperava obter um patrocínio, talvez o de Josezinho Santos, para disputar o torneio londrino do News of the World, no Leicester Square Hall, de onde voltaria, tinha certeza, com uma caçapa de esterlinas. Quando bebia demais, pronunciava com ódio nomes famosos de profissionais ingleses e desdenhava deles. Davis, pfff, Pulman, pfff, Smith, pfff, Donaldson, pfff, e expelia pedacinhos de fritas escoltados por velozes perdigotos.

O parceiro do sargento, embora aficionado, não tinha veleidades no desporto. Ele sonhava com a Legião, que era o sonho mais bonito dos solitários e incompreendidos deste mundo. Dispensavam-se os patrocínios, as esmolas. Bastava que se escrevesse ao bureau de recrutement na Rua St. Dominique, em Paris, a França custeava o traslado e um contrato quinquenal garantindo a aposta: glória ou perdição. Soldier of fortune e como eram lindos os uniformes dos regimentos africanos: os spahis do Batalhão Dezenove com suas largas calças, blusões berrantes, jaquetas zuavas, fezes e enormes capas vermelhas, os tirailleurs vestidos de azul e ouro, os chasseurs d'Afrique de azul-claro, os zuavos de azul e vermelho — assim os vira, certa vez, na revista do sábado.

No fim da noite se despediam na calçada do clube, vencidos pelo cansaço, pelo álcool, pelo sono, e partiam deixando nas lajes de grés um rastro de cusparadas — no fim da noite todos os sonhos são amargos. Clareava o dia quando entrava em casa, felicitando-se ao não ver a velha nem a gata, ou vê-las como vultos de uma tela sombria, a primeira adormecida em sua cama de criança, encolhida como um feto, a segunda estatelada no cesto das costuras, entre novelos de lã Santista e cartuchos de retrós Guterman.

Era um pequeno apartamento, comprado com o seguro do falecido. O filho dormia no quarto, a mãe na sala atulhada com seus trastes. A camita de ferro e ao lado o roupeiro já sem portas que podia ter sido outrora um falso Chippendale. A cômoda assentava-se em tijolos no lugar dos pés e sobre ela o fogareiro e latinhas para guardar os chás, camomila para as cólicas, carqueja ou losna para a prisão de ventre, funcho para os gases e mais erva pombinha e capim-cidreira e aqueles cheirinhos todos se misturavam ao cheiro de papel velho — revistas, jornais, folhetos de publicidade ou de propaganda eleitoral, que a mãe ia empilhando "para ler depois" e que efetivamente lia, meses ou até anos depois, sem perceber que o que lia eram epitáfios em tumbas de celulose. Havia também a mesa, duas cadeiras e um banquinho, e na parede, acima da máquina de costura, um retrato do morto em moldura oval. O rádio no bidê era novo, um Philco de três ondas, mas a bergère perdera já uma asa do encosto e o assento era fundo e chato. Os braços tinham sido dilacerados pela gata e dos rasgões assomavam espiras de arame e chumaços de lã cor de chumbo. A gata se chamava Fifi. Era uma gata ruana com cicatrizes de sarna e uma aberração: o cio interminável. Ele odiava essa Fifi. Era sentar no banquinho e vinha a gata se roçar em suas canelas. E se agachava, a nojenta, alçava o rabo e punha-se a miar, instando-o, e como ele não se aprestava, ela olhava para trás, rancorosa, e rosnava como um cão.

Joanetes? Calos? Zino Pads do Dr. Scholl. Após o banho não esqueça: só Rugol mantém o segredo de sua idade. Agora confira no espelho. Busto caído? Que vergonha! Mais esbelta, mais bela, mais sedutora, com a Pasta Russa do Dr. Ricabal. Vista-se, você está ótima, e agora amor-amor-amor com Royal Briar, o perfume que deixa saudade. Tudo isso e muito mais...

E agora, voltando, ia ao restaurante do hotel, e ao passar outra vez pela agência dos correios pensou em Lili, se aceitaria um convite para a festa de São João. Gostava dela. Era bonitinha. Gostava até dos dedinhos dela, sujos de goma-arábica e tinta de carimbo. Em certas noites, no quarto, fingia que chegava da rua e a encontrava à sua espera. Como se fossem casados. Na sala, a velha ouvia um programa musical, e ele, sentado na cama, cavaqueava com Lili sobre assuntos domésticos. Às vezes dançava com ela, abraçado ao travesseiro, às vezes se emocionava com a música do rádio e acabava chorando, soluçando, como soluçam os que não têm consolo. A velha já reclamara dessas vozes noturnas, mas ela também falava sozinha e argumentava e discutia e ele achava que era com o retrato oval do falecido, que amanhecia tapado com um pano de prato.

No restaurante, costumava reter Elizabete junto à mesa. Chamava-a Bete e a desejava intensamente. Era uma gorda seiuda, com lábio leporino. Ao curvar-se, servindo, fazia-o com deliberado excesso e ele se agitava na cadeira e sentia o joelho trepidar num tique e se conseguia, num relance, avistar os mamilos de goiaba, era certo que à noite não dormia, ficava olhando o teto, fumando e vendo formas femininas nas manchas de umidade e nas volutas da fumaça. Numa dessas noites sonhou que Bete viera à sua cama. Ele mamava em suas tetas Ricabal e ela, com o lábio congestionado, fazia-lhe um bouchet. E deu um grito de dor na escuridão: Bete o mordera. Acendeu a luz e viu, horrorizado, a gata ruana escapulindo pela porta entreaberta.

Quando o desejo persistia, atormentando-o, socorria-se de uma velha revista com fotos de Marta Rocha em Long Beach. A Namorada do Brasil tinha um sensual nariz cujas aletas, de feição negroide, dilatavam-lhe as narinas, e o Sargento Sadi, que sobre ser mestre na sinuca era tido por filósofo, costumava preceituar: "Fêmea de narina aberta tem pimenta no xibiu". Ele acatava essa doutrina e na solidão do banheiro sucumbia às instâncias daquele nariz de fogo.

Uma vez ao mês ia ao cabaré da Célia, perto do rio, onde as putas tiravam os homens para dançar. Baila, bem? Depois de uma milonguita ao som de Basay e seu conjunto, levantando poeira do tablado, iam de braços dados, como noivos, bater à porta do quartinho dos fundos. Alguém resmungava "tem gente" — sempre tinha —, eles confabulavam e se decidiam pelo juncal que crescia atrás das casas, entre os seixos lodosos da margem que fediam a urina. A mulher, que atendia por Kate ou coisa assim, cuspia o chiclete e se ajoelhava. Da boca dela subia um cheiro de hortelã que logo cedia aos miasmas da pútrida ribeira.

Pagava com uma nota dobrada que ela abria para conferir e guardava no sutiã. Vinham de volta pisando em poças d'água, juncos mortos e excrementos da fauna palustre, e ele se enchia de pena da mulher e de si mesmo. Comovia-se com as sandálias dela, a saia de chitão e os joelhinhos embarrados, sobretudo com os khrrr e os tchuf das cuspidas que ela dava, tentando livrar o céu da boca dos visgos do esperma. Tu és igual a mim, desabafava, mas eu me salvo, vou embora. E se Kate perguntava para onde, respondia, animoso: para a Legião Estrangeira! Mostrava o recibo da correspondência que enviara, sabe o que é isso? Régiments étrangers? Alistara-se e esperava a carta de convocação.


Soldats de la légion,
de la légion étrangère,
n'ayant pas de nation,
la France est votre mère.


Bete não estava. Uma garota a substituía e ele perguntou:

— Bete não veio?

— Tirou uns dias.

— Doente?

— Não, buchuda. Buchuda!

— Tem certeza? — ainda perguntou à moça.

— Eu? — ela espantou-se.

Quase não acreditava. Tantas comoções no ansiado almoço de sábado e vinham lhe dizer que Bete fornicava com outro...

E nem ao menos se prevenia, ia logo chocando um ovo. Galinha!

Depois de comer, quis se engraçar com a substituta.

— Então no Hotel Moderno é assim? Taratatá e já emprenha? A garota recolhia os pratos e não respondeu.

E agora na rua, lendo a revista. Muitos nomes do nosso society circularam nas Laranjeiras com o mundo oficial e político. O diadema mais impressionante foi o da sra. Francisco Guise. Todo cravejado de brilhantes. Outra tiara que impressionou, aliás muito kar: a usada pela sra. José Augusto Macedo Soares. De pérolas e brilhantes. Trata-se de uma joia de família da senhora em questão, que é filha do Conde de Pombeiro. Usava um conjunto de pulseira e anel de rubis, enormes rubis, a sra. Otávio Guinle. Também a sra. Josefina Jordan escolheu rubis como joias. A debutette mais chic foi a srta. Astrid Monteiro de Carvalho, com um vestido branco, de pintas também brancas. A nota very kar foi a sra. Paulo Cunha, que fez questão de desfilar por todas as dependências do palácio, sob os comentários gerais: "Essa é a Paulo Cunha". E não havia quem não esticasse o pescoço para admirar a representante da beleza e da elegância lusitanas.

Outro Ibrahim... o Sued. Mais um turco!

E dá-lhe com Craveiro e Juscelino, Craveiro e Ademar, Craveiro e Bias Fortes... eta revistinha alcaide, nem futebol e ele lembrou novamente o Guarani de Basay, que suplantara os adversários regionais e sacudira o marasmo da cidade: nos domingos todo mundo ia ao estádio, o mundo oficial, o político e até as moças, que nada entendiam do jogo, mas suspiravam a ver Basay entrando em campo com um buquê de flores, a homenagem do campeão para a torcedora mais bonita.


Marreco,
Guta e Celestino;
Porreta, Picapau e Rebouças;
Porquinho, Basay, Filomeno, Porciúncula e Rengo.


Que onze! Basay era andino e viera para o Guarani após ter perlustrado as duas margens do Prata com seu charme indiático e seu petardo de peito de pé, com efeito procurante. Soldier of fortune. Agora vivia com a Célia no putedo e era o líder do conjunto melódico. A parceria modulava e ele dava o compasso com o pandeiro e aquele pezunho que tinha sido o calvário dos golquíperes.

Joanetes? Calos? Lá vinha o Turquinho na esquina do correio e atrás dele meia dúzia de molambentos guris de rua. Pensou em trocar de calçada e só não o fez porque o petiço, vendo-o, pôs-se a encará-lo. Devolveu o olhar e o reclamista, açulado pela corja — "Aí, Turquinho" —, entreparou. Mas ele não: acabara de avistar Lili tomando a rua da feira. Seguidamente a via depois de fechada a agência, mas nunca tentara aproximar-se. Apertou o passo.

— Vais à feira?

— Vou — disse ela, seca. — Por quê?

— Nada, é que... — Lili adiantava-se e ele ergueu a voz: — ...segunda vai ter fogueira na frente da farmácia, vai ter pinhão, quentão, um bailezinho...

Já a via pelas costas, fugindo, e então parou. Adiante, a feira e seu alarido, olha a alface, olha o repolho e o tempero verde e de vez em quando entrava de rijo um "Petrolina Minâncora", um "Josezinho Santos", como um responsório à litania dos pregões. Viu passar outro bando de moleques com sacos de aniagem, iam recolher as sobras da feira — e as sobras das sobras serviriam para alimentar, na noite de 24, as fogueiras suburbanas do santo. Viu um velho com um frango debaixo do braço e um cachorro sentado. Viu uma mulher de coque e um cavalo bosteando. Viu uma revoada de pombos assustados e Lili desaparecer entre as carroças. Vagarosamente começou a voltar, dizendo consigo que um futuro légionnaire não se abalava com frioleiras e se trazia os olhos molhados era de esperança, de emoção: um dia aquela carta chegaria e então Lili e não só ela, também Bete e as putas da Célia, todas sentiriam falta dele. Tarde, muito tarde, já estaria longe, muito longe... talvez em Marselha esperando o dia do embarque.

Num vapor da Messageries Maritimes cruzava o Mediterrâneo, desembarcando em Orã. Em uma hora de marcha alcançava o Forte Ste. Thérèse e dali partia de trem para a sede do Primeiro Regimento. Sidi-bel-Abbes, finalmente! Via-se entrando num sobrado amarelo de três pisos e recebendo uniformes, roupa de baixo, sabão, toalhas — meias não, os legionários não usavam. Alvorada às cinco — levez-vous, levez-vous — e após a primeira refeição marchar no deserto a cinco quilômetros por hora, em uniforme de combate e com dezenas de pentes de balas nas patronas. Estava começando sua aventura de palmeiras, oásis, cidades mouras, miragens, tempestades de areia, tuaregues velados, o harmattan e o caffard. Glória ou perdição.

Na distância ecoavam os reclames da farmácia, mas ele não ouvia a voz do reclamista, ouvia outras:

Par files de quatre! En avant! Marche!

Um-dois, um-dois, um-dois e que viessem les arabes com suas melenas cheias de caspa e seborréia e suas trombetas farmacopeicas, os ibrahins, a turcalhada toda.

Aux armes! Feu!

Toma esta, cão infiel, e esta e esta mais, e um dia voltaria ao Brasil, tinha certeza, morocho como o Basay, de uniforme branco e o peito coberto de medalhas, very kar, depois de ter salvo uma princesa de furiosos beduínos — uma princesa que lhe aparecia com os dedos sujos de tinta de carimbo, tinha os peitos da garçonete, o nariz da miss, o rostinho angélico da senhorinha Acauan e, por que não?, a elegância lusitana da sra. Paulo Cunha. E um rubi na testa.

Abriu a porta. Deitada no cesto das costuras, a gata o mediu de alto a baixo. Suas pupilas amarelas faiscavam e o rabo subiu, reto como um pau. O rádio estava ligado e ao pé dele, na bergère, sua mãe cabeceava. O apartamento cheirava a papel velho.

— Chegou a carta? — ela perguntou, despertando vagamente e tornando a cochilar.

Não respondeu e olhava-a como se não a compreendesse. Sentia o abdome tenso, o coração acelerado, estou me matando, desconfiou, será assim — seis letras — o amoque malaio da charada? Sentado no banquinho (e a gata a se roçar em suas canelas), pensava na própria morte, perguntando-se se no dia seguinte os jornais diriam ENLUTADO O RIO GRANDE COM O DESASTRE. E olhava para a mãe, aquela tediosa esfinge, como num sonho em que estivesse condenado a fitá-la até a decifração, e ouvia, como parte desse sonho, a voz do locutor, depois música, depois a voz de novo, que se confundia com um longínquo reclame trazido pela aragem vespertina e com os pregões da feira que já se espaçavam numa lenta agonia — ruídos em naufrágio no mar de pelos de um som mais profundo e envolvente, o ronrom da gata, que os sufocava com uma paciência de jiboia. Escapavam desse abraço mortal certos rumores, mas estes eram igualmente insidiosos, provinham da azáfama dos gases no labirinto de seu ventre e pareciam risotas de escárnio.

A ruana unhava-lhe os sapatos, ronronando ainda, ele ainda olhava para a mãe e via, por trás dela, o poente incendiando os vidros da janela. E como despertando de um sonho para entregar-se a outro sonho, considerou-a na poltrona, reclinada no encosto e com as mãos no regaço, segurando ambas a mesma agulha de tricô, e a figurou como a pilota do PP-VCF em seu posto de comando, tentando pousar o avião em chamas. A bergère também perdera uma asa e saltava o diabo a quatro de suas entranhas em pedaços. Ia explodir.

— Bum! — fez ele.

Fifi, eriçada, saltou para trás, miando com escândalo, e a velha escorregou no assento, agarrando-se nos braços da poltrona.

— Nossa! És tu?

— Não — disse ele, erguendo-se. — É o Boose.

Agarrou a gata, último recurso de um bacana, e entrou no quarto, fechando a porta. Na sala a velha começou a falar sozinha e sobre seus murmúrios e a música do rádio ele ouviu rinchos de uma carroça, depois outros, e outros mais, eram os verdureiros que voltavam para casa em suas carroças vazias. Noite. Velozmente, a baixa altura, ia chegando outro domingo.

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