O Prisioneiro de Gaspra - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo O Prisioneiro de Gaspra - Conto de Sergio Faraco
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O Prisioneiro de Gaspra - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 7 set. 2024
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"Gostaria que você soubesse que estou longe, sozinho num lugar do qual nunca ouviu falar, num lugar que só existiria num sonho."

Gostaria que você soubesse que estou longe, sozinho num lugar do qual nunca ouviu falar, num lugar que só existiria num sonho. Mas se você não pode me ver nem me ouvir, como saberia? Tampouco espero que leia esta carta, embora eu pretenda enviá-la. Só um milagre, não é? Tamanha é a distância entre nós, que é como se você também não existisse e fosse outro sonho.

Se você pudesse acompanhar meu dia a dia, diria que é o que sempre foi e cada coisa está onde sempre esteve. Sim, tenho uma casa que em tudo se assemelha àquela que eu tinha. Mas o lugar — você acredita? —, o lugar é outro e, em meus delírios, chego a desconfiar de que transportaram a casa no guindaste de uma nave espacial. E não só a casa. A casa, o subúrbio, a agência dos correios, a mulher. Cada coisa onde sempre esteve. No entanto, são apenas ilusões e fazem parte do castigo.

Você já ouviu falar de Gaspra?

Gaspra é uma prisão e, por motivos que ignoro, condenou-me um juiz, ou um deus, a penar nesta rocha que parece uma batata, a 400 milhões de quilômetros da Terra, vendo a luz do sol a cada três horas, após outras tantas de densa escuridão. E nem sei há quantos anos estou aqui. No início eu contava, fazendo cálculos complexos, e assentei que cada estação durava quatro meses. E assim contava os anos. Depois desanimei. Posso estar aqui há quinze anos, ou há trinta. De que me adianta marcar o tempo, se desconheço a extensão da pena?

Em certos dias, quando a fúria do vento me impede de levar a correspondência e ainda me obriga a fechar portas e janelas, pergunto-me por que tinha de vir para tão longe, para um mundo tão inóspito. Se o crime que cometi foi tão grave. Se sou tão perigoso, ao ponto de não poder compartilhar uma cela na cadeia de nossa cidade. Contudo, olhe só, não me recordo de ter cometido crime algum, exceto contra mim mesmo, por excesso de altruísmo. Eu era os outros. É só o que lembro e não sei se explica meu degredo e seu melancólico cenário — a casa, o subúrbio, a agência dos correios onde posto cartas que ninguém recebe.

E mais a mulher, decerto, e nada é verdade.

De manhã, enquanto ela cozinha, leio o jornal, e o jornal é sempre igual e já sei de cor. A mulher, também já sei de cor. Vejo-a lavar e passar roupa, vejo-a banhar-se e secar os cabelos, vejo-a lendo uma revista, vejo-a por toda casa — é um vulto ubíquo —, e ela me vê como se não me visse. Na varanda, fuma um cigarro e distrai-se com as volutas da fumaça. Se falo, não responde, não ouve, e ao entardecer, recolhe-se, para despertar cedo e começar tudo de novo. E tudo é mentira.

Em seguida anoitece.

E à noite, ouço gritos de meninos perdidos e um fragor de tráfego sob a terra, ouço sirenes e estrondos abafados, e rugidos de acuados animais, ouço soluços e doridos ais, e a metralha incessante de uma guerra. Dormir eu não consigo. No banheiro, olho-me no espelho e passo a mão no rosto, para ver se sou eu mesmo. E sou. E caminho a esmo pela casa e, por fim, sento-me à varanda, em busca do remédio para o mal que a noite faz e ela só pode abrandar: o pontinho azul no céu, onde você está. Finjo que um dia vou voltar e nossos amigos vão fazer uma grande festa e no jornal vai dizer que voltou o prisioneiro de Gaspra. Finjo que alguém me ama sem que eu saiba e essa pessoa me espera, como Penélope esperou Ulisses. E finjo tanto que, às vezes, passam-se três dias e três noites, sem que nesse tempo eu veja a casa, o subúrbio, a agência dos correios, a mulher.

Quando paro de fingir, quando regresso a mim, me dá uma angústia tão funda, uma vontade tão forte de gritar... Nos primeiros anos eu gritava — soluços e doridos ais —, agora não grito mais. Por que gritaria, se só eu posso escutar.

É isso que eu queria lhe escrever, embora não tenha certeza de que realmente esteja escrevendo: será outra ilusão, quem sabe.

Mas tenho uma esperança. Uma grande esperança.

A esperança de que, pensando no que penso que escrevo, meu pensamento alce vôo pelo escuro desse espaço. Pode ser que você, na amena noite terrestre, sinta um frêmito, um estranho calor, e diga a nossos amigos que sonhou comigo, que no sonho estou longe, sozinho num lugar do qual nunca ouviu falar, num lugar que só existiria num sonho. Mas pode ser também que você suspeite desse sonho e faça alguma coisa. Pode ser que embarque numa nave espacial ou contrate um advogado ou faça uma promessa ou qualquer outra coisa e venha me buscar.

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