Ouves o ranger dos gonzos e teus músculos despertam, retesados para o bote. Agora o estalo de cada degrau e sei que podes calcular quantos faltam para o fim da escadaria. Anseias por meu passo no corredor na premonição de um tempo novo. Imagino teu contentamento. Compreendo tua esperança. Diria que até sufoco prefigurando tuas mãos em meu pescoço.
Nos últimos dias me despedi dos poucos amigos que fiz lá fora. A um dei um garrafão de vinho, a outro uma quarta de argila, um terceiro me bendisse pelo perdão de velha dívida. No horto a terra ficou virada, fofa, suponho que em breve desejarás lançar as sementes que juntei. Também a casa foi preparada e disso cuidei agora, antes de descer, fazendo pequenos consertos e varrendo as folhas que o vento larga na varanda. A louça está no armário, a roupa branca pendurada ao sol.
Também no armário estão os instrumentos e não há neles o menor vestígio de teu sangue.
Vou caminhando, avançando pelo corredor, vou pensando em ti, no dia em que aqui chegaste sem saber de nada. Jamais pude esquecer teu doloroso assombro quando descobriste que viverias no tronco e só no tronco, como todos os que aqui chegaram antes sem saber de nada.
Como o tempo passa.
Antes eu não tinha esses cabelos brancos nem esse andar alquebrado de velho. Eu era forte, musculoso, não precisava de nenhum esforço para cumprir o meu papel. Com as mãos o cumpria, dosando-o na intensidade do teu grito e no limite do desmaio. Mas o tempo passa e nos devora lentamente, como uma jiboia. Nesses anos todos fui ficando fraco, frouxo, e passei a usar os instrumentos. Nossos encontros se tornaram demorados, mas não ignoremos que a dor também te trouxe algum proveito, comigo aprendeste que com um punhal se vaza um olho, com uma agulha se perfura um tímpano e que línguas, mamilos, cartilagens, justificam o invento das navalhas.
Não te tratei tão mal, pensa bem, cuidei de ti mais do que de mim nesses anos todos. Não negarás que fui paciente depois que perdeste a aptidão para o desmaio. E mais: trazia tua comida na tigela azul, tua água na caneca de alumínio, retirava teus excrementos com a pazinha. Queres mais ainda? Soltava teus pulsos do tronco e me sentava ao teu lado enquanto comias, ficava ouvindo teus gemidos e como me compadecia. Que mais podia fazer? Te libertar? Isso não podia. E depois, a mim, quem me mataria?
Vou caminhando, chegando ao fim do corredor, já posso discernir o vão da porta e o traço de seus alizares. O tempo passa, passará, um dia, não sei te dizer quando, descobrirás que não fui um monstro, que te amei tanto quanto pode alguém amar seu semelhante e que nada havia, nada mesmo, que pudesse fazer para minorar teu sofrimento. Sim, também estive em teu lugar, não vês que tudo se repete? Tudo se repete desde a primeira morte e a dor é sempre a mesma, assim como a esperança nunca muda. É por isso que me esperas, contente, e quando eu entrar, vergado ao peso dos anos e já incapaz de um gesto de defesa — magro e trêmulo velhinho —, tu, moço, tu, pálido colosso, rebentarás essas amarras podres, te erguerás do tronco e me matarás. Mas não descansarás depois. Depois sairás a campo em busca da tua vítima.