Ateísmo: Como funciona a mente de um ateu? Um ateu explica | Fantástica Cultural

Artigo Ateísmo: Como funciona a mente de um ateu? Um ateu explica

Ateísmo: Como funciona a mente de um ateu? Um ateu explica

Por Paulo Nunes ⋅ 25 ago. 2024
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Uma viagem extraordinária pelas ideias, dúvidas e crenças que habitam os pensamentos dos ateus.

jovem fugindo da cruz sarbax

O ateísmo é um fenômeno raríssimo no Brasil. Embora 20% da população se declare "sem religião", conforme pesquisas recentes, apenas 4% se diz ateia. A tendência, porém, é de crescimento: há uma década, o número de ateus não passava de 1%. Em pouco mais de dez anos, portanto, houve um aumento de 300% no total de ateus no Brasil. Enquanto a religiosidade diminui a cada nova geração, a tendência ao ateísmo aumenta.

Mas o que essa gente está pensando?

Para entender como outras pessoas pensam, o primeiro passo é tentar ver o mundo como elas o veem. Imagine, por exemplo, que você vive em um universo onde Deus não existe. Você consegue imaginar este cenário?

É essencial que consiga, para compreender outros pontos de vista (não importando se eles estão corretos ou não).

O que o ateu vê, ao observar a realidade à sua volta? Prepare-se para descobrir nesta extraordinária jornada em um universo sem Deus.


deus criando o mundo do barro planeta terra maos#1

O mundo: uma obra sem autoria

Tudo veio do nada? Somos frutos do acaso?

Imagine que você vive neste universo em que Deus não existe. Trata-se de um universo gerado pelas forças da natureza, sem qualquer motivação ou intenção. Neste universo hipotético, não há uma entidade inteligente orquestrando o mundo.

Vivendo neste cenário, imagine que você estuda diversos tópicos de ciências, e praticamente tudo no universo parece ser explicado por fenômenos naturais. Nenhuma entidade mística ou ocorrência sobrenatural jamais foi comprovada, mesmo após séculos de experimentação, testagem e observação realizados por milhares de pessoas ao redor do mundo. Tudo parece transcorrer tranquilamente sem a presença de uma divindade.

A própria origem da vida, que para muitos é uma evidência de milagre, parece ser facilmente explicável pela complexificação da matéria inorgânica. Uma dado tipo de molécula, seguindo a segunda lei da termodinâmica, dissipa energia por meio da replicação, gerando outras moléculas similares ou quase idênticas a si. Como resultado, a replicação promove a gradual seleção natural, acumulando características facilitadoras da reprodução.

Você, é claro, não vê qualquer motivo para supor que exista uma entidade inteligente coordenando tudo. Tudo parece ser perfeitamente explicável pelas ciências, e não existe qualquer indício de uma entidade sobrenatural.

Mas você olha em volta, e descobre que a maior parte das pessoas pensa diferente. Bem diferente.

big bang tenista#2

Deus, uma hipótese gratuita

Mas qual foi a causa primeira a raquetear o Big Bang?

A grande maioria dos seres humanos que você encontra, neste nosso hipotético universo sem Deus, alega acreditar em uma entidade mística. Um ente espiritual que não se pode ver, identificar ou medir. Tal Deus é tão difícil de detectar que, não fossem os religiosos, você jamais teria cogitado a existência deste ser. Teria nascido, vivido e morrido sem que essa ideia jamais lhe passasse pela cabeça.

Afinal, a alegação de que Deus existe só chegou até você através de outras pessoas, e estas se informaram sobre isso também a partir de outras pessoas. Onde está a evidência que deu origem à crença?

Quando religiosos tentam embasar suas crenças, é comum que o mistério da origem do universo seja mencionado. Não seria o Big Bang uma boa motivação para supor a existência de Deus?

Você, é claro, ainda não sabe responder como e por que o universo começou. Mas você também não saberia responder a estas questões se incluísse Deus na sua explicação. Qualquer questão que incluísse Deus apenas transferiria o problema para o próprio Deus: como e por que Deus existiria?

Certos religiosos afirmam que Deus sempre existiu, que Deus é causa de si mesmo, que Deus não requer explicação, ele apenas é. Assim, julgam explicar não apenas a origem do universo (criado por Deus), mas também os paradoxos de uma existência eterna e sem causa. Porém, bastaria dizer que o universo sempre existiu, que o universo é a causa de si mesmo, e que o universo não requer explicação, ele apenas é, e teríamos exatamente o mesmo argumento, com uma variável a menos (Deus). E conforme a Navalha de Ockham, a explicação mais simples (como menos variáveis) costuma ser a verdadeira.

multidao de homens#3

Crença via contágio — uma pandemia

Será que não acreditamos meramente por condicionamento?

Você, então, debruça-se sobre as argumentações religiosas, e verifica que, como já imaginava, nenhuma de suas crenças sobrenaturais possui prova ou embasamento. Apesar da total falta de evidências, as pessoas ao seu redor acreditam nesta entidade mágica, que teria surgido antes do universo, que teria criado tudo, que controlaria tudo, mas que é absolutamente imperceptível para você.

Os próprios religiosos afirmam que nenhum experimento seria capaz de comprovar Deus: trata-se de uma questão de fé, e só é possível compreender a existência de Deus de forma subjetiva. Ainda assim, a pregação é a maneira mais comum de disseminar as crenças religiosas, com afirmações bem objetivas sobre a realidade em que vivemos.

Você observa, assim, que as pessoas acreditam naquilo que lhes foi ensinado. Seja na igreja, seja em suas famílias, seja em suas comunidades.

Em uma cultura islâmica, por exemplo, todos tendem a acreditar em Alá. Os islâmicos acreditam que é preciso rezar cinco vezes ao dia, jejuar no mês sagrado e visitar Meca uma vez na vida para obter as graças de sua divindade. Todos os islâmicos creem que, por coincidência, nasceram na cultura que descobriu o verdadeiro deus, com as verdadeiras instruções sobre como agradar o Criador e juntar-se a ele após a morte, no Paraíso.

Os cristãos, da mesma forma, acreditam que nasceram coincidentemente na cultura com a crença certa sobre o Criador. Para eles, o Alcorão não seria a palavra de Deus, e sim a Bíblia. Já os judeus creem que, por coincidência, nasceram todos na religião correta, e que a verdadeira e absoluta palavra de Deus é o Torá.

Você vê a mesma tendência em todas as religiões, inclusive nas já extintas, com seus panteões de deuses — Zeus, Amon-Rá, Thor, Ishtar, Poseidon, Ganesha, Horus, Apolo, Anúbis, Odin...

Não só isso, mas você observa também que cada grupo de cristãos interpreta a Bíblia de forma diferente, conforme suas seitas, padres ou pastores, e que se um interpretação está correta, a outra, por força da lógica, precisa estar errada. O mesmo ocorre com várias outras religiões.

A falta de preocupação com a veracidade da fé, entre os religiosos, causa-lhe espanto: se eles realmente creem que a fé errada os levará para o tormento eterno, ou para a separação eterna do Criador, como são capazes de aceitar com tanta facilidade a religião que, por coincidência, caiu em seu colo pelo acaso do nascimento em dado país, em dada família, em dada época? Não seria o caso de dedicar a vida inteira procurando pela verdadeira fé, pesquisando todos os livros sagrados, e todos os sábios, já que a vida eterna (ou a punição eterna) está em jogo? Que importância têm 80, 90, 100 anos de vida, em comparação com a eternidade?

Logicamente, eles deveriam tornar a descoberta da verdadeira religião sua prioridade absoluta. Mas é como se, no fundo, nenhum deles acreditasse no peso de sua decisão religiosa. Parecem apenas torcer para terem nascido, por sorte, na fé correta. E seja o que Deus quiser.

Você, assim, acaba concluindo que, para as pessoas, o ato de crer é mais importante do que o conteúdo da crença. E isso não lhe parece boa coisa.

religioso arabe lendo livro sagrado no deserto#4

Textos sagrados, divinamente humanos

É verdade esse bilete. Ass.: Deus

Tentando entender estes fenômenos estranhos, você se depara com os livros sagrados, supostamente a fonte de quase tudo o que alegam os religiosos.

Ao tentar entender como esses livros chegaram ao status de cânones da verdade universal, você os lê de cabo a rabo, e estuda um pouco de sua história, de seus autores, de seus compiladores e editores. Apesar da alegação de que tais obras são inspiradas pelo divino, você não consegue deixar de reparar nos traços falhos da humanidade em cada página.

Nestas supostas revelações sobre a verdade absoluta, princípios morais arcaicos, alguns horrendos e abomináveis, são estranhamente aprovados, incitados ou ordenados pelo próprio Criador. Descrições absolutamente incorretas sobre a natureza, típicas do entendimento primitivo dos homens da Antiguidade, recheiam o texto. E também não faltam mitos fabulosos, não menos implausíveis do que os das mitologias grega, egípcia ou nórdica.

Você, em sua ingenuidade, tenta conversar sobre tais inconsistências morais e contradições lógicas com religiosos, descobrindo que quase nenhum deles conhece seu próprio livro sagrado (e o que está, de fato, escrito nele). No caso dos cristãos, parece que a Bíblia é lida hoje na mesma frequência com que era lida na Idade Média, quando o povo era iletrado e as Escrituras circulavam apenas em latim.

Apesar de sua veneração aos livros sagrados, muitos religiosos parecem não ter qualquer interesse na palavra de Deus. "Estariam fingindo?", você se pergunta.

Mas há um subgrupo que lê, sim, os livros sagrados. E estes estão sempre dispostos a explicar as tais inconsistências da Bíblia, partindo da precisa de que não pode existir qualquer erro no livro sagrado — e que se parece haver um erro, este só pode estar na interpretação limita do reles ser humano. Funciona assim:

  • Se uma afirmação é comprovadamente falsa, segundo a ciência: diz-se que era metáfora.
  • Se um fato histórico é comprovadamente falso, segundo historiadores: diz-se que é erro humano.
  • Se Deus é descrito fazendo algo bom: Deus é bom, nunca faz nada de mau.
  • Se Deus é descrito fazendo algo mau: Ele é o Criador, tem direito a fazer o que quiser.
  • Se um preceito moral pregado na Bíblia é considerado bom atualmente: deve-se segui-lo, é a vontade de Deus.
  • Se um preceito moral pregado na Bíblia é considerado mau atualmente: ignore, é coisa da época antiga.
  • Se dois trechos da Bíblia se contradizem: se você olhar o contexto maior, não há contradição.
  • Se é impossível explicar a contradição: Deus é misterioso, mas está sempre certo.
  • E se você continuar questionando, será criticado por sua abjeta falta de fé. Afinal, fé é uma virtude. Quanto maior for sua capacidade de ignorar a realidade para aceitar o inaceitável, maior será sua recompensa divina.

    homem dirigindo carro dentro de uma igreja#5

    Devoção utilitária: uma questão prática

    Os benefícios concretos desfrutados pelos religiosos

    Observando os religiosos, você percebe que a religião serve, para eles, como uma espécie de cola social, ou articulador de comunidades.

    As pessoas valem-se de uma fé para se congregarem, para nutrir uma sensação de pertencimento. Enquanto muitos vagam sozinhos pela vida, atomizados e sem rumo, os religiosos tendem a viver de modo mais coletivo, reforçando sua caminhada e conjurando um sentido para suas existências.

    Não lhe passa despercebido que muitos jovens bandidos, que cresceram sem educação moral ou estrutura familiar adequada, encontram na religião — às vezes dentro das cadeias — um caminho para uma vida digna e honesta. Por meio da fé e do apoio de comunidades religiosas, estes convertidos abandonam o crime, formam família, livram-se da dependência de drogas e se transformam em uma força positiva para a sociedade.

    Em momentos de maior sofrimento psicológico, pessoas tendem a procurar ajuda no apoio de comunidades acolhedoras e em conceitos sobrenaturais.

    Não existe ateu quando o avião está caindo
    — Ditado popular

    Será, então, que é o medo da morte que leva as pessoas a acreditarem em Deus? Esse argumento, comumente usado por religiosos, não é exatamente uma confissão de que sua fé é baseada em medo e irracionalidade? São coisas que você se pergunta.

    Você repare, também, que mulheres idosas são as principais frequentadoras das igrejas do catolicismo, em uma fase da vida em que não mais trabalham, nem precisam cuidar dos filhos. Elas parecem buscar a companhia de outras fiéis e dos próprios padres. Já entre os evangélicos, em especial em países pobres, os cultos atuam como terapias em grupo, uma hipnose de autoajuda para despertar nos fiéis ideias e sentimentos de saúde, prosperidade e superioridade moral — fatores que aliviam o estresse de indivíduos com enfermidades, baixa renda, ou que se sentem inferiores da hierarquia social.

    O confessionário cristão, aliás, é como uma forma primitiva das modernas terapias psicológicas.

    Eis o que você conclui: a religião possui um aspecto utilitário inegável, que independe de ser verdadeira ou falsa. Ela é útil para quem acredita.

    padre segurando um cerebro na savana#6

    Evolução pela fé

    O sagrado é produto da seleção natural humana

    Aproximando-se do final de sua jornada, você se depara com a psicologia e, em especial, com a psicologia evolutiva — uma área das ciências que estuda como a evolução das espécies moldou a psicologia humana. E tudo começa a ficar mais claro.

    O ser humano, afinal, é geneticamente programado para crer no sobrenatural. Exceções à parte, o cérebro do homem requer todos os elementos congregados na religião:

  • Pertencimento a uma comunidade: o indivíduo tranquiliza-se ao fazer parte de um grupo de "pessoas boas", com crenças alinhadas, com redes de apoio e com uma missão em comum.
  • Valores morais definidos e legitimados pelo coletivo: os princípios morais religiosos guiam as decisões diárias do indivíduo, diminuindo sua responsabilidade moral e sua dificuldade decisória (pois o certo e o errado não são definidos por ele, mas pelo coletivo, pelo líder ou pela instituição).
  • Espiritualidade, ou sensação de transcendência: é uma forma ilusória que o indivíduo utiliza para se convencer de que existe para além das limitações da matéria e da física. A sensação de "estar confinado na carne", como um mero animal, precisa ser rechaçada, pois ela o desilude de suas pretensões de imortalidade e de ser especial.
  • Justificação de atos e práticas: a religião assegura ao indivíduo que ele está "agindo bem", lutando a "luta justa", conferindo-lhe autoconfiança, segurança, determinação, tranquilidade e "paz de espírito".
  • Ritualística: práticas cíclicas, periódicas, são importantes para marcar etapas da vida, reforçar valores e significados e manter comunidades unidas. Nascimento, formação de família e morte são ocasiões ritualísticas, com o batismo, o casamento e o funeral, todos podendo ser intermediados pela religião. Outros rituais úteis para reforçar a veracidade e a presença dos preceitos religiosos, pela mera repetição e demonstração de concordância do coletivo, são as festas e feriados religiosos, assim como as missas de domingo.
  • Medo da dor, da perda e da morte: a crença na vida após a morte e no "plano universal" para todos os eventos acalma a mente do indivíduo e pacifica seus temores. A ideia de que entes queridos, após falecimento, serão reencontrados no além-túmulo diminui o sofrimento da separação, assim como a esperança de vida eterna ameniza o pavor da morte. E para as agruras da vida cotidiana, é confortante acreditar que "há uma boa razão para tudo", e que "seremos recompensados no final".
  • Justiça reparadora: em muitas culturais, a ânsia por justiça — contra transgressores da moral estabelecida — resulta em punições como cadeia, pena de morte, tortura, apedrejamento, amputações, etc. Especialmente quando observamos as práticas históricas, os atos de rebalanceamento da justiça podem ser atrozes. A religião, porém, também oferece uma promessa de justiça reparadora: a da punição do Inferno, para os maus, e a da recompensa do Céu, para os bons. Essa noção de justiça universal é de grande importância para a sanidade mental de muitos indivíduos, em especial os que sofreram abusos graves, e também é um dos incentivos principais para se "agir bem" (daí o slogan se Deus não existir, então tudo é permitido).

Todo ser humano precisa lidar com estas necessidades, de uma forma ou de outra. A religião, porém, é a tecnologia social mais eficiente para lidar com elas, sendo uma solução guarda-chuva.

Observando este fenômeno social, você provavelmente se convence de que a existência de Deus, ou a veracidade dos textos sagrados, tem pouco ou nada a ver com a função desempenhada pela religião, e que as crenças transcendentais são apenas uma ferramenta para aprimorar o funcionamento de coletivos humanos.

homens estudando um cerebro com uma lupa#7

A verdade é irrelevante

"Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo"
— Voltaire

Finalmente, ocorre-lhe o insight fatídico. A verdade é irrelevante.

Quando você observa os animais, pode perceber que as verdades com relação ao universo pouco lhes importa. Não interessa aos pássaros saber sobre gravidade, ou aos peixes sobre hidrodinâmica. Com o ser humano ocorre o mesmo.

A diferença é que nós somos capazes de compreender a realidade melhor do que as demais espécies. Mas nossa compreensão do que é verdadeiro ou falso é utilitária: procuramos a verdade quando nos é vantajoso, e quando ela não é, comumente nos deitamos com a mentira.

A razão é simples: nós herdamos as propensões psicológicas de nossos ancestrais. E nós não somos descendentes dos "procuradores da verdade acima de tudo". Somos descendentes dos que sobreviveram e conseguiram se reproduzir. Assim, as crenças que são úteis para a sobrevivência e a reprodução são mais importantes do que as crenças verdadeiras.

Assim, por exemplo, se uma tribo for mais capaz de sobreviver caso seus membros acreditem cegamente no líder, este traço genético de crença cega será passado adiante para os descendentes, e se tornará o mais comum.

Por outro lado, uma tribo de pensadores moderados ou céticos talvez não consiga sobreviver em um conflito externo, pois o coletivo terá dificuldades em alinhar suas ações devido à diversidade de ideias, ou não conseguirá lutar com o mesmo ímpeto de uma tribo de fanáticos, o que levaria à sua extinção (e à eliminação de seus traços genéticos, de psicologia moderada e parcimoniosa).

Além disso, muito já se sabe sobre o antropomorfismo, a tendência das pessoas em enxergar traços e intenções humanas no mundo inanimado. Boa parte da religião e das superstições deriva desse fenômeno.

Por exemplo: ao se perguntar "quem criou o universo?", as pessoas estão supondo que algo precisa ser criado por alguém. Estão projetando sua experiência humana simples, de "pessoa cria objeto", para um nível universal, onde as observações cotidianas não se aplicam.

Em livros espíritas, afirma-se que doenças podem ser causadas por espíritos maus, que curas podem ser causadas por espíritos bons, e que os eventos da vida humana são planejados antes do nascimento de cada indivíduo, com a motivação de testar as pessoas. O religioso espírita, assim, é ensinado a ver o mundo como um videogame, em que, ao agir moralmente, acumula pontos para evoluir, caso contrário, perde pontos, ficando preso neste "mundo de provas e expiações", a Terra, ou mesmo regredindo para um mundo ainda pior. Trata-se, assim, de enxergar intenções mágicas onde não há nenhuma, ou maquinações espirituais onde existem apenas fenômenos físicos e biológicos.

Portanto, além de útil, a religião parece ser inseparável do ser humano. Ao perceber isso, como você se sente, sabendo que — neste nosso universo hipotético — Deus não existe, e que todas estas crenças são falsas?

Resta, enfim, um último problema a considerar: mesmo útil e inevitável, a religião não escapa às influências do mal.

mulher saltando no inferno#8

Programados para pecar

"Olhe, mas não toque.
Toque, mas não prove.
Prove, mas não engula."
— Satã — O Advogado do Diabo, filme de 1997

Você já deve saber de cor: o mal no mundo existe devido ao livre-arbítrio dado por Deus aos homens.

Mas, após pensar um pouco, você percebe que essa afirmação não faz nenhum sentido. Se o livre-arbítrio é a causa do mal, isso significa que Deus também faz o mal, às vezes? Ora, não? Por que será? Ah, sim: porque Deus é perfeito. Deus possui livre-arbítrio, mas ele não comete atos maus, porque ele é perfeito. Logo, o problema não é o livre-arbítrio, e sim a imperfeição.

Você então se pergunta: por que diabos Deus teria criado o ser humano imperfeito, de propósito? Sabendo que os homens fariam o mal, criando sofrimento inclusive para os bons, por que Deus pôs imperfeições no ser humano, quando poderia perfeitamente ter criado os homens perfeitos como ele próprio?

Como interpretar isso senão como sabotagem deliberada (e cruel)?

Embora não acredite em Deus, você começa a se revoltar com a ideia deste personagem fictício e suas supostas escolhas: ele teria criado bilhões de seres, todos destinados a sofrer, e a maioria destinada a ir para o Inferno, embora Deus soubesse desde o início qual seria o destino de cada um destes indivíduos. Já que Deus sabe como cada um usará seu livre-arbítrio, nenhum ser humano criado por ele realmente tem chance de se redimir, pois o futuro já é conhecido por ele (e, portanto, seu destino é predeterminado). Os bons não precisarão se redimir, e os maus estão fadados desde o nascimento. Deus, caso exista, apenas deixa transcorrer a desgraça anunciada, sem qualquer motivação lógica.

Qual é o sentido de criar um ser humano sabendo, de antemão, que ele irá sofrer, causar sofrimento e ir para Inferno?

Você, é claro, está ciente que o Inferno não é um conceito presente em todas as religiões. Está ciente também que muitos cristãos redefiniram o sentido da palavra "inferno", para se alinhar com sua ideia de um Deus bondoso. Ainda assim, qualquer interpretação de Deus ou deuses, em qualquer religião, parece-lhe demonstrar ou incompetência, ou maldade por parte das divindades.

Um ser dito onipotente e onisciente não conseguiria criar um universo mais justo e livre de sofrimento do que este em que vivemos? Com todo o poder possível, e como todo o conhecimento possível, isso é o melhor que Deus conseguiu fazer?

E ao observar os religiosos ao longo da história, pelo mundo todo, você os vê tão imbuídos de maldade quanto os grupos não religiosos. Injustiças, mentiras, complôs, conspirações, traições, censura, difamação, perseguição, vingança, violência, escravidão, estupros, prisões, torturas, execuções, guerras e genocídios — todas as imoralidades e crimes imagináveis estão relacionados, historicamente, tanto a atos religiosos quanto a atos não religiosos. Não se deveria esperar mais dos homens de Deus?

Mas ao não crer em Deus, você percebe que são todos os mesmos homens, com divindades diferentes, ou sem divindades — mas são os mesmos homens, e Deus parece estar ausente de todas as equações.

Afinal, o que pensa o ateu?

jesus cristo na privada no banheiro sarbax

Se você conseguiu manter em mente o cenário imaginário de que vivemos em um mundo sem Deus, você pode facilmente deduzir o que o ateu pensaria. Ele pensaria que todos ao redor dele são loucos.

Não se trata de uma loucura que requer internação, contudo. É uma loucura totalmente normal, geneticamente programada pela evolução humana, que gera este interessante paradoxo: pessoas plenamente funcionais, em boa parte capazes de raciocinar e entender o mundo, mas que acreditam em um ente imaginário que teria criado todo o universo, bem como as leis da física, e que as observa 24 horas por dia, estando presente ao mesmo tempo em todo o cosmos.

Alguns acreditam em práticas mágicas, como a oração, ou em rituais esotéricos, como beber o sangue simbólico de Cristo, ou dançar sob a lua cheia. Outros creem em fantasmas flutuando invisíveis pela Terra, suspirando conselhos ou maldades no ouvido dos pobres encarnados. Há os que fazem vodu, simpatias, terapia de cristais mágicos, promessas a santos, previsões astrológicas, limpeza de chakras. Há os que não comem certo tido de carne, os que não trabalham neste ou naquele dia da semana, os que cortam parte de sua genitália, os que se açoitam em sessões de "purificação".

De um ponto de vista racional, lógico e baseado em fatos, estas práticas são como um circo organizado por um manicômio.

Acima de tudo, as pessoas creem (a despeito de toda ou qualquer evidência) que a mente independe do cérebro. Elas creem que possuem almas imortais, e que irão magicamente despertar em outra dimensão do multiverso após a "morte de seu corpo". Sua memória, seu temperamento, seus aprendizados, sua capacidade de entender a linguagem, suas emoções — fatores que dependem do cérebro físico, o que é evidenciado quando lesões cerebrais desabilitam tais capacidades — reapareceriam em um plano de existência mágico, onde o ser humano ressuscitado viveria novas aventuras.

E, a julgar pelas estatísticas, você provavelmente é uma destas pessoas.

É realmente estranho, para um ateu, observar quase toda a humanidade neste estado de hipnose religiosa, ora gente racional, ora aparentemente alucinada. Afinal, o ateu não escolhe no que quer crer. A crença é feita pelo próprio cérebro, independentemente da vontade de cada um. Você pode dizer para os outros que crê, dizer para si mesmo que crê, agir como quem crê, mas se sua mente não acredita, não há nada que você possa fazer.

Se Deus existe, ele criou o ateu assim: incapaz de crer. E a quem cabe questionar a decisão divina?

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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