João saiu do hospital para morrer em casa — e gritou três vezes antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma vez chamou o médico. Não lhe deu injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primavera para sarar do reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias.
— Não fosse a umidade do ar... — gemia para o irmão nas compridas horas da noite.
Já não tinha posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, obrava-se sem querer. A filha tapava o nariz com dois dedos e fugia para o quintal.
— Ai, que fedor... Meu Deus, que nojo!
Com a desculpa que não podiam vê-lo sofrer, mulher e filha mal entravam no quarto. O irmão Pedro é que o assistia, aliviando as dores com analgésico, aplicando a sonda, trocando o pijama e os lençóis. Afofava o travesseiro, suspendia o corpinho tão leve, sentava -o na cama:
— Assim está melhor?
Chorando no sorriso, a voz trêmula como um ramo de onde o pássaro desferiu voo:
— Agora a dor se mudou...
Vigiava aflito a janela:
— Quantos dias faltam? Com o sol eu fico bom.
Pele e osso, pescocinho fino, olho queimando de febre lá no fundo. Na evocação do filho morto, havia trinta anos:
— Muito engraçado, o camaradinha — e batia fracamente na testa com a mão fechada. — Com um aninho fazia continência. Até hoje não me conformo.
A saudade do camaradinha acordava-lhe duas grandes lágrimas. No espelho da penteadeira surpreendia o vulto esquivo da filha.
— Essa nunca me deu um copo d'água.
Quando o irmão se levantava:
— Fique mais um pouco.
Ali na porta a sua querida Maria:
— Um egoísta. Não deixa os outros descansar.
Ao parente que sugeriu uma injeção para os gritos:
— Não sabe que tem aquela doença? Desenganado três vezes. Nada que fazer.
Na ausência do cunhado, esqueciam-no lá no quarto, mulher e filha muito distraídas. Horas depois, quando a dona abria a porta, com o dedo no nariz:
— É que eu me apurei — ele se desculpava, envergonhado. — Doente não merece viver.
A filha, essa, de longe sempre se abanando:
— Ai, como fede!
Terceiro mês o irmão passou a dormir no quarto. Ao lavar-lhe a dentadura, boquinha murcha, o retrato da mãe defunta? Nem podia sorver o café.
— Só de ruim é que não engole — resmungava a mulher.
Negou-lhe a morfina até o último dia: ele morre, a família fica. Tingiu de preto o vestido mais velho, o enterro seria de terceira.
Ao pé da janela, uma corruíra trinava alegrinha na boca do dia e, na doçura do canto, ele cochilava meia hora bem pequena. Batia a eterna continência, balbuciava no delírio:
— Com quem brinquei?
— Me conte, meu velho.
— Com Deus — e agitou a mãozinha descarnada. — Tanto não devia judiar de mim.
Fechando os olhos, sentiu a folha que bulia na laranjeira, o pé furtivo do cachorro na calçada, o pingo da torneira no zinco da cozinha — e o alarido no peito de rua barulhenta às seis da tarde. Se a mulher costurava na sala, ele ouvia os furos da agulha no pano.
— Muito acabadinho, o pobre? — lá fora uma vizinha indagava da outra.
Na última noite cochichou ao irmão:
— Depois que eu... Não deixe que ela me beije!
Ainda uma vez a continência do camaradinha, olho branco em busca da luz perdida, e o irmão enxugava-lhe na testa o suor da agonia.
Mais tarde a mulher abriu a janela para arejar o quarto.
— Eis o sol, meu velho — e o irmão bateu as pálpebras, ofuscado.
Era o primeiro dia de primavera.