O Sonho - Ivan Turguêniev | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo O Sonho - Ivan Turguêniev | Conto Completo
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O Sonho - Ivan Turguêniev | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 9 nov. 2024
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Um homem é atormentado por um sonho repetitivo e inquietante, em que uma figura misteriosa e melancólica revela segredos sombrios sobre o destino e a fragilidade da existência humana. Conforme o sonho se entrelaça com sua vida real, ele é levado a questionar a linha entre o mundo dos sonhos e a realidade.

O Pesadelo - Pintura de John Henry Fuseli
O Pesadelo - Pintura de John Henry Fuseli

I

Naquela época eu vivia com mamãe numa pequena cidade junto ao mar. Eu completara dezessete anos e mamãe não tinha nem trinta e cinco; ela havia-se casado muito jovem. Quando meu pai faleceu, eu estava apenas no sétimo ano de vida, mas me lembrava bem dele. Minha mãe era loira, de pequena estatura e um rosto encantador, ainda que eternamente triste, uma voz baixa e cansada e gestos tímidos. Na mocidade ela foi famosa por sua beleza e até o fim permaneceu atraente e meiga. Nunca vi olhos tão profundos, ternos e melancólicos, cabelos mais finos e macios, mãos mais delicadas. Eu a adorava, e ela me amava... Mas nossa vida não era alegre: parecia que uma dor misteriosa, incurável e imerecida estivesse corroendo o tempo todo a própria raiz da nossa existência. Essa dor não se explicava somente pela tristeza pelo pai, por mais que minha mãe o amasse com paixão, e por mais que guardasse sua memória com devoção. Não! Escondia-se algo aqui que eu não compreendia, mas que sentia, sentia fugazmente e com força sempre que me acontecia olhar para aqueles olhos silenciosos e imóveis, para aqueles lábios belos, também imóveis, apertados não com amargura, mas como que congelados para sempre.

Eu disse que mamãe me amava; mas havia momentos em que ela me repelia, em que minha presença lhe era fastidiosa, insuportável. Ela sentia, então, uma espécie de aversão involuntária por mim — e depois se horrorizava, se culpava, em lágrimas, e me apertava contra seu coração. Eu atribuía essas explosões momentâneas de inimizade ao desarranjo de sua saúde, à sua infelicidade... É verdade que essas sensações hostis podiam ser devidas, de certo modo, aos estranhos impulsos, incompreensíveis até para mim mesmo, de sentimentos maus e criminosos que de vez em quando se apoderavam de mim... Porém, esses impulsos não coincidiam com aqueles momentos de aversão.

Mamãe vestia-se sempre de preto, como se estivesse de luto. Nós vivíamos à larga, embora não frequentássemos quase ninguém.


II

Mamãe concentrou em mim todos os seus pensamentos e preocupações. Sua vida se fundiu com a minha. Esse tipo de relação entre pais e filhos nem sempre é saudável para os filhos... É mais comum que sejam prejudiciais. Além disso, éramos só eu e mamãe... e filhos únicos, na maior parte das vezes, se desenvolvem incorretamente. Ao criá-los, os pais se preocupam tanto consigo mesmos quanto com eles... Isso não é bom. Eu não fiquei nem mimado nem revoltado (tanto um quanto outro acontecem a filhos únicos), mas meus nervos ficaram desarranjados antes do tempo. Além do mais, minha saúde era bastante frágil — como a de mamãe, com quem eu me parecia muito. Eu fugia da companhia dos meninos da minha idade; evitava as pessoas em geral; mesmo com mamãe eu conversava pouco. Preferia ler acima de tudo; passear sozinho — e sonhar, sonhar! O que eu sonhava é difícil dizer: de fato, às vezes imaginava estar diante de uma porta semicerrada, atrás da qual escondiam-se mistérios inimagináveis, estou ali parado, esperando, em deleite, e não atravesso o umbral — fico pensando o que haverá lá adiante, e continuo à espera, paralisado... ou adormeço. Se em mim houvesse uma veia poética, eu provavelmente começaria a escrever versos; se tivesse propensão à religião, talvez me tornaria um monge. Mas eu não tinha nada disso — e continuava a sonhar... e a esperar.


III

Mencionei há pouco como, às vezes, eu adormecia sob o efeito de sonhos e pensamentos vagos. Geralmente eu dormia muito — e os sonhos em minha vida tinham um papel significativo; eu sonhava noite após noite. Eu não me esquecia deles, atribuía-lhes significado, considerava-os como profecias, tentava desvendar seu sentido oculto; alguns se repetiam de tempos em tempos, o que sempre me pareceu estranho e surpreendente. Sobretudo um sonho me perturbava. Parecia-me estar caminhando por uma rua estreita e mal pavimentada de uma cidade antiga, por entre edificações de pedra de alguns andares, com telhados pontiagudos. Estou à procura de meu pai, que não morreu, mas, por alguma razão, se esconde de nós e vive justamente numa dessas edificações. E eis que eu adentro um portão escuro e baixo, atravesso um pátio comprido, atulhado de troncos e tábuas e por fim penetro numa pequena sala com duas janelas redondas. Meu pai, de roupão, está em pé no meio da sala fumando um cachimbo. Ele não se parece nada com meu pai verdadeiro: é alto, magro, cabelos pretos, seu nariz é adunco, os olhos taciturnos e penetrantes; aparenta ter uns quarenta anos. Ele não está contente por eu tê-lo achado; também não estou nada feliz com nosso encontro; fico ali de pé, indeciso. Ele vira a cabeça para o outro lado, começa a murmurar algo e a andar de um lado para o outro com passos curtos... Depois vai se afastando sem deixar de murmurar, de vez em quando olhando para trás por cima do ombro. A sala se expande e desaparece na névoa... De súbito, fico com medo ao pensar que estou perdendo meu pai de novo, lanço-me no seu encalço, mas já não o vejo — só continuo ouvindo seu resmungar zangado como o de um urso... O coração para, dentro de mim — acordo e por muito tempo não consigo adormecer de novo... Por todo o dia seguinte eu penso nesse sonho e, é claro, não consigo chegar a nenhuma conclusão.


IV

Chegou o mês de junho. Nessa época, a cidade em que morávamos se agitava mais do que o habitual. Navios chegavam ao porto, viam-se muitas caras novas pelas ruas. Eu gostava, então, de perambular pela avenida à beira-mar, passando frente a cafés e hotéis, observando a figura peculiar dos marinheiros e pessoas sentadas sob toldos de lona, diante de mesinhas brancas com canecas de estanho cheias de cerveja.

Certa vez, ao passar por um café, vi um homem que de imediato prendeu toda a minha atenção. Usava uma batina negra e um chapéu de palha puxado sobre os olhos, estava sentado quieto, de braços cruzados. O cabelo negro e ralo descia-lhe em cachos quase até o nariz. Os lábios finos mordiam a ponta de um cachimbo curto. Esse homem me pareceu tão familiar em cada traço de seu rosto moreno e bilioso, toda a sua figura estava impressa em minha memória tão vivamente, que eu não pude deixar de me deter diante dele, nem pude deixar de perguntar a mim mesmo: quem é esse homem? Onde já o vi? Ao sentir, decerto, meu olhar insistente, ele ergueu para mim seus olhos negros e perfurantes... Sem querer, soltei uma exclamação...

Esse homem era aquele pai que eu procurava e que havia visto no sonho!

Não havia possibilidade de erro — a semelhança era impressionante. A própria batina, que descia até o chão e envolvia seus membros finos, por sua cor e forma lembrava aquele roupão no qual meu pai me apareceu.

"Será que eu estou dormindo?" — pensei... Não... É dia, o burburinho da multidão, o sol brilha com força no céu azul, que está em minha frente não é um fantasma, mas um homem vivo.

Aproximei-me de uma das mesas livres, pedi uma caneca de cerveja e um jornal — e me sentei, não muito longe da misteriosa criatura.


V

Abrindo o jornal diante do rosto, continuei a devorar o desconhecido com os olhos. Ele quase não se movia, e só de vez em quando levantava a cabeça pendida. Com certeza esperava por alguém. Eu olhava, olhava... Às vezes parecia que eu tinha inventado tudo isso, que não havia nenhuma semelhança, que eu me deixara levar pelo delírio quase involuntário da imaginação... Mas eis que "o homem" vira-se na cadeira ou ergue a mão de leve — e por pouco não dou um grito, porque de novo vejo em minha frente meu pai "noturno"!

Ele, enfim, notou minha atenção fixa, e ao olhar em minha direção, primeiro com perplexidade e depois com descontentamento, quis se levantar — e derrubou sua pequena bengala encostada à mesa. Eu me ergui de um salto, peguei-a e entreguei a ele. Meu coração batia com força.

Ele deu um sorriso forçado, agradeceu e, aproximando seu rosto do meu, ergueu as sobrancelhas e entreabriu a boca, como se algo o deixasse perplexo.

— Você é muito gentil, meu jovem — ele disse, com voz seca, ríspida e fanhosa. — Nos tempos de hoje isso é uma raridade. Permita-me cumprimentá-lo: você recebeu uma boa educação.

Não me lembro o que exatamente lhe respondi; mas a conversa logo se entabulou entre nós. Eu soube que ele era meu conterrâneo, que voltara há pouco da América, onde vivia há muitos anos, e que logo voltaria para lá. Ele se apresentou como barão... o nome, não consegui ouvir direito. Assim como meu pai "noturno", ele também terminava cada frase com um murmúrio para dentro, ininteligível. Ele quis saber meu sobrenome... Ao ouvi-lo, de novo pareceu espantado; depois me perguntou se eu morava há muito tempo nesta cidade e com quem. Respondi que morava com minha mãe.

— E seu pai?

— Meu pai faleceu há muito tempo.

Ele quis saber o nome de batismo de minha mãe e logo soltou uma risada acanhada — mas depois desculpou-se dizendo que esse era um costume americano e que ele, ele era assim mesmo esquisito. Então inquiriu-me onde ficava o nosso apartamento. Eu lhe disse.


VI

A agitação que no início da conversa tomara conta de mim, aos poucos se apaziguou; achava nossa aproximação um tanto estranha, e só. Não me agradava o sorrisinho com que o senhor barão me interrogava; como também não me agradava a expressão de seus olhos quando me fitava como se me sondasse... Neles havia algo feroz, protetor... algo terrível. Esses olhos, eu não tinha visto no sonho. Era estranho o rosto do barão! Esmaecido, cansado e ao mesmo tempo juvenil, desagradavelmente juvenil! Meu pai "noturno" não tinha aquela cicatriz profunda que riscava em diagonal a testa do meu novo conhecido e da qual eu não me dera conta até ficar mais perto.

Eu mal tivera tempo de informar ao barão a rua e o número da nossa casa quando um negro alto, envolto numa capa até as sobrancelhas, chegou por trás dele e bateu-lhe levemente no ombro. O barão virou-se e exclamou: "Ahá! Até que enfim!" — e, fazendo-me um leve aceno de cabeça, dirigiu- se com o seu companheiro para o interior do café. Eu permaneci sob o toldo, queria esperar pelo barão, não tanto para falar com ele de novo (eu realmente não sabia sobre o que poderia conversar), mas para confirmar minha impressão inicial. Porém, passou-se meia hora; uma hora... Nada do barão. Penetrei no café, percorri todas as salas; não vi nem o barão, nem o seu companheiro, em lugar algum... Deviam talvez ter saído pela porta dos fundos.

Minha cabeça estava doendo um pouco — então, para me refrescar, caminhei pela beira do mar até chegar a um grande parque afastado da cidade, criado há uns duzentos anos. Depois de passear por duas horas à sombra de enormes carvalhos e plátanos, voltei para casa.


VII

Nossa criada correu ao meu encontro, bastante alarmada, assim que surgi na porta. Pela expressão de seu rosto, adivinhei de imediato que algo de ruim acontecera em casa durante minha ausência. E de fato: fiquei sabendo que uma hora antes, no dormitório de mamãe, súbito se ouvira um grito horrível; a criada fora acudir, encontrando-a no chão, num desmaio que durou alguns minutos. Mamãe acabou por recobrar os sentidos — mas foi preciso deitá-la na cama; tinha a aparência assustada e estranha; não proferia palavra, não respondia às perguntas — somente olhava para os lados e estremecia. A criada mandou o jardineiro buscar o médico. O médico chegou e prescreveu um calmante; mas nem a ele mamãe quis dizer algo. O jardineiro assegurou que, alguns instantes após o grito ouvido no quarto da minha mãe, vira um desconhecido fugindo às pressas pelos canteiros do jardim, em direção ao portão da rua. (Nós morávamos numa casa térrea, cujas janelas davam para um jardim bem grande). O jardineiro não teve tempo de ver o rosto do homem; mas viu que era um tipo magro, usava um chapéu de palha enterrado, e um sobretudo longo... "A roupa do barão!" — em seguida me veio à cabeça. Alcançá-lo, o jardineiro não pôde; além do mais, haviam-no chamado de imediato na casa e o mandaram atrás do médico. Entrei no quarto da minha mãe; ela estava deitada no leito, mais pálida que o travesseiro em que sua cabeça repousava. Ao me reconhecer, sorriu debilmente e me estendeu a mão. Sentei-me perto dela, comecei a perguntar; no começa ela só negava; por fim, entretanto, admitiu que vira algo que a tinha assustado muito.

— Alguém entrou aqui? — perguntei.

— Não — ela respondeu rapidamente —, ninguém veio, mas me pareceu... eu imaginei...

Ela se calou e cobriu os olhos com a mão. Quis comunicar-lhe o que soube pelo jardineiro, aproveitar para contar sobre o meu encontro com o barão... Mas, por alguma razão, as palavras congelaram em meus lábios. Atrevi-me, mesmo assim, a observar que fantasmas não costumam aparecer de dia...

— Deixe-me — ela sussurrou —, por favor; não me atormente. Algum dia você vai saber...

Calou-se novamente. Suas mãos estavam geladas e seu pulso, acelerado e irregular. Dei-lhe o remédio para que tomasse, afastando-me um pouco para não incomodar. O dia inteiro ela não se levantou. Ficou deitada, imóvel e quieta, apenas, de quando em quando, suspirava profundamente e arregalava os olhos com espanto. Todos em casa estavam perplexos.


VIII

À noite mamãe teve um pouco de febre — e ela me mandou embora. Entretanto, não fui para o meu quarto, deitei-me no divã do quarto vizinho. A cada quarto de hora eu me levantava, me acercava da porta na ponta dos pés, escutava... Tudo continuava em silêncio — mas é provável que mamãe não tenha dormido naquela noite. Quando fui vê-la, pela manhã bem cedo — o rosto dela parecia inflamado, os olhos brilhavam com um brilho anormal. Ao longo do dia ela teve uma pequena melhora, mas à noite a febre subiu novamente. Tinha permanecido obstinadamente calada, mas começou a falar com uma voz atabalhoada e entrecortada. Ela não delirava, suas palavras faziam sentido, mas não tinham nenhuma conexão. Súbito, por volta da meia-noite, num movimento convulsivo, ergueu-se um pouco na cama (eu estava sentado perto), e com a mesma voz apressada, bebericando água do copo a cada instante, abanando fracamente os braços e sem me olhar em nenhum momento, pôs-se a contar... Por vezes ela se interrompia, fazia um esforço e prosseguia... Tudo isso era tão estranho, como se ela fizesse tudo num sonho, como se estivesse ausente, como se outra pessoa falasse por sua boca ou a obrigasse a falar.


IX

— Escute o que vou lhe contar — ela começou —, você não é mais um menino; precisa saber de tudo. Eu tinha uma boa amiga... Casou-se com um homem a quem amava de todo o coração —, e estava muito feliz com seu marido. Já no primeiro ano de casamento, ambos foram para a capital passar algumas semanas e se divertir. Hospedaram-se em um bom hotel e saíam bastante a teatros e bailes. Minha amiga era muito bonita — todos a notavam, os jovens a cortejavam, — mas houve, entre todos, um... oficial. Ele a seguia com insistência, e por toda parte ela encontrava os seus olhos negros e maus. Ele não se apresentou e não lhe falou nenhuma vez, apenas a olhava o tempo todo — tão insolente e estranho. Todos os prazeres da capital foram envenenados por sua presença. Ela começou a persuadir o marido a irem embora o quanto antes, e já estavam se preparando para viajar. Certa vez, o marido foi até o clube: os oficiais o convidaram — do mesmo regimento daquele oficial — para jogar cartas... Pela primeira vez, ela se viu sozinha. O marido estava tardando a voltar — ela dispensou a criada, foi se deitar... Súbito, sentiu um grande pavor — ficou gelada e começou a tremer. Pareceu- lhe ter ouvido uma batida detrás da parede — como se um cão a estivesse arranhando, — e se pôs a fitar a parede. No canto havia uma lâmpada acesa; o quarto era todo revestido de tecido... Alguma coisa de repente se mexeu ali, se elevou, rompeu-se... E, vindo de dentro da parede, todo escuro e comprido, surgiu aquele homem horrível com olhos maus! Ela quis gritar e não pôde. Ficou completamente paralisada de medo. Ele se aproximou com agilidade, como um animal de rapina, jogou algo sobre sua cabeça, algo sufocante, pesado e branco... O que aconteceu depois, não me lembro... não me lembro! Isso parecia uma morte, um assassinato... Quando, por fim, se dissipou aquela terrível névoa — quando eu... Quando minha amiga... voltou a si, no quarto não havia mais ninguém. Outra vez — e por muito tempo — ela não achou forças para gritar, finalmente gritou... Em seguida, tudo se embaralhou de novo...

Depois ela viu o marido junto de si, que havia ficado retido no clube até as duas da madrugada... Ele estava lívido. Pôs-se a fazer-lhe perguntas, mas ela não disse nada... Então, ela ficou doente... No entanto, pelo que me recordo, quando ficou sozinha, ela examinou aquele lugar na parede... Sob o estofado, revelou-se uma porta oculta. E de sua mão havia sumido a aliança de casamento. Essa aliança tinha um formato incomum: nela se alternavam sete estrelinhas douradas e sete prateadas; era uma joia antiga de família. O marido perguntou-lhe o que aconteceu com o anel: ela não soube responder. Ele pensou que ela devia tê-lo deixado cair, procurou por toda parte, não o encontrou em lugar algum. Tal foi a tristeza que se abateu sobre ele, que decidiu regressar à casa o quanto antes, e assim que o doutor consentiu — eles deixaram a capital... Mas, imagine! Bem no dia da partida, depararam na rua com uma padiola... Nessa padiola estava deitado um homem que acabara de ser assassinado, com a cabeça rachada — imagine! Esse homem era aquele terrível visitante noturno de olhos maus... Havia sido morto durante um jogo de cartas!

Depois, minha amiga foi para o campo... Tornou-se mãe pela primeira vez... E viveu com seu marido durante alguns anos. Ele nunca soube de nada; além disso, o que ela podia dizer? Ela mesma não sabia.

Mas a felicidade anterior havia desaparecido. A escuridão se instalou na vida deles — e nunca mais cessou essa escuridão... Eles não tiveram outros filhos, nem antes, nem depois... e esse filho...

Mamãe estremeceu e cobriu o rosto com as mãos...

— Mas diga-me agora — ela continuou, com força redobrada —, por acaso minha amiga tem alguma culpa? De que ela podia se recriminar? Ela foi castigada, mas acaso não tinha o direito de afirmar perante o próprio Deus que o castigo que se abateu sobre ela foi injusto? E por que a ela, como se fosse uma criminosa torturada por remorsos de consciência, por que a ela teria de ressurgir o passado de uma forma tão terrível, depois de tantos anos? Macbeth assassinou Banquo — portanto, não era de surpreender que lhe aparecesse a visão... Mas eu...

Nesse ponto a fala de mamãe se embaralhou e se confundiu tanto que deixei de compreendê-la... Eu já não tinha dúvidas de que ela estava delirando.


X

Que impressão estupenda me causou a história de mamãe — qualquer um poderá entender! A partir de sua primeira palavra, adivinhei que ela estava falando de si própria, e não de uma amiga sua; seu lapso confirmou minha suspeita. Então... queria dizer que era mesmo o meu pai que eu buscara no sonho e que vira durante a vigília! Ele não tinha sido morto, como mamãe pensava, apenas estava ferido... E ele veio visitá-la e fugiu, assustado com o pavor dela. Subitamente tudo ficava claro: o sentimento de repulsa involuntária que eu às vezes despertava nela, sua tristeza constante, nossa vida solitária... Lembro-me de que minha cabeça dava voltas — eu a agarrava como se desejasse segurá-la no lugar. Mas um pensamento fincou- a se em mim como um cravo: decidi que, sem falta, custasse o que custasse, ia encontrar de novo esse homem! Para quê? Com que objetivo? — eu não tinha ideia, mas encontrar... encontrá-lo — tornou-se para mim questão de vida ou morte! Na manhã seguinte, mamãe finalmente se acalmou... a febre passou... ela caiu no sono. Deixando-a aos cuidados de nossos senhorios e criados, saí à procura.


XI

Antes de tudo, naturalmente, dirigi-me ao café onde havia encontrado o barão, mas ali ninguém o conhecia nem o notara; ele era um frequentador ocasional. Os proprietários tinham notado o negro — sua figura saltava aos olhos; mas quem ele era, onde estava — tampouco ninguém sabia. Deixei meu endereço no café, para alguma eventualidade, e pus-me a perambular pelas ruas e avenidas costeiras, nas imediações do cais, nos bulevares, perscrutando todos os lugares públicos, e em lugar algum encontrei algo parecido com o barão ou seu companheiro!... Como não havia entendido bem o sobrenome do barão, não podia ir à polícia; no entanto, notifiquei dois ou três agentes da ordem pública que estavam por ali (na verdade, eles me olharam com espanto, sem me crer completamente), disse-lhes que seus esforços seriam generosamente recompensados, caso conseguissem encontrar a pista daqueles dois indivíduos cuja aparência tentei descrever com a maior precisão possível. Depois de investigar desse modo até a hora do almoço, voltei para casa exausto. Mamãe havia-se levantado da cama; mas à sua tristeza habitual acrescentara-se algo novo, um ar pensativo e perplexo que me dilacerava o coração. Passei a tarde com ela. Nós quase não conversamos: ela jogava paciência, eu olhava em silêncio para suas cartas. Ela não disse uma palavra nem sobre sua história, nem sobre o que acontecera na véspera. Era como se tivéssemos combinado em segredo não tocar em todos aqueles acontecimentos lúgubres e estranhos... Ela parecia aborrecida e envergonhada pelo que havia deixado escapar sem querer; ou talvez não se lembrasse bem do que havia dito em seu delírio meio febril, — esperava que eu a poupasse... E de fato eu a estava poupando, e ela o percebia; e, como ontem, evitava o meu olhar. Não consegui dormir a noite toda. Lá fora, sem aviso, levantou-se uma terrível tempestade. O vento uivava e corcoveava com fúria, os vidros das janelas retiniam e tilintavam, grunhidos e gemidos desesperados turbilhonavam no ar, como se algo lá em cima se houvesse rompido, e, num lamento frenético, ameaçasse as casas atordoadas. Próximo ao alvorecer, caí num sono leve... E então me pareceu que alguém entrava em meu quarto e me chamava, pronunciando meu nome — em voz baixa, mas firme. Ergui a cabeça e não vi ninguém; mas, que coisa estranha! Eu não só não me assustei, mas até fiquei feliz; ocorreu-me a certeza de que agora, sem dúvida, eu alcançaria meu objetivo. Vesti-me às pressas e saí de casa.


XII

A tempestade amainou... Mas suas últimas trepidações ainda eram sentidas. Ainda era cedo — nas ruas não andavam pessoas, — em muitos lugares, destroços de canos, telhas, tábuas das cercas esmigalhadas, galhos de árvores quebrados... "O que aconteceu à noite no mar!" — pensei, ao ver os rastros deixados pela tempestade. Eu quis ir até o cais, mas minhas pernas, como que obedecendo a uma atração inelutável, levaram-me para outro lado. Mal se haviam passado dez minutos e eu já me encontrava numa parte da cidade que nunca antes visitara. Não ia rápido, mas andava sem parar, passo a passo, com uma estranha sensação no peito; eu esperava por algo extraordinário, excepcional, e ao mesmo tempo, tinha certeza de que esse extraordinário se realizaria.


XIII

E eis que ele chegou, esse extraordinário, esse esperado! De súbito, uns vinte passos à minha frente, vi aquele negro que no café conversara com o barão na minha presença! Envolto na mesma capa que eu já então notara, como se tivesse surgido da terra e, de costas voltadas para mim, andava com passos apressados pela calçada estreita da travessa em curva! Lancei-me no seu encalço, mas ele também redobrou os passos, embora sem olhar para trás, e deu uma guinada abrupta na esquina de uma casa que se interpusera. Corri até essa esquina, dobrei-a tão rápido quanto ele... Mas, que milagre! Diante de mim, uma rua comprida, estreita e totalmente deserta; a neblina matinal a preenchia toda com seu chumbo opaco, — mas meu olhar a percorre até o fim, eu posso contar todas as suas edificações... e nem um ser vivo se mexe em lugar algum! O homem alto de capa desapareceu tão subitamente como surgira! Fiquei estupefato... mas apenas por um instante. Um outro sentimento se apoderou de mim: essa rua que se estendia diante de meus olhos, toda muda e como que morta, — eu a reconheci! Era a rua do meu sonho. Eu estremeço, me encolho — a manhã é tão fresca — e sem hesitar um momento, com uma espantosa confiança, caminho à frente!

Começo a procurar com os olhos... Aí está: à direita, na esquina, projetando-se sobre a calçada, eis aí a casa do meu sonho, eis o portão antigo, com caracóis de pedra de ambos os lados... É verdade que as janelas da casa não são redondas, mas retangulares... mas isso não importa... Bato no portão, duas, três vezes, cada vez com mais e mais força... O portão se abre com um rangido pesado, vagaroso, como se estivesse bocejando. Diante de mim há uma jovem criada, com cabelo desgrenhado e olhos sonolentos. Pelo visto, acabara de acordar.

— Aqui mora o barão? — pergunto, enquanto percorro com os olhos, de um relance, o pátio profundo e estreito... Isso; isso mesmo... aí estão as tábuas e os troncos, exatamente como em meu sonho.

— Não — respondeu a criada —, o barão não mora aqui.

— Como não! Não pode ser!

— Agora ele não está. Partiu ontem.

— Para onde?

— Para a América.

— A América! — repeti sem querer. — Mas ele volta?

A criada me olhou, desconfiada.

— Isso nós não sabemos. Pode ser que ele nem volte.

— Fazia tempo que ele morava aqui?

— Não muito, talvez uma semana. Agora se foi de vez.

— E como é o sobrenome desse barão?

A criada me encarou.

— O senhor não sabe o seu sobrenome? Nós o chamamos só de Barão. Ei! Piotr! — ela gritou, vendo que eu estava avançando. — Vem cá; tem um estranho aqui fazendo perguntas sobre tudo.

De dentro da casa surgiu a figura desajeitada de um operário robusto.

— O que foi? O que você quer? — ele perguntou com voz rouca — e, depois de me ouvir, repetiu de modo soturno o que a criada havia dito.

— Mas quem é que mora aqui? — eu disse.

— Nosso patrão.

— E quem é ele?

— O marceneiro. Nesta rua todos são marceneiros.

— Posso vê-lo?

— Agora não pode, ele está dormindo.

— E na casa, posso entrar?

— Não pode. Vá embora.

— Mas depois posso ver seu patrão?

— Por que não? Pode. Ele sempre pode... Para isso ele é comerciante. Só que, agora, vá embora. Olha como é cedo.

— Mas e o seu companheiro? — perguntei à queima-roupa.

O operário voltou-se perplexo, primeiro para mim, depois para a criada.

— Quem? — disse por fim. — Vá embora, senhor. Depois o senhor pode vir. Aí, conversa com o patrão.

Saí para a rua. O portão bateu atrás de mim, pesada e bruscamente, desta vez sem ranger.

Eu reparei bem na rua, na casa, e fui embora, mas não para minha casa. Sentia algo como uma decepção. Tudo o que acontecera comigo era tão estranho, tão fantástico, — e no entanto, como acabara de um jeito tolo! Eu tinha certeza, estava convicto de que nessa casa veria a sala conhecida, — e no meio dela o meu pai, o barão, de roupão, com um cachimbo... Em lugar disso — o dono da casa é um marceneiro, pode-se visitá-lo quando se quiser e talvez até encomendar-lhe alguns móveis...

E o pai partiu para a América! E agora, o que me restava fazer?... Contar tudo para a mãe — ou enterrar para sempre a própria lembrança desse encontro? Decididamente eu não estava em condições de me conformar com a ideia de que a um começo tão sobrenatural e misterioso, viesse se juntar um final tão sem sentido e ordinário!

Não querendo voltar para casa, fui indo aonde meus pés me levaram, fora da cidade.


XIV

Andava cabisbaixo, sem pensamentos, quase sem emoções, inteiramente imerso em mim mesmo. Um rumor cadenciado, surdo e zangado veio me tirar desse torpor. Levantei a cabeça: era o mar que estava uivando e zunindo a uns cinquenta passos. Vi que estava andando pela areia de uma duna. Dilacerado pela tempestade noturna, o mar se encarneirava até o horizonte, e as cristas íngremes de longos eixos rolavam uma atrás da outra e quebravam na margem. Aproximei-me e caminhei ao longo da linha deixada pelo seu vaivém na areia, amarela e machucada, salpicada de retalhos de plantas marinhas viscosas, destroços de conchas e serpentinas de capim. As gaivotas de asas pontudas e gritos queixosos surgiam do longínquo abismo aéreo trazidas pelo vento, erguiam-se brancas como a neve no céu cinzento de nuvens, desabavam abruptas e, como que saltando de uma onda a outra, iam-se e sumiam como fagulhas prateadas nos rastros de espumas borbulhantes. Notei que algumas delas insistiam em rodopiar acima de uma grande pedra que se levantava, solitária, em meio ao tecido monótono da costa arenosa. O áspero capim crescia em touceiras desiguais de um dos lados da pedra; e naquele local em que seus caules emaranhados emergiam da amarela terra salgada, algo pretejava, algo meio comprido, arredondado, não muito grande... Pus-me a observar... Alguma coisa escura jazia lá, jazia imóvel ao lado do rochedo... A coisa se tornava mais clara, mais nítida à medida que eu me aproximava...

Restavam apenas uns trinta passos até lá...

Mas é a silhueta de um corpo humano! É um cadáver; um afogado expelido pelo mar! Aproximei-me da pedra.

É o cadáver do barão, o meu pai! Estaquei, estupefato. Só agora entendia que desde a manhã eu estava sendo levado por forças desconhecidas que me tinham sob seu poder — e durante alguns instantes em minha alma não houve nada além do incessante barulho do mar — e do pavor mudo ante o destino que desabara sobre mim...


XV

Ele estava deitado de costas, um pouco virado de lado, com a mão esquerda jogada por trás da cabeça... a direita estava dobrada sob seu corpo retorcido. O lodo viscoso tinha engolido a extremidade dos pés, calçados com botas altas de marinheiro; a curta jaqueta azul, toda impregnada de sal marinho, não desabotoara; um lenço vermelho envolvia seu pescoço com um nó apertado. O rosto moreno, voltado para o céu, parecia estar sorrindo; abaixo do lábio superior arregaçado, viam-se pequenos dentes apinhados; as pupilas opacas pouco se distinguiam do branco escurecido nos olhos semicerrados; os cabelos, cobertos de bolhas de espuma e detritos, estavam espalhados pela terra e revelavam uma testa lisa, com o rasgo violáceo de uma cicatriz; o nariz afilado erguia-se como nítida linha branca entre duas bochechas encovadas. A tempestade da noite passada fez o seu serviço... Ele não viu a América! O homem que injuriara minha mãe, que arruinara sua vida, — meu pai — sim! Meu pai — disso não pude duvidar, — jazia a meus pés desvalido, estendido na lama. Eu experimentava uma sensação de vingança satisfeita, e de pena, e de repulsa, e de horror, mais do que tudo... de horror duplo: diante do que estava vendo e diante do que sucedera. Aquilo de mau, de criminoso que mencionei, aqueles impulsos inexplicáveis surgiam em mim... me asfixiavam. "Ahá! — pensava comigo, — eis porque sou assim... Eis quando o sangue se manifesta!" Eu estava parado junto ao cadáver, olhava e esperava: será que não se mexeriam essas pupilas mortas, não estremeceriam esses lábios gélidos? — Não! Tudo está imóvel; o próprio capim onde a maré o jogara parecia congelado; até mesmo as gaivotas voaram para longe — nenhum destroço em lugar algum, nenhuma tábua ou fragmento de corda. Por toda parte o vazio... Somente ele — e eu — e o mar que murmurejava ao longe. Olhei para trás: o mesmo vazio também estava lá: uma cadeia de colinas sem vida no horizonte... Nada mais! Era terrível para mim deixar esse infeliz naquela solidão, no lodo marítimo, para ser comido por peixes e aves; uma voz interior dizia que eu deveria buscar, chamar alguém, senão para ajudar — tarde demais! — pelo menos para recolher, levá-lo para um abrigo... Mas um medo indizível se apossou de mim. Parecia-me que esse homem morto sabia que eu vim para cá, que ele mesmo arranjou esse último encontro, — até pensei ouvir aquele murmúrio surdo familiar... Afastei-me correndo... Olhei para trás uma vez mais... Algo brilhante saltou-me aos olhos; e isso me deteve. Era um aro dourado na mão estendida do cadáver... Reconheci o anel de casamento de minha mãe. Lembro-me de que me forcei a retornar, me aproximar, me agachar... Lembro-me do toque pegajoso de seus dedos gelados, lembro-me de como fiquei sem ar, fechei os olhos, rangi os dentes ao arrancar o anel obstinado...

Finalmente ele foi arrancado — e eu corro, corro em disparada para longe — e algo vem voando atrás de mim, e me alcança, e me pega.


XVI

Tudo o que experimentei e senti estava, provavelmente, escrito em meu rosto quando voltei à casa. Mamãe, assim que entrei em seu quarto, logo se endireitou e me lançou um olhar interrogativo e com tanta insistência que eu, ao tentar sem êxito explicar, terminei por estender-lhe o anel em silêncio. Ela empalideceu terrivelmente, seus olhos se arregalaram muito e ficaram mortiços, como os dele, — ela soltou um pequeno grito, agarrou o anel, cambaleou, caiu sobre o meu peito e ficou assim imóvel, com a cabeça jogada para trás, devorando-me com grandes olhos enlouquecidos. Abracei-a com ambas as mãos e, de pé, sem me mexer do lugar, sem pressa, contei-lhe baixinho tudo; sem nada omitir: meu sonho e o encontro; e tudo, tudo... Ela me escutou até o fim sem proferir palavra, só seu peito arfava cada vez mais — e os olhos de súbito se avivaram e ela os baixou. Em seguida, ela enfiou a aliança em seu dedo, e afastando-se, começou a pegar a mantilha e o chapéu. Perguntei-lhe onde pretendia ir. Ela dirigiu-me um olhar surpreso e quis responder, mas a voz a traiu. Ela estremeceu algumas vezes, esfregou as mãos como se tentasse aquecê-las, por fim disse: "Vamos agora para lá".

— Para onde, mamãe?

— Onde ele está... Eu quero ver... Eu quero saber... Eu vou saber...

Ainda tentei dissuadi-la; mas ela por pouco não sofreu um ataque de nervos. Entendi que era impossível opor-me ao seu desejo, — e lá fomos nós.


XVII

E eis que estou caminhando de novo pela areia da duna, mas já não vou sozinho. Dou o braço a minha mãe. O mar se afastou, foi ainda mais para longe; ele se acalmou — mas mesmo seu barulho fraco ainda é terrível e sinistro. Por fim apareceu à frente a pedra solitária — e o capim. Eu olho, tento distinguir aquele objeto arredondado que jazia ali por terra — mas não vejo nada. Chegamos mais perto; diminuo os passos sem querer. Mas onde está aquilo, escuro e imóvel? Somente os talos das ervas, escurecendo a areia já seca. Aproximamo-nos mais da pedra... O cadáver não está em lugar algum — no lugar onde jazia, permanece uma depressão, dá para ver onde ficavam os braços e as pernas... O capim ao redor parece amassado — podem-se ver as pegadas de uma pessoa; elas passam por sobre a duna — depois desaparecem ao alcançar as colinas rochosas.

Mamãe e eu nos entreolhamos e ficamos assustados com o que lemos em nossos próprios rostos...

Teria ele se levantado e ido embora?

— Mas você o viu morto? — pergunta ela, num sussurro.

Só pude balançar a cabeça. Não se haviam passado três horas desde que eu topara com o cadáver no barão... Alguém devia tê-lo descoberto e levado embora. Era preciso procurar: quem fez isso e o que aconteceu com ele?

Mas primeiro era preciso ocupar-me de mamãe.


XVIII

Enquanto andávamos até o lugar fatídico, ela estava febril, mas se dominava. O sumiço do cadáver a atingiu como uma última desgraça. Ela ficou arrasada. Temi por sua sanidade. A muito custo levei-a para casa. Coloquei-a no leito outra vez, e novamente chamei o doutor; mas assim que mamãe voltou um pouco a si, exigiu que eu fosse sem demora procurar 'aquele homem'. Obedeci. Mas, apesar de tomar todas as medidas possíveis, não descobri nada. Estive algumas vezes na polícia, visitei todos os povoados dos arredores, fiz publicar anúncios nos jornais, recolhi informações por toda parte — tudo em vão! É verdade que chegou até mim a notícia de que fora levado um afogado a um dos povoados costeiros... Voei para lá, mas o homem já havia sido enterrado, e além disso, suas características não batiam com as do barão. Descobri em que navio ele havia ido para a América; no início, todos tinham certeza de que esse navio havia naufragado durante a tempestade; no entanto, meses mais tarde, começaram a circular rumores de que ele fora visto ancorado no porto nova-iorquino. Não sabendo mais que passo dar, pus-me a buscar o seu companheiro que eu havia visto, oferecendo nos jornais um valor bastante significativo em dinheiro, caso ele se apresentasse em nossa casa. De fato, um negro alto, com capa, tinha-nos visitado durante minha ausência... Mas, depois de inquirir a criada, ele se retirou bruscamente e não mais voltou.

E assim perdeu-se a pista do meu... meu pai; assim ele desapareceu para sempre na muda escuridão. Mamãe e eu nunca mais falamos sobre ele; somente uma vez, lembro-me que ela se admirou de eu nunca haver mencionado meu estranho sonho; e acrescentou em seguida: "Quer dizer que ele realmente..." — e não completou seu pensamento. Mamãe esteve doente por muito tempo, e mesmo após o seu restabelecimento, nossas relações não voltaram a ser o que eram. Ela ficava embaraçada em minha presença — até a sua morte... Precisamente, embaraçada. E nesse caso não há nada que se possa fazer. Tudo se apaga, as lembranças dos mais trágicos acontecimentos familiares pouco a pouco esmaecem em intensidade e ardor; mas, se a sensação de constrangimento se instala entre duas pessoas próximas — não há nada que a possa desfazer. Nunca mais tive aquele sonho que tanto me afligira outrora; eu já não "encontrava" meu pai; mas de vez em quando me acontecia — e acontece até hoje — em sonhos, escutar como que uns gemidos longínquos, lamentos incessantes e plangentes; eles ressoam em algum lugar por trás de um alto muro impossível de ser escalado, partem-me o coração — eu choro de olhos fechados, e não consigo entender: se é uma pessoa viva a gemer, ou isso que eu ouço é o arrastado e selvagem bramido do mar revolto? E eis que ele se transforma naquele murmúrio bestial — e eu desperto com aflição e pavor na alma.

Tradução de Márcia C. Kondratiuk
e Ekaterina Vólkova Américo

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