Os três livros
A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além.
Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho.
O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo que se lhe desbota a mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotões.
Trazem-lhe os jornais o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas como os jornais vêm apenas para meia dúzia de pessoas, formam estas a aristocracia mental da cidade. São "Os Que Sabem". Lembra o primado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.
Atraídos pelas terras novas, de feracidade sedutora, abandonaram-na seus filhos; só permaneceram os de vontade anemiada, débeis, faquirianos. "Mesmeiros", que todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do presente e pitam — pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.
Entre as originalidades de Oblivion uma pede narrativa: o como da sua educação literária.
Promovem-se três livros venerandos, encardidos pelo uso, com as capas sujas, consteladas de pingos de vela — lidos e relidos que foram em longos serões familiares por sucessivas gerações. São eles: La Mare d'Auteuil , de Paul de Kock, para o uso dos conhecedores do francês; uns volumes truncados do Rocambole , para enlevo das imaginações femininas; e Ilha maldita , de Bernardo Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas.
O dono primitivo seria talvez algum padre morto sem herdeiros. Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros forraram-se à propriedade individual. Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole diz na rodinha da farmácia:
— Onde andará o Rocambole ?
Informam-no logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor último, ficando desde esse momento como o seu novo depositário. Processo sumaríssimo e inteligente.
Quando se esgotou a minha provisão de livros e, ignorante ainda da riqueza literária da terra, deliberei decorrer ao estoque local, dirigi-me a um dos Seis. O homem enfunou-se de legítimo orgulho ao dar-me os informes pedidos.
— Temos obras de fôlego, poucas mas boas, e para todos os paladares. Gênero pândego, para divertir, temos, "por exemplo", La Mare d'Auteuil , de Paul de Kock. Impagável!
— Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.
— Temos o célebre Rocambole , "gênero imaginoso"; infelizmente está incompleto; faltam uns dezessete volumes.
— Não me serve o resto.
— E temos uma obra-prima nacional, a Ilha maldita , do "nosso" Bernardo Guimarães.
Parando aí o catálogo, era forçoso escolher.
No concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça — mas uma roça adjetivada por menina de Sion, onde os prados são amenos , os vergéis floridos , os rios caudalosos , as matas viridentes , os píncaros altíssimos , os sabiás sonorosos , as rolinhas meigas . Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas e invariáveis amenidades. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas cor de jambo. Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos, Bernardo aponta doçuras, insetos maviosos, flores olentes.
Bernardo mente.
Mas como mente menos que o Paul de Kock ou o truculento Ponson, pai do Rocambole , escolhi-o.
Veio o livro. Volume velho como um monumento egípcio e como ele revestido de inscrições. Cada leitor que passava ia deixando o rastro gravado a lápis.
"Li e gostei", dizia um, "Li e apreciei", afirmava certa senhorita. Inscrição quase em cuneiforme rezava "Fulano leu e apreciou o talento do grande escritor brasileiro". Outro versificava: "Já foi lido — Pelo Walfrido". Tal moça notara parcimoniosamente: "Li" e assinou. Um amigo da ordem inversa pôs: "Li e muito gostei".
Houve quem discordasse. "Li e não gostei", declarou um fulano.
O patriotismo literário dum anônimo saiu a campo em prol do autor: "Os porcos preferem milho a pérolas", escreveu ele embaixo.
Monograma complicadíssimo subscrevia isto: "O Rocambole diverte mais".
E assim, por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capítulo, as apreciações se alastravam com levíssimas variantes ao sóbrio "Li e gostei" inicial. Havia nomes bem antigos, de pessoas falecidas, e nomes das meninas casadeiras da época.
Os intelectuais de Oblivion bebiam à farta naquela veneranda fonte. Em Bernardo abeberavam-se de "estilo e boa linguagem", conforme afirmou um; no Rocambole truncado exercitavam os músculos da imaginativa; e no Paul de Kock, os eleitos, os Sumos (os que sabiam francês!) fartavam-se da grivoiserie permitida a espíritos superiores.
Essa trindade impressa bastava à educação literária da cidade. Feliz cidade! Se é de temer o homem que só conhece um livro, a cidade que só conhece três é de venerar. Veneração, entretanto, que não virá, porque o mundo desconhece totalmente a pobrezinha da Oblivion...
Conto de 1000, integrante do
livro Título da Coletânea.
Fonte: LOBATO, Monteiro. Contos completos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.