Debates sobre a natureza do sexo, do gênero e da orientação sexual não são nenhuma novidade. Muito antes da ciência moderna, algumas culturas chegaram a conceber uma origem comum entre homens e mulheres, na tentativa de compreender as dinâmicas da sexualidade. Assim, segundo alguns mitos, o ser humano original teria sido hermafrodita e andrógeno, carregando em si a essência combinada do masculino e do feminino.
A mitologia fon africana, por exemplo, retrata o criador do universo, Mawu-Lisa, como uma entidade perfeitamente andrógena, união equilibrada da natureza feminina (Mawu, associada à noite, à lua, à cor preta) e da natureza masculina (Lisa, ou Lissá, associado ao dia, ao sol, à cor branca). De forma semelhante, a dualidade chinesa Yin/Yang representa a interação entre as duas forças contrárias (também relacionadas aos contrários dia/noite, sol/lua, branco/negro). Muitos outros povos elaboraram ideias semelhantes, mas a narrativa mais detalhada é provavelmente a de Platão em O Banquete, acerca da origem da paixão.
Conforme o texto, os primeiros humanos eram redondos. Cada indivíduo era um duplo do que conhecemos hoje: dispunham de quatro braços, quatro pernas, dois órgãos sexuais e duas cabeças voltadas para lados opostos. Sendo, portanto, mais volumosos, pareciam esféricos. No entanto, não eram todos iguais: alguns possuíam a combinação homem-homem (homens-duplos), outros a combinação mulher-mulher (mulheres-duplas) e outros, ainda, eram possuíam a junção homem-mulher. A raça, portanto, possuía três gêneros.
Platão, em O Banquete, transforma o dramaturgo grego Aristófanes em personagem e, usando-o como avatar, explica:
Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem algo de ambos.
Ainda segundo essa narrativa, os homens-bola locomoviam-se em pé, assim como nós, mas também podiam rolar, quando pegavam impulso. Como eram muito fortes, várias vezes revoltaram-se contra os deuses, ousando desafiá-los. Irado, em dado momento Zeus decidiu dividi-los ao meio, a fim de reduzir seu poder. Diz ele:
Eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos. [...] Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.
O deus Apolo foi encarregado a realizar a divisão. Seu trabalho seria separar as partes componentes dos andrógenos (andros, o homem, e génos, a mulher), deixando cada um com uma genitália apropriada. Ele cortou cada um dos homens-bola ao meio, e as pessoas passaram a se parecer com o que são hoje. O resultado foi um pouco trágico:
Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro.
É explicada, assim, a paixão entre os humanos - que seria um desejo "restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana". Apolo ainda precisou fazer alguns ajustes nos órgãos sexuais, para que a união entre as metades fosse satisfatória. Mas o desejo pela reunião não seria apenas carnal, diretamente relacionado à reparação física do estado original; incluiria também a ânsia pela presença familiar da outra metade, que resgataria um sentimento de paz e completude. Note-se, também, que o mito leva em consideração diferentes orientações sexuais (ainda que não todas):
Todas as mulheres que são o corte de uma mulher [originalmente, mulher-dupla] não dirige muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres [...]. E todos os que são corte de um macho [originalmente, homem-duplo] perseguem o macho.
Embora bizarro, o mito não deixa de ser poético. Aos amantes e apaixonados, segue um último trecho de O Banquete, cujo grande tema é Eros, o amor apaixonado:
Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade [...] então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento.
Milênios mais tarde, Woody Allen traduziu esse mesmo desejo de reencontrar a completude mítica original de outra forma (certamente menos graciosa): "Só há pouco descobri que meu grande problema é um desejo intenso de retornar ao útero. Qualquer útero."