Coringa e Arlequina formam um par fascinante. Dos quadrinhos para os cinemas, ambos os personagens ganharam um filme próprio nos últimos meses: filmes de super-heróis sem nenhum super-herói, onde os supervilões são protagonistas. Coringa (2019) e Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020), cada um a seu modo, retratam casos da insanidade contemporânea, adotando os temas, o tom e a perspectiva próprios de cada caso - e conjugando um reflexo grotesco e hiperbólico de quadros bastante reais na sociedade.
A insanidade de Arthur Fleck, o Coringa, é explicada no filme de 2019 (direção de Todd Phillips) como resultado direto do meio social. Não havia nada de errado no bebê Arthur. A sorte não estava do seu lado, entretanto; décadas de transtornos, rejeições e dificuldades acabaram o levando ao colapso mental.
Esse Coringa representa o homem que não tem mais nada a perder, e cujo único recurso de ação é a violência. Arthur sonha com uma vida que se vê incapaz de concretizar. Deseja escapar da pobreza, mas não consegue trabalho como comediante; deseja apreciação e admiração, mas é desprezado; deseja respeito e compaixão, mas é publicamente humilhado; deseja afeto amoroso, mas não acredita que é merecedor e, por isso, evita as mulheres. Ele não tem nada. Seus anseios mais essenciais lhe são negados, pelo que Arthur passa a sonhar acordado imaginando-se famoso, na televisão, bem-sucedido e em um relacionamento com uma vizinha. Mentalmente e emocionalmente fragilizado pela constância dos abusos, dos maus-tratos e do desprezo que assolaram sua vida desde a infância, ele não possui a resiliência e a estabilidade psicológica para escapar à maré de dificuldades. E a impossibilidade de escapar deste paradoxo acaba fracionando sua psique.
É como adverte o provérbio africano: "O jovem que não é acolhido pela aldeia a queimará para sentir seu calor".
Originalmente, o Coringa era apenas um vilão lunático. Foi inspirado não na realidade, mas na figura simbólica que lhe dá nome. Um coringa, ou bobo da corte, é uma figura tradicionalmente absurda a que falta juízo e racionalidade nas ideias e ações. Ele não mede consequências, e por fazer pouco caso da lógica e da ordem, divertindo-se com disparates e destruição, é frequentemente tratado como símbolo do caos. Em inglês, o coringa é conhecido como joker (aquele que faz rir), palavra também usada como sinônimo para palhaço, bufão, arlequim (sendo esta última a origem do nome de Arlequina - Harley Quinn em inglês, de harlequin).
Foi no Batman de Christopher Nolan (2008) que a versão cinematográfica do Coringa se tornou realmente intrigante. Mais impulsivo e idealista do que sua versão no filme de Tim Burton (1989), o Coringa de Nolan é um gerador de caos por excelência, e dinheiro e poder só lhe interessam na medida em que lhe permitem continuar atormentando Gotham. Em contraste, o Coringa de Todd Phillips parece mais transtornado que maluco, e seu prazer com o caos e a destruição é um prazer doloroso: a única forma de afeto que conseguiu concretizar foi a do afeto negativo, a violência; a única forma de participação social em que pôde ser reconhecido foi a da destruição; a única fama que alcançou foi a do crime.
Não é à toa que o filme tenha feito tanto sucesso entre o público. Sem lutas apoteóticas de super-heróis, sem carroceis de computação gráfica e com um roteiro bastante incomum para o gênero, Coringa (2019) mostra ao expectador que os vilões reais são mais parecidos conosco do que gostaríamos de acreditar.
A história do Coringa não é muito diferente da do criminoso comum. Não é que a ele tenha, de fato, faltado oportunidades; mas o excesso de barreiras sociais e a escassez de oportunidades, somados aos resultados psicológicos de uma infância de abuso e de uma educação insuficiente, esmagaram seu desejo de "jogar pelas regras". De sua perspectiva, o mundo o trata com injustiça, e ele, em troca, despreza a justiça no mundo. Assim como ele, milhares de pessoas no mundo real vivem uma jornada semelhante, de vítimas a vitimizadoras. É um quadro tipicamente masculino, quase sempre de jovens, e de classe baixa. E ainda que alguns críticos tenham acusado Coringa de romantizar a violência e normalizar as ações de um serial killer, parece-me que o filme funciona como o testemunho de uma ruína humana, a trajetória de um homem como qualquer outro até o ponto sem retorno.
Mas e sua futura namorada, Arlequina?
É muito difícil imaginar o Coringa deste filme de 2019 em um relacionamento com Arlequina, personagem interpretada por Margot Robbie em Esquadrão Suicida (2016) e em Aves de Rapina este ano. Não apenas suas personalidades são completamente incompatíveis, mas cada um deles existe em um filme com temática, estilo, tom e visual diferentes. E se este Coringa é uma representação de um sociopata masculino, a Arlequina de Aves de Rapina é o estereótipo de uma sociopata feminina.
A insanidade criminosa de Arlequina é, esta sim, retratada com glamour. E como uma comédia. Em uma das primeiras cenas do filme, por exemplo, Arlequina quebra as duas pernas de um homem e o aleija para sempre porque ele a ofendeu. É claro que se os sexos fossem reversos, essa reação seria desproporcional e absurda; mas parece haver algo de cômico quando a violência vem da mulher. Como sabemos que se trata de ficção, e de uma ficção não realista, tendemos a encarar a brutalidade com o mesmo olhar com que assistiríamos as barbaridades de Tom & Jerry ou Pica-Pau (como um cartum). Ou como as mutilações e execuções em Kill Bill. E não precisaríamos pensar mais nisso.
Arlequina, porém, é um retrato caricatural e exagerado de um tipo real. Seu caráter, sua personalidade e muitas de suas atitudes são cada vez mais comuns na sociedade, e são admirados e idealizados como um modelo feminino a ser imitado (entendidos como empoderamento, libertação, autenticidade, etc.).
Não surpreende que o subtítulo do filme seja "Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa". Emancipação é uma palavra que jamais seria incluída em um título de filme (especialmente neste gênero) não fosse sua associação direta com o feminismo. Para a surpresa de ninguém, o marketing do filme o caracterizou como feminista, antimachista, empoderante. Uma história para inspirar mulheres do mundo todo, para nutrir sua autoestima, para reforçar que todas são capazes de alcançar seus sonhos. Na melhor das hipóteses, é um caso de contradição grosseira entre a mensagem pretendida e o que de fato é apresentado na tela; no pior, a confirmação de que uma serial killer cleptomaníaca vestida de palhaço e um time de criminosas é a cara do feminismo, na visão dos produtores.
Arlequina é terrível. São tantas pessoas que a odeiam, devido às suas traquinagens cruéis, que o filme transforma a situação em piada, apresentando com textos coloridos o nome de suas vítimas e, abaixo, a descrição de o que ela havia feito contra elas.
Além de egoísta e irresponsável, Arlequina é narcisista. Quem mais usaria uma camisa com o próprio nome estampado? Na ausência de planos para o futuro (uma vez que só se preocupa com o aqui e agora), seus anseios se resumem aos instintos físicos básicos: comer, embebedar-se até vomitar, dançar, dormir. Esperaríamos que sexo estivesse nessa lista, mas devido ao teor da produção, esse aspecto foi de todo ignorado (caso contrário, teríamos a protagonista compensando sua dor de cotovelo com várias cenas de sexo casual e uma infinidade de brinquedos eróticos esquisitos). Enquanto em Coringa o maior desejo do protagonista é ser bem-sucedido na vida, ser reconhecido por seus esforços e ser apreciado, tudo o que Arlequina quer é comer seu amado pão com ovo e bacon - gana que ela só consegue satisfazer ao final do filme.
Hedonista, caótico e autodestrutivo, seu caráter e personalidade são traduzidos em seu visual. Dentre suas várias tatuagens, em uma em seu rosto lê-se "APODRECIDA". Suas roupas, maquiagem e cabelo tingido são apenas um pouco mais exagerados do que veríamos no mundo real. E para completar o quadro, Arlequina vive em um apartamento sujo e esculhambado na companhia de uma hiena, e mal consegue pagar por sua comida.
Não são comuns entre mulheres os atos de violência cometidos por Arlequina, mas, de resto, o quadro apresentado no filme é fortemente representativo de uma subcultura crescente. São jovens que interpretam costumes sociais e responsabilidades éticas como formas de opressão, buscando, por isso, antagonizá-los à custa de suas relações sociais, profissionais e familiares. Egoísmo é celebrado como autocuidado e libertação dos interesses alheios; narcisismo é tratado como amor próprio e sinal de autoestima; irresponsabilidade é justificável porque decorre do ato natural e autêntico de seguir os instintos e não reprimir os desejos.
Da adoção dessa filosofia de vida decorre todo tipo de sociopatia, dentre os quais: manipulações, como mentiras, chantagens, intrigas, bullying psicológico, vitimização interesseira e gaslighting, ou, nos casos mais graves, execução de fraudes, extorsão e falsas acusações de assédio e estupro; complexo de superioridade, sadismo; falta de empatia, de comprometimento ou de remorso, levando a quebra de promessas, agressões de parceiros, crianças ou animais; falta de autocontrole, como promiscuidade perigosa e abuso de drogas; e, no limite, casos bem mais raros como crimes hediondos.
É claro que estamos falando de um filme de humor, e de uma personagem caricatural. Mas note que Coringa foi feito para um público que não quer ser como o Coringa, enquanto Aves de Rapina parece ter sido feito para um público que quer ser como Arlequina. No site de notícias Salon, por exemplo, a colunista Mary Elizabeth Williams escreve:
O patriarcado será estilhaçado com granadas de mão e laços de cabelo. Pelo menos, essa é a impressão que eu tenho depois de assistir ao excêntrico, ultraviolento e extremamente feminista Aves de Rapina. [Depois de terminar seu relacionamento com o Coringa, Arlequina] logo descobre os perigos de não ter mais um homem assassino, manipulador e emocionalmente abusivo para protegê-la, e que o poder de mulheres unidas pode causar estragos.
Sem dúvida, o Coringa é um assassino manipulador e emocionalmente abusivo. Mas parece ter escapado à colunista que Arlequina é igualmente assassina, manipuladora e emocionalmente abusiva. O empoderamento celebrado aqui não possui qualquer restrição ética. "Causar estragos" é dado como positivo, porque é um exercício de poder desempenhado por uma mulher. A colunista citada, é claro, é apenas um dos milhares de exemplos que podem ser trazidos sobre o enaltecimento de sociopatias. Nada parecido pode ser encontrado em relação a Coringa: ninguém o celebra como um modelo masculino a ser admirado e seguido.
Tudo considerado, esses dois filmes formam um par bastante curioso. Coringa, com seu tom sério, um drama diretamente inspirado em Taxi Driver, de Scorsese, adota a perspectiva de seu protagonista, desdobrando sua narrativa de forma realista e visceral. Da mesma forma, Aves de Rapina retrata o mundo como a própria Arlequina o vê e entende: uma sequência irracional de eventos absurdos e desordenados, cores grotescas e conexões espasmódicas. Quase em nada combinam - como um retrato barroco ao lado de um cartum psicodélico -, mas talvez por isso mesmo se complementem.