Em geral, não vemos as coisas como elas são, mas como nós mesmos somos. Em filmes metafóricos com O Poço (El hoyo, 2019), é muito fácil projetarmos nossas próprias visões de mundo nas narrativas, decifrando os simbolismos conforme nossas preferências. Talvez por esta razão, vários comentaristas reduziram O Poço a uma crítica ao capitalismo, como algo a ser usado com argumento pró-socialismo.
O filme, no entanto, desenrola-se em dois momentos distintos: no primeiro, somos apresentados à comunidade que vive no Poço e à distribuição falha dos recursos (algo que se pode associar ao capitalismo); no segundo, o protagonista Goreng inicia uma cruzada para redistribuir os recursos, a fim de saciar os famintos, e reeducar os indivíduos, o que o leva a exterminar muitas das pessoas a quem pretendia ajudar (algo que se pode associar ao socialismo).
Tendo em vista o tabu vigente na indústria do entretenimento em relação às ideologias de extrema esquerda (que quase nunca são criticadas ou sequer questionadas), é gratificante deparar-se com um retrato mais honesto dos conflitos políticos humanos, ainda que de forma alegórica.
O diretor de O Poço, Galder Gaztelu-Urrutia, comentou:
Com certeza achamos que é necessária uma melhor distribuição de riquezas, mas o filme não é estritamente sobre capitalismo. Pode haver uma crítica ao capitalismo no início, mas mostramos que assim que Goreng e Baharat tentam convencer os outros prisioneiros a adotar o socialismo e deliberadamente dividir a comida, acabam matando metade das pessoas que eles queriam ajudar.
A rigor, não existe nenhuma representação do capitalismo em O Poço. Propriedade privada? A única que encontramos são os objetos escolhidos pelos indivíduos ao entrar no Poço. Acúmulo de capital ou exploração de mão de obra? Inexistente: ninguém produz, ninguém trabalha. O que testemunhamos, isto sim, é o egoísmo, uma característica intrinsecamente humana presente desde o início dos tempos.
Também não temos uma representação de socialismo, mas, certamente, uma comparação entre o Poço e uma sociedade comunista encontraria sustento: ao indivíduo só é permitido consumir o que a Administração permite; manter propriedade não autorizada é algo proibido e punível com morte (por exemplo, no caso de alguém guardar sua comida para depois, ao invés de comer no momento estipulado); todos vivem no limite da miséria; ninguém é capaz de interagir com o governo e buscar representação de seus interesses, estando sujeitos ao arbítrio absoluto dos governantes; a Administração não permite a ninguém sair do sistema antes do período estipulado, mantendo seus cidadãos prisioneiros. São semelhanças marcantes com governos como os da extinta União Soviética e da atual Cuba.
A metáfora social de O Poço, contudo, está longe de ser adequada. No Poço, ninguém produz nada: todos os recursos são providos por uma força externa, a Administração. Esse arranjo limita bastante a comparação desta microssociedade com as sociedades reais. No mundo real, se ninguém produzir, todos morrem. Por esta razão, cada indivíduo possui alguma fração de poder em suas mãos (sua força produtiva, que pode ser usada individualmente ou em associação com outras pessoas). Decorre daí que os indivíduos no topo da sociedade (nos andares mais altos) não são mantidos lá por uma estrutura de concreto, mas pelo suporte ativo das pessoas dos andares mais baixos. A hierarquia social é constituída pelas próprias pessoas, ora em relações de simbiose (quando a existência da hierarquia garante o incremento da qualidade de vida de todos), ora em relações de parasitismo (quando a hierarquia opera de maneira abusiva ou tirânica para benefício de apenas algumas camadas).
No cenário de O Poço, temos uma sociedade onde tudo é dado pelo Estado, e o Estado tudo produz. Este Estado, chamado de Administração, é retratado como justo e eficiente: a má distribuição dos recursos é causada pelo egoísmo dos habitantes do Poço, e não pelos administradores. No entanto, como já mencionado, esta Administração pode ser vista como um sistema totalitário: seus prisioneiros estão impossibilitados de sair, de transitar, de produzir seus próprios recursos, etc. É-lhes permitida uma única refeição por dia, que deve ser finalizada em apenas dois minutos. Assim, ainda que todos fossem generosos e justos na divisão da comida, sua vida ainda seria absolutamente miserável.
Um dos críticos do filme chegou a comentar que a Administração representava o governo, que preparava com cuidado todos os recursos para suprir as necessidades do povo, e que os problemas começavam devido ao egoísmo das sociedades capitalistas. Para tal interpretação ser válida, deveríamos ignorar que os governos reais são tão ou mais corruptos do que os indivíduos, e que a estrutura de governo é integralmente formada por membros da sociedade (isto é, habitantes do Poço).
Tendo, portanto, a entender que as classes privilegiadas no Poço não são os habitantes dos primeiros andares, que comem com fartura. Não. A classe governante (e opressora) é a Administração. Enquanto os habitantes estão competindo por migalhas entre os andares, odiando-se uns aos outros devido à escassez de recursos, não lhes ocorre que a própria estrutura é a causa principal dos seus problemas. A ordem social é imposta de cima, e impossibilita que os indivíduos sejam livres para produzir seu próprio sustento. A Administração aprisiona a todos, e ao distribuir suas rações diárias, ainda chega a ser apreciada por sua benevolência. Por várias vezes os habitantes questionam-se sobre sua estadia no Poço, mas não chegam a questionar a ordem imposta pelos administradores, pois estão distraídos em seus conflitos internos e em sua angústia diária pela sobrevivência.
E nada mais conveniente para a continuidade do poder vigente do que manter os subalternos em perpétuo conflito interno. Note que há ampla mobilidade social no Poço (aleatória, mas inegável): um dia, você acorda no andar 1, o mais alto, e um mês depois, pode acordar no andar 333, e morrerá de fome. A vítima dos andares baixos transforma-se no vitimizador quando alcança os andares altos. O filme o reforça do início ao fim: o fato de alguém ser uma vítima não a torna automaticamente boa pessoa, nem sequer merecedora de ajuda, a julgar por seus atos anteriores.
O problema - afirma o diretor - surge quando você exige a colaboração de todo mundo, e vê que não chegou a nenhuma grande conquista. Goreng faz aquilo que planejou, como levar a panna cotta para o nível mais baixo, mas ele não mudou o pensamento de ninguém sobre dividir a comida.
Quando Goreng tenta ajudar os famintos e acaba assassinando vários deles no processo, fica claro que, no Poço, é a própria natureza dos indivíduos que os impele à selvageria. Os únicos que não são afetados por essa situação são os membros da Administração, responsáveis por toda a estrutura do Poço e por seu modo de funcionamento.
E este talvez seja o motivo de sua associação com Dom Quixote, estabelecida no filme: Goreng deseja espalhar a justiça com seus atos nobres e heroicos, mas, assim como Quixote, seus ideais e seus projetos são ilusórios, e sua empreitada está fadada a fracassar desde o princípio, pois o mundo não deseja um salvador e suas lições de moral. Seu primeiro delírio foi forçar as pessoas a dividir; e quando este falhou, seu novo plano (junto a Baharat) foi o de "enviar uma mensagem à Administração", na esperança de que alguém lá em cima fosse compreender seu sinal e interceder pelos habitantes do Poço. Assistimos, no final do filme, ao sacrifício de Goreng e, participando de seu delírio, descemos com ele para o andar mais baixo. Contudo, o diretor revela: "o andar mais baixo não existe. Goreng morre antes de chegar lá, e aquilo é apenas a interpretação dele sobre o que precisava fazer".
Há, é claro, várias interpretações possíveis, algumas bastantes divergentes, mas acredito que um aspecto no filme entendido de forma unânime: os efeitos nefastos do egoísmo. E esta é uma ideia de transcende agendas políticas, pelo que O Poço pode dialogar com públicos de diversas culturas do mundo todo. Se você for capaz de suportar as cenas gore de canibalismo, óbvio.