Se você se considera romântico, já estou escutando seus protestos. Mas calma lá. Românticos reagem emocionalmente muito depressa!
Minha tese é que o romantismo, como quadro mental, é responsável por uma série de desdobramentos negativos ao indivíduo. Diferentemente da paixão, que se configura como um estado psicológico fortemente conectado à biologia e à psicologia evolutiva, o romantismo é um fenômeno cultural, estruturado por ideias e comportamentos socialmente estabelecidos. Como tal, pode-se rastrear sua presença em momentos históricos específicos, e em classes sociais determinadas. Dentre suas consequências indesejáveis, estão:
- Percepção distorcida da realidade
- Idealização de pessoas, até mesmo de abusadores
- Incontinência emocional e submissão irrefletida às emoções
- Perda de oportunidades e escolhas de vida autodestrutivas
- Visão novelizada da vida, com expectativas próprias de um enredo ficcional
- Não aceitação das pessoas como elas são (negação da realidade)
- Percepção distorcida da realidade (pessoas ou eventos): Cria-se uma visão falseada da realidade. O romântico tende a ver o que quer ver. Assim como seguir um mapa errado pode levar um viajante a cair num precipício, guiar-se por um entendimento falso do mundo pode ser perigoso ou mesmo fatal.
- Idealização de pessoas: Muitos relacionamentos abusivos ocorrem porque a pessoa abusada recusa-se a enxergar os abusos, e coopera com o abusador forçando-se a aceitar suas motivações como justificáveis. Comumente, o romântico sacrifica-se demais pela fonte de sua idolatria.
- Incontinência emocional, e submissão irrefletida às emoções: Essa talvez seja a parte mais difícil para os românticos e, em boa medida, para todos os seres humanos: aprender que os sentimentos não refletem corretamente a realidade. Trata-se, aliás, de um axioma romântico: "se eu o sinto, é verdadeiro". Quando, sabidamente, as emoções são causadas por pulsões neuroquímicas programadas por nosso genoma para que exerçamos nossas funções biológicas, podendo, muitas vezes, serem perigosas e autodestrutivas (como pulsões de violência, de luxúria descontrolada, de vícios danosos, etc.). Obviamente, a forma saudável de lidar com as emoções não é suprimi-las (como faria Spock), mas controlá-las de forma racional. Lembre-se do experimento das crianças com os marshmallows: a criança era colocada diante de um marshmallow e lhe era prometido que, se resistisse a comê-lo por alguns minutos, ganharia ainda outro no final; as crianças com baixo autocontrole acabaram comendo o seu antes da hora, ficando sem o segundo. Agora, substitua marshmallows por conquistas na sua vida, e se pergunte em qual grupo de crianças você se encontraria.
- Perda de oportunidades e escolhas de vida autodestrutivas: Você provavelmente conhece alguém que está sempre apaixonado, que pode passar anos correndo atrás do crush sem ser correspondido(a), e no processo acaba perdendo incontáveis oportunidades (não apenas outros possíveis parceiros, mas também em sua profissão e vida social). Isso se deve ao caráter obsessivo que o romantismo induz; afinal, todas as características do romantismo são romantizadas e, axiomaticamente, confirmadas como boas e preferíveis.
- Visão novelizada da vida: O romântico vê sua vida como uma narrativa, e busca recriar em sua realidade elementos de uma estrutura ficcional. Final feliz, encontros ideais, etc. Em ficção, tudo tem um porquê; todo evento está encaixado no todo para servir ao enredo. Assim, o indivíduo romântico interpreta todos os eventos como partes de uma narrativa coesa que deve levar ao final perfeito. "Ele(a) desmarcou comigo, porque ainda está pensando na(o) ex; mas isso era necessário acontecer para ficarmos um tempo afastados, e ele(a) perceber o quanto nosso relacionamento é importante." Todo ser humano faz dessas: criamos narrativas para explicar nossos sucessos e fracassos, para entendermos nossa trajetória (ou fabricarmos um entendimento), e para elaborar um destino esperado. No entanto, é essencial que vigiemos nossas narrativas para averiguar se não são invenções ou manipulações dos nossos desejos (lembre-se: seus desejos e sua racionalidade estão sempre tentando passar a perna um no outro).
- Não aceitação das pessoas como elas são: Este é o caso de quem já está em um relacionamento, mas rejeita seu par como ele realmente é, esperando que ele seja outra pessoa (um indivíduo idealizado). Viver em casal implica acordos, e as pessoas podem mudar certas atitudes, tendo em vista a harmonia do relacionamento. Mas a demanda por mudanças pessoais tem limite. Se a pessoa com quem você está se relacionando precisa mudar muito para que você fique satisfeito(a), pergunte-se: essa pessoa será capaz de tal transformação? Será que ela deseja tal mudança? Será que isso não lhe fará mal? Será que a pessoa que eu realmente desejo não é uma projeção que eu criei sobre esse indivíduo, que no fundo eu não aprecio? Será que, se eu aceitar essa pessoa como ela é, eu não ficarei satisfeito(a)?
Apesar da longa influência cultural do romantismo, creio que um único (e bom) exemplo possa servir como modelo: Os Sofrimentos do Jovem Werther. Goethe é um dos expoentes máximos do romantismo, e Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), como obra inaugural deste movimento, tornou-se um dos clássicos mais famosos da literatura universal. Seu sucesso estrondoso é indicador do Zeitgeist europeu do século XVIII e, em parte, da visão de mundo dos letrados, à época.
Werther é um jovem aristocrata alemão, solteiro, bastante saudável, vivendo em um tempo de paz. Sua vida é bastante monótona. Não possui carreira, não precisa trabalhar, não apresenta qualquer ambição ou projeto de vida; se gere alguns negócios de família, é com quase nenhum esforço; seu tempo é dedicado quase totalmente à contemplação da existência, de um ponto de vista não apenas privilegiado, mas muito distorcido em relação à existência típica do ser humano. Em suma, Werther não tem muitos problemas reais. Mesmo o ser humano mais afortunado irá dividir suas experiências em boas e ruins, adaptando satisfação e sofrimento de acordo com suas circunstâncias. Desfruta de todas as vantagens de pertencer à aristocracia, sem encarar as desvantagens que muitas vezes afetaram sua classe, como revoltas, guerras, disputas internas, etc.
Mas quem sempre viveu no paraíso não tem bons olhos para apreciá-lo. Como Freud bem sugeriu, a felicidade existe apenas em função do contraste com alguma forma de sofrimento (ver O Mal-Estar na Cultura). Mesmo o ser humano mais afortunado irá dividir suas experiências em boas e ruins, adaptando satisfação e sofrimento de acordo com suas circunstâncias. Por exemplo: se a pior coisa que acontecer a Werther for encontrar seus pães queimados no café da manhã, este será o ponto baixo de seu dia, e terá um impacto grande em seu bem-estar mental: o cérebro se adapta apenas aos extremos a que é exposto.
Por que isso é importante? Digamos assim: quanto mais mimado, mais chorão.
E quanto mais chorão (ou fragilizado, não resiliente), menor será a capacidade do indivíduo para lidar com os problemas reais do mundo. Trata-se de um processo de fragilização e infantilização. A pessoa dependerá de outros para protegê-la e nutri-la, como, obviamente, é o caso dos aristocratas no século XVIII - e o mesmo se pode dizer de muitas pessoas no século XXI, que não compreendem a estrutura civilizacional que as protege do absoluto estado de natureza (ingenuamente idealizado, por falta de exposição).
Mas o que há de romântico nesta vida tediosa de Werther?
O homem mais romântico do mundo
Em Os Sofrimentos do Jovem Werther, a narrativa é construída a partir das cartas que Werther encaminha a um amigo, através das quais vai sendo possível deduzir os traços de seu espírito (para usar um termo da época). Ao leitor contemporâneo, a maior parte do que é dito pode parecer irrelevante. Werther estende-se em observações prosaicas sobre seus sentimentos a respeito de tudo: a natureza, a pequena cidade, os transeuntes; tudo sob uma ótica de maravilhamento ultrassensível. "Meu coração isso", "meu espírito aquilo". Um pássaro a cantar é a alegria de seu dia. Pode-se supor, a princípio, que não há homem mais feliz e fácil de agradar no mundo. Mas esta é a ilusão. Tal é sua suscetividade às flutuações de humor que, em um dia, relata estar fulgurante de felicidade porque o sol está brilhando, e no seguinte sente-se deprimido, melancólico sem qualquer motivo, e relata em detalhes suas emoções. Se tão pouco pode fazê-lo feliz, talvez um nada possa destrui-lo.
O foco da obra, porém, é o amor romântico, intenso e problemático, de Werther por Charlotte (ou Carlota). Ao que tudo indica, Werther é virgem, e idealiza a figura da mulher como uma forma sobre-humana de perfeição; não toda mulher, é claro, mas as jovens belas e, sobretudo, a mais bela que pôde encontrar na província em que passa a residir. A natureza de seu desejo, contudo, é a parte mais intrigante do romance: é difícil, senão impossível, A natureza de seu desejo, contudo, é a parte mais intrigante do romance: é difícil, senão impossível, compreender o que Werther realmente deseja, visto que seu comportamento e seu discurso se contradizem. compreender o que Werther realmente deseja, visto que seu comportamento e seu discurso se contradizem.
Por vezes, tem-se a impressão de que ele seria incapaz de consumar uma relação com Charlotte, dado o distanciamento entre eles criado por sua própria idealização. No entanto, a moça tem um pretendente, Albert, e é possível que Werther estivesse criando justificativas (conscientes ou inconscientes) para prolongar seu enamoramento sem encarar os fatos mais dolorosos. A idealização, de qualquer forma, vai longe demais. Não há outro termo mais apropriado que "patético" para descrever a situação. Werther é capaz de passar um dia inteiro escrevendo sobre o momento exultante em que a moça lhe dirigiu um "oi", asseverando, com olhinhos lacrimejantes, que um momento como aquele seria o bastante para justificar sua existência toda. O termo "relação platônica" nunca foi levado a tão alto grau.
É difícil saber se Werther tem ciúmes de Albert. O certo é que ele não o menciona, em seus relatos, e afirma deleitar-se em acompanhar o casal, em admirá-los juntos - em suma, em viver o romance deles no lugar de testemunha. Werther chega a afirmar que aprova o casamento de Charlotte, que eles devem mesmo se casar - Albert é a escolha certa -, e só lhe solicita o obséquio de conviver com eles, pois isso em si já lhe garantiria a felicidade.
Mais do que voyeurismo, é o puro narcisismo de uma paixão onde o amante e o amado são a mesma pessoa (um, o que ama, e o outro sua imaginação), não havendo espaço para um outro ser humano (apenas sua concepção mental, falseada). Como o próprio Goethe mais tarde escreveu:
"Se eu te amo, o que tu tens a ver com isso?"
E como acaba essa linda história de paixão não correspondida?
Ao final, Werther encontra-se em um conflito interno absoluto, sem saber o que quer ou o que fazer com o que lhe está disponível, sem nada de maior valor para inspirar sua existência senão as projeções de sua imaginação poética, e assim como romantizou toda a sua aventura passiva, sobrepondo uma narrativa floreada à sua existência patética e miserável, também achou por bem romantizar a própria morte, como a finalizar de forma dramática um poema brega: suicidou-se.
O espírito romântico estava muito em voga na época (e não deve ser confundido com o cavalheirismo cortesão da Idade Média), e Goethe não foi uma voz original neste sentido; apenas foi um dos primeiros a caracterizar tal perfil psicológico e social e a ganhar notoriedade. Como se sabe, toda a primeira parte da narrativa foi baseada em experiências do próprio Goethe (e provavelmente de muitos outros jovens aristocratas da época), e a segunda parte foi inspirada em um suicídio noticiado nos jornais, motivado por razões semelhantes às do romance.
E assim como um "suicídio romântico" precedeu a obra, outros tantos a sucederam, desta vez sob sua influência: vários leitores de Goethe consideraram o autossacrifício romântico uma maneira nobre e poética de morrer. Fica claro que essa mentalidade era, em certa medida, comum entre a aristocracia alemã do século XVIII.
Combater o romantismo?
As principais tendências por trás do romantismo contemporâneo são o individualismo, o hedonismo, a espetacularização da vida, o narcisismo e o marketing pessoal.
Os ideais românticos fazem parte da vida de muita gente ainda hoje, manifestando-se de formas bastante diversas. Tendências contemporâneas como o individualismo ("procuro uma pessoa que seja perfeita para mim, não vou escolhê-la conforme o desejo da minha família ou sociedade"), o hedonismo ("quero o que me dará mais prazer, e enquanto me der prazer; o resto é secundário"), a espetacularização da vida ("a vida é como um filme, quero ter um romance de princesa (ou de rei), como eu sempre sonhei"), o narcisismo (a entrega à paixão e seus caprichos tem muito mais a ver com o amor-próprio do que com a pessoa escolhida) e o marketing pessoal ("minha vida precisa parecer um sucesso para os outros") são alguns dos fenômenos que instrumentalizam o velho romantismo para nossos dias. Assim, vale a pena fazer alguns esclarecimentos.
Sentimentalismo, manifestações de afeto e romantismo muitas vezes se confundem, mas estão longe de ser a mesma coisa.
Por exemplo: sentir nostalgia e carinho por um carro velho e quebrado, porque foi nele que você fez várias viagens com seus pais, em sua infância - isso é uma forma de sentimentalismo, e alguns chamariam de romantização do objeto. A sua manicure, que a chama de "amor" ou "meu bem", provavelmente não está lhe cantando. Mas vindas da pessoa certa, no momento certo, as mesmas palavras podem ser poderosíssimas. Lembrar de eventos com carinho, com sentimentalismo, é algo que podemos chamar de "romântico"; mas trata-se basicamente de aproveitar nossa capacidade de ter sentimentos e usá-los em nosso favor, para nos fazer mais felizes e, naturalmente, para partilhar nossa felicidade. Em suma: nem tudo o que chamamos de romântico é patológico, sendo boa parte essencial para uma existência humana saudável.
A parte patológica pode ser reconhecida quando envolve alguns desses quadros:
No final das contas, não há nada de mal em alguns atos românticos, como presentear alguém com flores, ou abrir a porta do carro para sua namorada (se ela não for feminista), lembrar e comemorar o dia em que vocês se conheceram, etc. Se você considera andar de mãos dadas um ato romântico, eu diria que se trata de um caso saudável e inofensivo de romantismo, sendo mais uma demonstração de afeto e companheirismo. Apenas não encarne uma versão moderna de Werther, e evite os comportamentos perigosos citados acima.
Depois não diga que eu não avisei!