No infinito debate cultural sobre a existência de Deus, um argumento é frequentemente utilizado: que os ateus, em sua visão de mundo, são tão crentes quanto os religiosos. Para muitos que se utilizam deste raciocínio, a única diferença entre os teístas e os ateístas estaria no conteúdo de sua crença: os teístas creem na existência de Deus, sem provas concretas, e os ateístas creem na inexistência de Deus, igualmente sem provas concretas. Seriam, assim, como dois lados de uma mesma moeda?
Em geral, este argumento é defendido pelos agnósticos. Para o agnosticismo, não faz sentido acreditar em uma realidade sem provas. A única posição razoável em relação a Deus, para eles, é a dúvida. Crenças teístas ou ateístas seriam igualmente inválidas.
Seria o caso, então, de que o ateísmo é um crença?
Sim. Sem dúvida nenhuma.
É impossível viver sem crenças. É a partir de crenças de todo tipo que guiamos nossas ações e construímos nossas vidas. Acreditamos que o dinheiro tem valor; acreditamos que temos direitos; acreditamos que os países no mapa-múndi realmente existem, mesmo que nunca tenhamos verificado pessoalmente; acreditamos que as vacinas funcionam, mesmo que cegamente, confiando na medicina; acreditamos em uma infinidade de coisas que nunca verificamos ou que são inverificáveis, porque se não fizermos suposições sobre o que é provável ou improvável para basear nossas ações, viveríamos paralisados.
Crenças, porém, não são absolutas, imutáveis. Esta é a diferença entre crença e fé: as crenças comuns tendem a se basear na realidade e podem mudar; já as crenças guarnecidas pela fé são blindadas contra a realidade: são programadas para fugir de toda evidência contrário, e resistir a qualquer transformação.
Note, porém, que não estamos falando em fé em sentido amplo. Muitos usam o termo fé para se referir a otimismo em relação ao futuro, esperança, confiança em alguém. Aqui, o termo fé é utilizado em seu sentido estrito, conectado a uma ideologia religiosa e à sustentação de um dogma.
Acreditamos em uma infinidade de coisas que nunca verificamos ou que são inverificáveis, porque se não fizermos suposições sobre o que é provável ou improvável para basear nossas ações, viveríamos paralisados. É claro que nossas crenças frequentemente estão incorretas, e muitas vezes se baseiam em nossos desejos narcisistas ou preconceitos, ao invés de se sustentar em evidências. Mas isso é perfeitamente natural, pois como as crenças são mutáveis, elas operam como organismos num processo evolutivo: as ideias mais aptas a explicar a realidade sobrevivem e se multiplicam, e as ideias incorretas tendem a se perder. As exceções, é claro, são as crenças de fé, que em uma analogia biológica, seriam como espécies simbióticas ao ser humano (a fé aliena o indivíduo da realidade, mas é inegável sua utilidade dentro de grupos sociais, visto que as fés perduram por séculos ou milênios).
A fé opõe-se à crença comum porque ela é programada para resistir à mudança. Quem diz ter fé, celebra esta fé como uma virtude, e quanto mais sua fé é testada (isto é, quanto mais a realidade diverge dela), mais o indivíduo se sente valoroso por negar as evidências. Negar a realidade, para o fiel, é como evitar uma tentação: ao ser apresentado à verdade, ele ganha pontos espirituais ao forçar-se cego e surdo; sua ignorância ativa é proporcional à sua virtude.
É aí que reside a diferença crucial entre o teísta e o ateísta (embora, é claro, nem todos os teístas sejam cegos de fé, e nem todos os ateístas sejam isentos de fanatismo). O teísta, via de regra, é compelido por sua fé a ignorar as evidências contrárias à sua crença, para mantê-la intacta, assim como é fortemente desencorajado a investigar ideias que se opõem à sua visão de mundo preestabelecida. Uma vez instalada, a fé tem como prioridade máxima sobreviver, repelindo outras ideias (candidatas a novas crenças).
Assim, é verdade que o ateísmo é uma crença. Do ponto de vista estritamente científico, o máximo que se pode adotar como posição é o agnosticismo. Negar a realidade, para o fiel, é como evitar uma tentação: ao ser apresentado à verdade, ele ganha pontos espirituais ao forçar-se cego e surdo. Mas o ateu não é ateu porque julga ter encontrado a verdade absoluta em um livro; seu ateísmo é uma opinião, que ele presume ser condizente com a realidade.
Um simples exemplo como o famoso Bule Voador de Bertrand Russell pode clarificar: em um experimento filosófico, Russell sugeriu que houvesse um bule orbitando o sistema solar; devido à distância do suposto objeto, não seria possível atestar sua existência. Do ponto de vista científico, o único posicionamento viável seria o agnóstico: não se tem evidências a favor ou contra a existência do bule, pelo que nada pode ser dito de definitivo a seu respeito. Porém, para além da metodologia científica, e passando para a epistemologia filosófica do dia a dia... nós, como indivíduos, acreditamos que este bule é uma fantasia. Por questões práticas, somos ateus em relação ao bule.
E assim também é em relação à existência de Deus. O bule pode existir ou não, mas há muitas razões lógicas para se supor que ele não existe, e tendemos a acreditar que ele não passa de ficção. É uma crença pessoal, uma opinião. O mesmo acaba se fazendo em relação a Deus. Se, tudo considerado, nos parece improvável que Deus exista, é razoável sermos ateus. E se, mesmo sem fé, tendemos a julgar que a existência de Deus é a realidade mais provável, então somos teístas não dogmáticos. É, em qualquer dos casos, uma crença pessoal, uma opinião.
Portanto, um ateu verdadeiramente cético está sempre a um passo de acreditar em Deus. Só o que lhe falta é uma boa evidência. Por outro lado... o que seria necessário para mudar a crença de um fiel?