Nossa liberdade talvez dure pouco. Uma das mais importantes conquistas da humanidade e um dos direitos humanos mais básicos, a liberdade de pensamento e expressão, está outra vez em cheque no Ocidente. Desta vez, a ameaça de censura e retaliação social ou legal é aplaudida e fomentada por uma parcela das próprias massas: indivíduos fragilizados até a alma, que se ferem até mesmo com a opinião de estranhos ou com certos fatos científicos, a ponto de defenderem o uso da força policial e prisional para combater palavras e juízos pessoais.
O desejo pela censura, é claro, sempre existiu. Apesar de ser geralmente associada ao Estado, a repressão de ideias é defendida também por indivíduos para quem informações e opiniões contrárias à sua visão de mundo são intoleráveis, implicando que os "infratores" devem ser silenciados e castigados para garantir o conforto das "vítimas".
A maior parte das pessoas instintivamente prefere evitar ideias que as deixe desconfortáveis, e não se pode contar o número das que foram presas ou assassinadas por expressar opiniões (ou verdades) impopulares ao longo da história. Foi só em meados do século XX, após a derrota do nazismo e do fascismo, que a queima de livros e a perseguição de dissidentes ideológicos tornou-se um símbolo de selvageria e incivilidade no Ocidente. Entretanto, da Europa às Américas, a defesa à censura está recobrando forças, tendo surgido primeiramente como uma tendência inofensiva, bem-intencionada, mas lentamente tomando sua forma madura, ao infiltrar-se nas estruturas sociais de poder repressivo.
Essa tendência, portanto, passou a ganhar forma sistemática a partir das últimas décadas no século passado, com a adoção e promoção do politicamente correto, No mundo do politicamente correto, o ser humano vive em uma bolha de ficção, protegido da diversidade de ideias e da própria apreensão franca da realidade. São indivíduos cada vez mais dependentes da conformação alheia para seu bem-estar. isto é, uma regulamentação ideológica da linguagem e do pensamento nas linhas do progressismo. Iniciado nas universidades, o politicamente correto espalhou-se através da mídia, na máquina estatal e do marketing corporativo, passando a desempenhar uma função moralizante.
Antes de ser político, portanto, o politicamente correto funciona como um tabu, quase em termos religiosos: ele delimita tópicos considerados problemáticos, e alerta o indivíduo de que não poderá pensar ou se expressar livremente em certas áreas sem sofrer retaliação social ou legal. Para cada um destes tabus, há uma narrativa considerada moralmente correta, sendo sua negação um sinal de infração moral.
Para cada tabu há também certas restrições linguísticas: palavras imorais, a serem proibidas, e palavras corretivas, que vêm para substitui-las (veja alguns exemplos). Junto à manipulação linguística, por fim, há a correção do pensamento - uma das formas mais profundas de intervenção ideológica, porque transcende a parte superficial (os atos e palavras) e busca controlar a intimidade da mente individual (por exemplo: treinamento contra preconceito inconsciente (usado inclusive pelo Google), machismo internalizado (popularizado até pelo BuzzFeed), racismo internalizado, desconstrução social (com base em filósofos como Foucault e Derrida, contra todo o modo de pensar do indivíduo ocidental), descolonização cultural, etc.).
Em nações relativamente democráticas, o politicamente correto obviamente tem menos força, devido às restrições legais ao abuso estatal. Ainda assim, a erosão à liberdade de expressão tem ocorrido gradualmente e sem cessar, através de três artifícios principais: o uso da categoria discurso de ódio, o pretexto de combate às fake news e a prerrogativa das classes protegidas.
Em suma, é tratado como discurso de ódio tudo o que é percebido como ofensivo por algum indivíduo das classes protegidas. Estas classes são as chamadas minorias, ou grupos vulneráveis, definição derivada diretamente do feminismo interseccional. Para o interseccionalismo, a sociedade deve ser segmentada em grupos polarizados (oprimidos versus opressores) a partir de uma hierarquia de opressão. Assim, seleciona-se quem pode e quem não pode se ofender, e quem tem direito a expressar ódio. Pessoas negras que expressam racismo, mulheres que expressam sexismo e gays que discriminam por orientação sexual têm passe-livre, enquanto brancos, homens e heterossexuais, nestes casos, respectivamente, podem ser processados ou presos. Não se trata, em nenhuma dessas situações, de combater ameaças de violência, ou difamação de indivíduos, crimes já contemplados pela lei; trata-se legislar sobre a emoção das pessoas.
O próprio termo "politicamente correto" traz uma contradição em si: se todos discordamos em política, como pode haver um único politicamente correto válido para todos? Por estranho que pareça, o termo não busca sequer esconder que se trata de uma ação política, partidária, e que como tal está relacionada com a luta pelo poder e pela hegemonia ideológica.
A artimanha tem se mostrado incrivelmente eficiente, exatamente por se valer da boa-vontade e ingenuidade das pessoas para gerar divisão social, alimentar rivalidade entre os grupos e conquistar poder político, tudo sob o título de "justiça social". Atualmente, pessoas perdem empregos ou têm suas vidas arruinadas por uma única postagem "incorreta". Em países como a Inglaterra, indivíduos já são presos por satirizar o nazismo, enquanto a polícia, para evitar as acusações de racismo, tem há mais de uma década encoberto casos de estupros de menores cometidos por migrantes paquistaneses. Nos Estados Unidos, treze pessoas foram assassinadas em um ataque terrorista cometido por um colega muçulmano, Nidal Hasan, que por anos já mostrava sinais de associação com o extremismo islâmico (jihadismo). Receando serem acusadas de preconceito, as instituições evitaram tomar qualquer medida, abrindo espaço para a tragédia. E outras centenas de exemplos podem ser citados.
Na raiz dessa tendência, está sempre o indivíduo psicologicamente e emocionalmente fraco.
Trata-se de uma das formas mais extremas de fraqueza, e é difícil pensar em um tipo de vulnerabilidade mais intensa do que essa: a fragilidade às opiniões de estranhos, e a necessidade de intervenção estatal, com acionamento de polícia, juízes e advogados, para proteger os sentimentos de alguém.
O indivíduo mentalmente fragilizado pelo politicamente correto pode ser vítima até mesmo da enunciação da verdade: o mero vislumbre do mundo como ele é, sem filtros, pode causar dor e sentimento de derrota. Informações científicas ou históricas que contrariem sua "narrativa correta" (o dogma) são percebidas como ofensivas e perigosas. Algumas perguntas não devem ser feitas, algumas estatísticas não podem ser divulgadas, algumas ocorrências precisam ser esquecidas. Para o politicamente correto, a ciência é válida e confiável quando confirma seu credo, mas quando o contradiz, passa a ser relativa, falha, distorcida por interesses eurocêntricos colonialistas e pela ganância do capitalismo.
Nós vivemos em uma geração de pessoas emocionalmente fracas. Tudo precisa ser suavizado porque é ofensivo, inclusive a verdade. - Keanu Reeves
No mundo do politicamente correto, o ser humano vive em uma bolha de ficção, protegido da diversidade de ideias e da própria apreensão franca da realidade. Como evolução natural dessa fragilização, surgiram os safe spaces ("lugares seguros"), onde os progressistas se reúnem para escapar da violência verbal e emocional que julgam testemunhar no cotidiano, e dos trigger warnings ("avisos de gatilho"), usados para alertá-los sobre tópicos desconfortáveis. E há ainda as chamadas microagressões: comentários que, até recentemente, eram considerados inócuos, mas que agora podem causar angústia às pessoas mais frágeis (por exemplo, uma pessoa branca, ao elogiar o cabelo afro de uma mulher negra, pode fazê-la se sentir desconfortável por salientar que seu cabelo é diferente).
Ironicamente, quem adota o politicamente correto também costuma falar em empoderamento, apesar de cultivarem a fragilização emocional. Em seu exercício de "conscientização", buscam se tornar cada vez mais atentos, preocupados e sensíveis a quem discorda de seu viés de mundo e a quem não segue suas normas-tabu, tornando-se, consequentemente, cada vez mais dependentes da conformação alheia para seu bem-estar. Encontra-se, nesses casos, quadros psicológicos como a neurose (ultrassensibilidade a estímulos negativos) e a histeria (reação intensa, impulsiva e descontrolada a estes estímulos negativos).
Em contraste, uma pessoa resiliente e mentalmente saudável aceita com tranquilidade a existência de opiniões contrárias às suas. É, inclusive, um sinal de Com o politicamente correto, seleciona-se quem pode e quem não pode se ofender, e quem tem direito a expressar ódio. maturidade ignorar provocações inconsequentes e saber separar as pessoas de suas opiniões.
Assim, quando se discute a criação de leis que protejam pessoas contra ofensas, é crucial lembrar: as pessoas se ofendem até mesmo com a verdade diante de seus olhos. Em vista disso, os legisladores precisam fazer uma escolha: ou priorizam o direito de expressar a verdade, ou o direito de as pessoas se protegerem da verbalização da realidade, em âmbito público, por meio da censura. Não é possível conciliar ambos.
E no entanto, a proposta de lei n.º 2.630, de 2020 (a PL das fake news), assume a possibilidade de censura nos casos de "informações falsas" (ou "opiniões falsas", como disse o relator da lei). Com a aprovação da lei, o Estado torna-se o legislador da verdade. Sabe-se que até mesmo as ciências não passam um dia sem se corrigir, visto que o conhecimento está sempre em construção, e a busca pela verdade sempre incorrerá em muitos erros no percurso. Sabe-se, também, que o histórico dos jornais mais prestigiados apresentam um festival de notícias incorretas, que se provaram falsas em questão de semanas. Assim, sob qual autoridade, e valendo-se de que inspiração divina, poderia o Estado designar-se guardião da verdade?
É precisamente através da expressão livre e do tatear das ideias que a verdade vai sendo aos poucos revelada, tanto para cada pessoa, em sua jornada individual de entendimento do mundo, quanto para as civilizações e suas culturas. E é também por meio da liberdade de opinião e expressão que é possível contestar o autoritarismo, a injustiça e o erro. O preço que uma sociedade paga por manter sua democracia, sua liberdade e o avanço do conhecimento é o desconforto de conviver com ideias que nos desagradam, e às vezes ouvir o que não desejamos. Mas é um preço baixíssimo a pagar, considerando a alternativa.