O dia em que Racismo e Antirracismo se tornaram indistinguíveis | Fantástica Cultural

Artigo O dia em que Racismo e Antirracismo se tornaram indistinguíveis
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O dia em que Racismo e Antirracismo se tornaram indistinguíveis

Por Paulo Nunes ⋅ 11 ago. 2020
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É de causar espanto que tantos ativistas que se dizem antirracistas busquem angariar seguidores para sua causa enquanto praticam preconceito racial. Com sua nova definição de racismo, porém, todas essas atitudes discriminatórias passam a ser justificadas.

racismo antirracismo

Até muito recentemente, todos concordavam com a definição de racismo: preconceito baseado em raça. Um conceito simples e evidente: ao julgarmos um ser humano com base em sua raça ou etnia, ao invés de considerarmos outros fatores fundamentais, como seu caráter, estamos praticando discriminação racial. A muitos pode surpreender, porém, que essa definição de racismo está sendo substituída à força. E o novo significado da palavra racismo é, ironicamente, uma definição em si mesma racista.

No entender da maior parte das pessoas, em todo o mundo, o sentido original da palavra ainda vale, e é o que encontramos em todos os dicionários atualmente (mas até quando?). Sua forma mais evidente é a discriminação negativa fundamentada em diferenças raciais (que podemos chamar de preconceito), mas o racismo também pode apresentar-se como discriminação racial positiva. De repente, atitudes racistas contra certa raça passaram a ser chamadas de antirracismo, e ser contra todas as formas de racismo passou a ser... uma atitude racista. Afinal, toda vez que consideramos um grupo superior, inferimos que os outros são inferiores; e toda vez que concedemos direitos especiais a um grupo (privilégios), discriminando-o positivamente, é inevitável que ocorra uma discriminação negativa para os demais.

Assim, ainda que os nazistas nada tivessem feito contra os judeus, ainda identificaríamos uma atitude racista em sua noção de superioridade ariana, e nos direitos especiais de que dispunham os indivíduos deste grupo.

Talvez por essa razão, o conceito original de racismo esteja sendo há bastante tempo criticado e deslegitimado pelos ativistas defensores da reparação histórica racial: quando suas ações podem perfeitamente ser descritas como racistas (como, por exemplo, a exigência de direitos especiais a um grupo étnico específico, ou acusações estereotípicas a uma raça inteira), uma saída possível é alterar o significado das palavras.

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Ao melhor estilo orwelliano, então, podemos redefinir os termos, como o Partido faz no mundo de 1984 através da Novilíngua. De repente, atitudes racistas contra certa raça passaram a ser chamadas de antirracismo, e ser contra todas as formas de racismo passou a ser... uma atitude racista.

A nova definição propagada pelos ativistas é, na verdade, bastante antiga, tendo origem em um texto de Patricia Bidol, de 1970: racismo, para ela, seria preconceito mais poder institucional. A partir dessa ideia, assume-se que a raça branca detém o poder institucional (supremacia branca) e que, portanto, só é possível ser racista se você é um branco demonstrando preconceito contra alguém que não é branco. Assume-se também que todas as estruturas sociais e de governo de todos os países do Ocidente perpetuam, de uma forma ou de outra, racismo estrutural, institucional e sistêmico. No caso de preconceito entre pessoas da mesma raça ou etnia, alguns acadêmicos propuseram um novo termo, o colorismo.

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Você pode comprar este poster racista pelo link (também disponível em camisetas!): https://keepcalms.com/p/keep-calm-and-fuck-white-people/

A teoria toda é muito interessante, e nos fornece um insight fascinante sobre a mentalidade destes ativistas, e sobre a maneira peculiar como enxergam a realidade.

Uma sociedade multirracial como a brasileira, ou a norte-americana, é entendida por muitos, atualmente, como uma supremacia branca. Obviamente, há pessoas negras ocupando todo tipo de cargos, exercendo todo tipo de profissão, sendo aceitas normalmente em qualquer universidade. Entretanto, as porcentagens na distribuição racial em cada cargo, área profissional ou vestibular não agradam os ativistas, e a única explicação que lhes parece possível é o racismo institucional. Em países onde os judeus são super-representados entre as pessoas mais ricas e influentes, porém, como nos É de causar espanto que tantos ativistas que se dizem antirracistas busquem angariar seguidores para sua causa enquanto praticam preconceito racial diariamente Estados Unidos ou na Inglaterra, ninguém fala em uma supremacia judia, mesmo que estes ocupem em proporções elevadas o topo da estrutura social. Afinal, seria ridículo. Mas, por alguma razão, a mesma lógica racista é aceita se trocarmos a raça-alvo.

Além deste debate sobre distribuição racial em cargos e profissões (representatividade), busca-se sustentar as alegações de racismo sistêmico com base nas estatísticas de violência policial, encarceramento e racial profiling. O problema sem dúvida existe, mas quais são as causas? Ninguém discorda de que as origens históricas da população negra estão conectadas ao seus maiores índices de pobreza, e que a desigualdade econômica, por sua vez, é um fator relacionado à criminalidade em todo o mundo, independentemente da etnia. Some-se a isso a guerra ao tráfico, a cultura beligerante criada em torno do crime organizado, as leis punitivas contra usuários de drogas e o despreparo policial, e não será necessário falar em racismo estrutural para entender a situação social completa. Isso, é óbvio, não exclui a ocorrência de atos racistas e de abuso policial e jurídico - mas não se trata de uma prática institucional, e sim de falhas de caráter dos indivíduos.

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Ops...

Há, por todo o mundo e durante toda a história, casos de opressão de seres humanos contra outros seres humanos. Toda raça ou etnia que teve oportunidade em algum momento abusou de seu poder, e ainda hoje muitos abusam de forma realmente sistêmica, como o tratamento das mulheres em países islâmicos (legitimado pelo Estado teocrático), ou a perseguição a dissidentes políticos em vários países africanos ou asiáticos, ou a discriminação estatal contra muçulmanos e cristãos na China. Em vista dessa realidade tão óbvia, que tipo de fanático acreditaria que apenas uma das raças é capaz de opressão sistêmica ou preconceito?

E o mais grave na adoção deste novo conceito de racismo é que ele é, e si mesmo, racista. Ao atribuir falhas morais, culpa e dívida ética a todos os membros de uma raça ou etnia, estamos empregando um estereótipo preconceituoso de raça. E nenhuma narrativa de justificação a essa atitude pode amenizar o nível de racismo desta ideologia.

"Eu tenho um sonho: que meus quatro filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, e sim por seu caráter."

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Estes protestantes estão reivindicando paz e justiça nos EUA, colaborando para eliminar os estereótipos negativos atribuídos à sua comunidade. Ou o contrário.

Note que, quando Martin Luther King proferiu esta que é uma das falas mais conhecidas e importantes no combate ao racismo, ele não distinguiu nenhuma raça. Este é o entendimento que tínhamos, como sociedade, até há algumas décadas, após o fim do Apartheid e das leis norte-americanas de Jim Crow. O que se queria era igualdade de direitos e de tratamento social. Hoje, porém, nos encaminhamos cada vez mais para uma situação reversa, com escalada das tensões étnicas em todas as democracias do Ocidente. E os ativistas que se dizem antirracistas estão no cerne causador das tensões raciais, problema que até há poucos anos parecia prestes a desaparecer, até que o tópico raça virou obsessão dos progressistas. Trazido à pauta recheado de intrigas, acusações e uso malicioso de informações e estatísticas, este debate tem dividido, polarizado e radicalizado a sociedade.

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E enquanto se fala em racismo estrutural causado pela supremacia branca, na prática escutamos mais e mais, nas universidades, escolas e redes sociais, alegações, acusações e ofensas baseadas em raça. O desejo de vingança coletiva em várias comunidades é quase palpável: enquanto frases como "cala a boca, branquelo", "tinha que ser branco", "quanto menos brancos, melhor", "você não tem direito de opinar porque é branco", "esse não é o seu lugar de fala" circulam livres e sem qualquer repercussão, muitos expressam o desejo visceral de arruinar, levar à prisão ou queimar vivo qualquer indivíduo que use frases semelhantes às recém-citadas contra as etnias protegidas. A sanha vingativa é absolutamente desproporcional, e não pode ser descrita de outra forma senão como ódio racial.

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Um comentário construtivo a esta postagem no Facebook.

Falar em racismo reverso, portanto, faz tanto sentido como falar em soco reverso, ou chute reverso. Todo ser humano pode ser racista. A própria ideia de que apenas uma raça pode ser racista é um conceito incrivelmente preconceituoso.

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Mas caso você seja o racista, põe fogo igual?

E obviamente, não se trata nunca de tentar comparar quem sofre mais racismo. Seria absurdo, por exemplo, dizer que mulheres são privilegiadas porque morrem menos (90% dos assassinados no Brasil são homens). Isso porque cada vida importa. Assim, não resta dúvida de que o racismo afeta muito mais as comunidades negras, mas ninguém deveria estar competindo sobre isso. E é de causar espanto que tantos ativistas que se dizem antirracistas busquem angariar seguidores para sua causa enquanto praticam preconceito racial diariamente. É razoável supor que essas pessoas, se dispusessem de poder, fariam (talvez em nome da justiça) exatamente o mesmo que acusam os outros de fazer. Como ter simpatia por ativistas que parecem desejar se tornar opressores?

Assim, quando a líder do Black Lives Matter no Canadá, Yusra Khogali, chamou as pessoas brancas de "sub-raça" e disse que elas são "geneticamente defeituosos", resta-nos a dúvida:

Se um ativista destes estivesse no poder, não tenderia a agir praticamente como um Hitler?

Todos os ingredientes estão ali:

  • Ódio ou ressentimento racial.
  • Crença de que a raça antagonizada forma uma complô conspiratório para controlar a sociedade (acusação que os nazistas faziam contra os judeus).
  • Noção de que a violência é justificável para compensar injustiças históricas (veja todos os inúmeros protestos violentos do Black Lives Matter, com dezenas de vítimas).
  • Cada um dos indivíduos da raça antagonizada é acusado de carregar parte da culpa e das "propensões más", não merecendo simpatia.
  • A única maneira de estabelecer justiça é arrancar as pessoas da raça antagonizada do poder, mesmo que tenham chegado lá por via democrática.
  • A raça antagonizada deve ceder lugar em profissões, cargos e vagas de ensino para compensar ações de outros indivíduos no passado.

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Portanto, chegamos a um ponto em que o movimento que se diz antirracista está se tornando quase indistinguível do próprio racismo. A única diferença é a raça-alvo. E as consequências disso não são nada promissoras.

Quando aceitamos a ideia de que somos todos igualmente humanos, e que merecemos o mesmo tratamento e os mesmos direitos, abrimos caminho para uma sociedade mais saudável, mais empática, mais solidária. É a partir dessa noção ética que poderemos, aos poucos, neutralizar os preconceitos raciais e aposentar o viés hierárquico de opressores e oprimidos. Mas essa estratégia está em declínio.

Infelizmente, os movimentos que se dizem antirracistas têm tomado o caminho contrário, reforçando cada vez mais a divisão das raças, clamando pela volta da segregação em certos espaços e por leis e tratamentos diferenciados baseados no fenótipo dos indivíduos. E não bastasse isso tudo, ainda cresce a cada dia as hostilidades sociais baseadas em raça, criando ambientes sociais tóxicos cheios de acusações, silenciamentos, culpa, medo e ressentimento. As pessoas já não podem se tratar como iguais, como se um sistema de castas ditasse o que pode ser dito por quem, quem pode ofender quem, quem deve ser silenciado, etc.

Aos que forem capazes de se manter sãos, resta o desafio de escapar à radicalização, e continuar acreditando e defendendo o tratamento igualitário a todos os indivíduos.

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foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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