Antônio Vieira: O Estranho Caso do Padre que Catequizava Deus | Fantástica Cultural

Artigo Antônio Vieira: O Estranho Caso do Padre que Catequizava Deus

Antônio Vieira: O Estranho Caso do Padre que Catequizava Deus

Por Paulo Nunes ⋅ 20 dez. 2020
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

A maioria dos religiosos se contenta em evangelizar pessoas. Padre Vieira, porém, tomou para si uma missão mais ousada: educar o próprio Deus sobre os valores católicos, e puxar sua orelha para que passasse a se comportar como uma verdadeira divindade cristã.

jesus confuso

Ensinar padre a rezar missa pode até ser um contrassenso, mas quando o padre tenta ensinar Deus a ser cristão, aí temos uma singularidade.

De fato, poucos clérigos ousariam se dirigir a Deus dessa forma, e tampouco se julgariam capazes de persuadir o próprio criador do universo por meio de uma retórica humana. Mas o padre Antônio Vieira não era qualquer padre. E pelo jeito, sentia-se bastante confiante em sua sacra eloquência quando, em 1640, decidiu chamar Deus para uma conversa, para convencê-lo a se empenhar mais em seu divino trabalho e a parar de negligenciar a ética cristã.

Quero eu, Senhor, converter-vos a vós.

Na época, a situação do Brasil era delicada: as forças militares portuguesas, que detinham o comando sobre o Brasil colônia, estavam à beira da derrota em um confronto contra os holandeses. A Holanda já havia tomado parte do território brasileiro, e a guerra seguia acirrada. Vieira não entendia como um Deus católico permitia tal coisa: Por que Deus estaria abandonando a tão católica colônia portuguesa, deixando-a ser tomada pelos calvinistas (protestantes)?

deus e anjos

Inconformado, o padre Vieira dirige-se a Deus para que algo seja feito em benefício dos brasileiros e portugueses, e declara sem qualquer receio:

Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça.

Para Viera, o maior interessado em derrotar a Holanda deveria ser o próprio Deus. Ele argumenta que se as nações católicas fossem subjugadas pelos holandeses, de fé protestante, o nome do Senhor perderia crédito, honra e glória. "O Reino de Portugal", afirma Vieira a Deus, "é reino seu e não nosso". Por razões incompreensíveis, o senhor onisciente do universo havia perdido a memória, ou o interesse.

Em protesto, Vieira questiona:

Parece-vos bem, Senhor, parece-vos bem isso? Que a mim, que sou vosso servo, me oprimas e aflijais, e aos ímpios, aos inimigos vossos os favoreçais e ajudais?

E a reprimenda não para por aí. Vieira tenta chamar Deus à razão, ao bom-senso, e o relembra dos vários erros de julgamento que ele teria cometido, conforme descritos na Bíblia. "Ainda que nós somos os pecadores", alerta o padre, "vós haveis de ser o arrependido". E prossegue tentando envergonhar a divindade pelo genocídio que cometeu através do Dilúvio:

Senão quando, ao terceiro dia, começaram a boiar os corpos mortos, e a surgir e aparecer em multidão infinita aquelas figuras pálidas, e então se representou sobre as ondas a mais triste e funesta tragédia que nunca viram os anjos... Vos arrependestes do que tínheis feito ao Mundo; e foi tão inteira a vossa contrição, que não só tivestes pesar do passado, senão propósito firme de nunca mais o fazer.

arca de noe e diluvio por newton whiston

E, como se estivesse se dirigindo a uma criança, adverte: "vede o que fazeis antes que o façais, não vos aconteça outra". Até para a reputação divina Vieira apelou: "Olhai, senhor, que dirão de vós".

Mas também havia a possibilidade de que os males que afligiam Brasil e Portugal fossem, na verdade, uma punição de Deus contra os pecados cometidos pelos próprios católicos. Para isso, porém, Vieira também apresenta um bom argumento:

Se é condição de Deus usar de misericórdia, e é grande e não vulgar a glória que adquire em perdoar pecados, que razão tem de os não perdoar?

O raciocínio do padre é inusitado. Para ele, Deus e o católico pecador formam uma espécie de simbiose: se Deus adquire glória ao perdoar os pecados, é evidente que ele depende da ocorrência de pecados para tornar-se mais glorioso. Em outras palavras: o pecado é a única oportunidade que Deus tem de exercer sua benevolência.

Quanto mais e maiores são os pecados que Deus perdoa, tanto maior é e mais engrandece e exalta o seu santíssimo nome. ... Em castigar, venceis-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, venceis-vos a vós mesmo, que sois todo poderoso e infinito.

padre antonio vieira

E temendo que todos esses argumentos, Vieira decidiu apelar para a mãe do Senhor.

Referindo-se às depredações às imagens católicas das igrejas perpetradas pelos invasores holandeses, confessou:

Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas imagens, pois já as permitiste em vosso sacratíssimo corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e amor de Filho.

Todas essas palavras, e muitas outras, padre Vieira pronunciou em seu Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, em 1640. Deus parece ter sido convencido, mas ainda esperou catorze anos antes de expulsar, afinal, os holandeses do Brasil.


padre antonio vieira

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST