Os Mitos de Jesus Cristo e Prometeu: muito mais que meras semelhanças | Fantástica Cultural

Artigo Os Mitos de Jesus Cristo e Prometeu: muito mais que meras semelhanças

Os Mitos de Jesus Cristo e Prometeu: muito mais que meras semelhanças

Por Paulo Nunes ⋅ 8 jan. 2021
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Existem várias semelhanças intrigantes entre o mito grego de Prometeu, que levou o fogo do conhecimento aos povos humanos, e histórias bíblicas como a da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. E o próprio Cristo parece uma versão tardia de Prometeu, a sacrificar-se pela humanidade.

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À esquerda: Prometeu, por Jacob Jardaens. À direita: Jesus, por Moretto da Brescia.

É comum escutarmos que as histórias bíblicas são, na verdade, meros plágios da mitologia de outras culturas. Você provavelmente já ouviu algo parecido. Mas o que há de verdade nisso?

Um dos casos de similaridade mais intrigantes é, sem dúvida, o do mito grego de Prometeu, uma história que em vários aspectos se assemelha ao martírio de Cristo e à transgressão de Adão e Eva no Jardim do Éden. Os detalhes compartilhados entre essas narrativas parecem mais do que mera coincidência, principalmente porque o intercâmbio cultural e religioso é um fenômeno histórico bastante comum.

Tanto Cristo quanto Prometeu são descritos como figuras sobre-humanas, pois pertencem a um estirpe mais elevada do que a dos homens mortais: um é o filho de Deus, cujo lar original é o Céu, e o outro é um titã, nativo do reino dos deuses. Cristo e Prometeu possuem poderes e conhecimentos sobre-humanos, e ambos cometem um ato de generosidade e autossacrifício em prol da humanidade: ações que, de acordo com as narrativas, mudariam a história do mundo para sempre.

Mas as semelhanças não param por aí.

Prometeu confeccionado o ser humano, por Otto Greiner - 1909
Prometeu confeccionado o ser humano, por Otto Greiner - 1909

Na mitologia grega, narra-se que todos os animais e seres humanos foram criados pelos irmãos titãs Prometeu e Epimeteu, sob ordens de Zeus (em outras versões, são os deuses que criam os animais e homens, restando aos irmãos a tarefa de dotá-los com suas qualidades específicas). O mito grego detalha que cada animal recebeu dos dois irmãos titãs um determinado artifício para que pudesse sobreviver na natureza: asas, presas, garras, couraças, etc. Chegando o momento da criação da raça humana, porém, os titãs viram-se sem material de confecção, exceto um: o barro.

O resultado foi uma criatura de belas formas, mas frágil e indefesa, fisicamente incapaz de sobreviver por seus próprios meios. O ser humano não possuía pelos para se proteger do frio, nem garras adequadas para caçar, nem presas apropriadas para mastigar carne crua, nem asas para escapar de seus predadores, e seu corpo era débil e vulnerável no meio natural.

Prometeu sabia que essas fragilidades levariam à morte de todos os seres humanos. Decidido a ajudá-los, ele ousou subir ao Olimpo e roubar o fogo sagrado dos deuses, fonte da inteligência, do engenho e da astúcia, e permitiu que suas chamas se espalhassem entre os homens. Com aquele gesto, a humanidade pôde tornar-se uma espécie engenhosa e criadora, pois detentora do conhecimento.

Prometeu carregando o fogo dos deuses, por Jan Cossiers
Prometeu carregando o fogo dos deuses, por Jan Cossiers

E quando se diz fogo, a referência é tanto ao fogo literal quanto ao alegórico. No primeiro caso, trata-se da explicação mítica para a descoberta do fogo pelo ser humano, advento que revolucionou o modo de vida da humanidade e permitiu, em parte, a civilização. Prometeu teria inclusive ensinado aos homens a arte da metalurgia. Já no caso alegórico, o fogo representa todo tipo de saber, tecnologia ou engenho. E essa capacidade de criar havia sido, até então, uma exclusividade dos deuses.

Zeus e os demais deuses enfureceram-se. Ao adquirirem o fogo do conhecimento, os homens igualaram-se aos deuses em intelecto e engenhosidade. Os deuses, é claro, não desejavam competição.

Como punição, Prometeu foi arrastado até um penhasco nos limites do mundo, e foi pendurado por correntes em um Você também pode gostar: Prometeu e Pandora: Mito da Origem do Fogo, do Homem, e o Dilúvio - Mitologia Grega rochedo diante do mar. Durante muitos anos, ele permaneceria sendo torturado por aves de rapina, que devorariam seu fígado indefinidamente, à medida que este se regenerava. O martírio não tinha prazo para terminar, pois Prometeu, como todo titã, era imortal.

Esse martírio, porém, não havia sido uma surpresa. Prometeu possuía o dom do presságio. Seu ato, portanto, foi um gesto de autosacrifício e amor à humanidade pago com tortura e sangue, como a Paixão de Cristo. E como Cristo, Prometeu já conhecia seu destino antes de agir, via premonição.

o outono de hugo van der goes
O fruto proibido

O tema central nessas histórias é a fronteira entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens, assim como as transgressões dessa fronteira, que fazem da humanidade uma raça semidivina.

O autossacrifício de Cristo, por exemplo, é o ato que abre as portas do Reino Divino para os seres humanos. Lembre-se que, de acordo com a Bíblia, nós só morremos porque Deus sentenciou a raça humana à morte em resposta à transgressão de Adão e Eva, no Jardim do Éden. Os homens e mulheres originais eram imortais, mas com a punição divina, eles foram expulsos do Paraíso e extirpados da vida eterna. É Cristo, na narrativa cristã, que redime a raça humana.

Não por coincidência, os testamentos bíblicos afirmam que o destino dos mortos até a vinda de Cristo é o Sheol, termo hebraico para o Hades, o Reino dos Mortos da mitologia grega.

"E aconteceu que ... a terra que estava debaixo deles se fendeu; e a terra abriu a boca e os tragou com as suas famílias ... Assim eles e tudo o que era seu desceram vivos ao Sheol; e a terra os cobriu." (Números 16:31-33).

E, finalmente, temos a árvore da ciência do bem e do mal, cujos frutos assemelham-se ao fogo divino do conhecimento.

Adão e Eva, por Tiziano Vecellio - 1550
Adão e Eva, por Tiziano Vecellio - 1550

Vivendo como imortais no Jardim do Éden, Adão e Eva conheciam uma única lei imposta pelo Criador: "da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia que dela comeres, certamente morrerás" (Gênesis 2:17). Segue-se que Lúcifer, o anjo rebelde, apresentou-se a Eva na forma de uma serpente e lhe garantiu que o fruto da árvore proibida não a mataria. E depois dessa mentira, ele revelou um dos segredos de Deus:

"Ora, Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e vós, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal!" (Gênesis 3-5).

O próprio Deus confirma que, ao comerem do fruto proibido, Adão e Eva passam a compartilhar de um dom divino:

"Então, disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois, cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente." (Gênesis 3:22).

Martírio de Prometeu, por Gustave Moreau
Martírio de Prometeu, por Gustave Moreau

O Deus cristão não difere muito de Zeus nesse aspecto: seu desejo é monopolizar seus poderes especiais, eliminando qualquer tipo de competição a seu reinado e mantendo a espécie humana sempre indefesa, ignorante (até mesmo do bem e do mal) e obediente. Enquanto o doutrina cristã justifica essa postura divina argumentando que a sabedoria e a benevolência infinitas de Deus são infalíveis, e que o ser humano deve ter fé absoluta na competência do Criador, a mitologia grega simplesmente estabelece que os deuses são tão moralmente falhos quanto os homens, e só estão no comando porque têm mais força. Conforme a ordem do mundo grega, "manda quem pode, obedece quem tem juízo".

Assim, apesar de ter se aliado à humanidade contra a tirania dos deuses, Prometeu também foi visto como o causador de novos tormentos para os homens, devido à ira de Zeus que se seguiu.

"O Prometeu dos antigos tem sido, na maior parte, uma figura espiritualmente repreensível, sem bem que frequentemente simpática, tanto em termos de sua dramática situação quanto de sua íntima aliança com o homem e contra os deuses. Porém esta aliança foi ruinosa para o homem na maioria das versões do mito, e a benevolência do Titã mal foi suficiente para recompensar a alienação do homem do céu, de onde ele o havia trazido." (Harold Bloom, posfácio de Frankenstein, de Mary Shelley).

cristo na cruz entre dois ladroes por peter paul rubens
Crucificação de Cristo, por Peter Paul Rubens

E por estar relacionado tanto ao autossacrifício em prol da humanidade (Cristo) quanto à transgressão à ordem divina (o fruto proibido), Prometeu foi muitas vezes comparado pelos cristãos a duas figuras que não poderiam ser mais opostas: ao próprio Jesus, e a Lúcifer, pois ele possui em si essas duas essências.

"Ambos os lados do Titanismo são evidentes nas primeiras referências cristãs à estória. O mesmo Prometeu que é considerado como semelhante ao Cristo crucificado é também encarado como uma espécie de Lúcifer, filho da luz justamente expulso do céu que ele ofendeu." (Harold Bloom, posfácio de Frankenstein, de Mary Shelley).

Por fim, temos o pecado original associado à mulher, curiosamente presente em ambas as mitologias. Em Os Trabalhos e os Dias (século VIII a.C.), Hesíodo conta que Zeus valeu-se de vários métodos para punir os homens pelo uso do fogo divino. Um desses métodos foi instruir o ferreiro Hefesto a criar a primeira mulher a partir do barro, esta que se chamaria Pandora. E assim como a curiosidade de Eva levou à desgraça de toda a espécie humana, no Antigo Testamento, a abertura da caixa de Pandora (também por curiosidade) foi, da mesma forma, o ato que trouxe os maiores tormentos para a raça dos homens: labor, doença, mentira, guerra e morte. Nos dois casos, a curiosidade e a desobediência a uma ordem arbitrária constituem a causa de todos os sofrimentos humanos.

Após o pecado original, é narrado no Gênesis:

"E à mulher [Deus] disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e o teu parto; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará. E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei ... maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá ... No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra." (Gênesis 3:16-19).

Mas, afinal, faz sentido tratar Jesus como um mito?

A tortura de Prometeu, por Salvator Rosa - 1646-1648
A tortura de Prometeu, por Salvator Rosa - 1646-1648

Uma das diferenças óbvias entre Jesus e Prometeu é que o primeiro foi uma figura histórica, e o segundo foi uma entidade inteiramente ficcional. Assim, seria pertinente compará-los?

Certamente.

Isso porque o Cristo celebrado pelo cristianismo não é meramente uma figura histórica. Na verdade, pouco se sabe sobre o Jesus real, sua vida, seus feitos e suas ideias. Historicamente falando, a existência de Jesus é apenas especulativa, baseada na probabilidade de suas várias menções serem verdadeiras. Mas essa existência histórica é vazia de milagres, santidades ou simbologias: quem concede a Jesus seu caráter divino, assim como o significado de sua história, é a religião.

Prometeu trazendo o fogo dos deuses, por Heinrich Friedrich Füger
Prometeu trazendo o fogo dos deuses, por Heinrich Friedrich Füger

Quando se diz que Jesus sacrificou-se pela humanidade, a fim de redimir os pecados dos homens, isto é uma questão de interpretação religiosa - isto é, uma narrativa mítica. O tanto que se poderia provar seria a execução de Jesus, e outros detalhes logísticos, caso houvesse evidências. Para além disso, a teia de conexões lógicas entre os eventos narrados, o teor simbólico de cada gesto, o caráter profético da ação de cada indivíduo, fazem parte da cuidadosa construção literária das cenas bíblicas, cujo produto final é não menos mítico do que o conto de Prometeu.

E apesar de várias correntes cristãs ainda levarem os mitos bíblicos ao pé da letra (como os criacionistas, por exemplo), a Igreja Católica tem gradualmente se flexibilizado em relação às suas narrativas mais fabulosas, passando a encará-las mais como alegorias. Na introdução à Bíblia que tenho em mãos, por exemplo (uma edição católica), lê-se o seguinte:

"Os onze primeiros capítulos do Gênesis, por exemplo, não foram escritos como um curso sobre as origens da humanidade, muito menos ainda como tantas lições de astronomia ou de história natural. ... Todos sabem que um poeta não escreve como um cientista e que toma muitas liberdades de linguagem ... Por fim é bem notório como a parábola, a comparação, a anedota, a própria fábula são sugestivos para ajudar a compreensão de verdades profundas e abstratas." (Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave-Maria, 2001).

Enfim, o "plágio"

hieroglifos em papiro egipcio egito antigo

Quanto mais se estuda as mitologias do mundo, mais se tornam evidentes as semelhanças entre as narrativas: eventos, personagens, atos, criaturas, símbolos - tudo parece convergir para um lugar comum. Trata-se dos arquétipos, os blocos-base de toda cultura humana.

Um dos autores a popularizar a coleta e comparação de mitos e lendas de culturas diversas foi o pesquisador Joseph Campbell, mais conhecido pelo seu livro O Herói de Mil Faces. Na obra, Campbell elabora uma estrutura mítica única (o monomito) cujas feições parecem ser compartilhadas pela maioria das narrativas mitológicas pelo mundo, independentemente de época e localização.

Assim, apontar as similaridades entre as histórias bíblicas e outras narrativas, como as egípcias, as gregas, as babilônicas, não pode de forma alguma ser usado como crítica. Isso porque essas histórias são consideradas verdadeiras, de forma literal ou simbólica, por quem as transmite, e repassar esses fatos (reais ou presumidos) não é uma apropriação desonesta, e sim uma troca de informação.

Um erro comum, por exemplo, é aplicar a ideia moderna de direitos autorais (copyright) às culturas do passado.

evolucao do alfabeto atraves de diversas culturas
A evolução das letras é um exemplo de como elementos culturais passam livremente de cultura para cultura, sendo apropriados pelos usuários sem a noção de "autoria". Os mitos e simbologias religiosas, assim como as línguas, são recursos da humanidade, e as pessoas os utilizam e transformam conforme sua conveniência. Trata-se de um patrimônio humano sem fronteiras.

A mitologia é, de fato, uma forma de literatura coletiva (às vezes puramente oral), e não há como negar seu caráter artístico. Mas a ideia de que "uma história possui dono" só emerge em uma cultura quando sua fase mítica está por desaparecer. Civilizações jovens não possuem uma divisão clara entre os conhecimentos: os mitos e lendas se confundem com as histórias reais, sem distinção, e tudo o que uma pessoa sabe ou acredita parte do "ouvi dizer".

nfora aquiles matando pentesileia ceramica da grecia antiga 530 ac

Portanto, ouvir uma história e repassá-la não pode ser considerado plágio, ou apropriação de crédito autoral. Essas narrativas não têm dono, tampouco seria possível verificá-lo. E o fato de a história narrada ser real ou lendária não faz qualquer diferença, em um tempo em que não existiam fontes de conhecimento confiáveis para verificar. Assim, e como todos sabem, a cada vez que uma história é repassada, alguns detalhes são perdidos, outros são alterados e alguns são acrescidos. Com o tempo, chega o dia em que um mito egípcio, modificado, é tomado por mito babilônico, ou vice-versa: as narrativas míticas fluem através das culturas.

E um outro detalhe. Conta-se que a melodia de Imagine surgiu para John Lennon em um sonho, e que o músico não conseguiu determinar se havia escutado aquela sequência de notas antes, em outra música, ou se seu cérebro a havia composto enquanto dormia. Também assim devem ter procedido os autores dos testamentos bíblicos, durante os mais de mil anos de sua composição:

"Foi esta uma revelação de Deus que tive em sonhos? Ou foi uma história que escutei do mercador egípcio?"

No fim, quase nada sobra além da próprio narrativa. O resto é mistério e especulação.

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Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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