Dia dos Mortos - Sérgio Faraco | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo Dia dos Mortos - Sérgio Faraco | Conto Completo
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Dia dos Mortos - Sérgio Faraco | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 8 nov. 2021
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Perplexidades do cotidiano humano.

Dia dos Mortos, de Sérgio Faraco

Espectro da morte, por Rob Thomas
Espectro da morte, por Rob Thomas

Os dois jovens iam devagar, como todos, e em silêncio, como quase todos. Quem falava, fazia-o em voz baixa, cautelosa. Acima do murmúrio só a voz do pipoqueiro, seu pregão monótono: "Olha a pipoca, tá gostosa e salgadinha". Empurrava o carrinho, parava, tornava a rodar e ainda assim ia ultrapassando a maioria. Olha a pipoca, tá gostosa e salgadinha e sob essa voz de estridência fastidiosa, quase petulante, como rejeitando-a e ao mesmo tempo sustentando-a desde canais subterrâneos, o rumor dos passos, milhares, milhões, trilhões de passos, todos na mesma direção pela Rua São Francisco Xavier. Aonde iriam? Aonde chegariam com tão vago andar? Nalgum lugar, sem ofensa ao silêncio, automóveis buzinavam sem parar.

— Vamos num bar — disse Neco.

— Não — disse Maninho —, o pai recomendou que voltássemos pra pensão.

— Mas eu queria ir num bar, estou precisando.

Já haviam perdido de vista o pipoqueiro e agora os ultrapassavam, com pressa, negros de uma escola de samba. Pelos bonés Maninho e Neco os reconheceram, eram aqueles que, na saída do Portão 18, tinham iniciado uma incoerente batucada. Um dos negros vinha amparado pelos companheiros, que o faziam dar passos trôpegos no chão, outros no ar. Sua cabeça pendia para a frente e para os lados, o rosto lívido, parado.

— Eu também queria tomar um porre — disse Neco.

— A essa hora?

— Que horas são?

— Cinco.

— Imagina, cinco, e dizer que está tudo terminado.

Persistiam as buzinas ao longe, lembrando clarins sombrios na emoção de um cemitério. Já se distanciavam os sambistas, sempre com pressa, sempre carregando aquele corpo abúlico.

— Bacana — disse Maninho, apontando.

— Que é que há lá?

— A bandeira, não vês?

— Bandeira... Do portão pra cá pisamos em dezenas.

— Mas essa está de pé.

Quem a segurava era um Rei Momo embriagado, um gordo que se fantasiara para o carnaval da vitória. Não andava, apenas movia os pés sem sair do lugar e agitava seu pavilhão, como cumprindo um papel que, afinal, alguém tinha de cumprir: esperar a passagem da boiada e cutucar-lhe os brios.

Mas o gordo não dava conta do papel, não era o homem certo. Naquele dia, no Rio de Janeiro, a las cinco en punto de la tarde, não havia homens certos, não havia nada certo, a própria vida era um erro que só agora as pessoas descobriam, sem querer acreditar. Triste gordo. Seu rosto parecia ter cristalizado nalgum momento antes das cinco de la tarde e ele trazia na face, nos olhos, uma expressão que era um misto de pasmo e de estupor.

Passavam Maninho e Neco quando o gordo caiu. Tentou erguer-se, mas ao levar o braço para retomar a bandeira, novo tombo o pôs sentado sobre a perna, gemendo, a bandeira outra vez no chão.

— É o fim — disse Neco.

— Fim de quê? O Brasil não se acabou, nem Porto Alegre e amanhã a gente embarca pra lá. Já pensaste nisso? Quanta coisa bonita temos pra contar?

— Gosto é gosto.

— A marchinha do Lamartine Babo não é tranchã? O povo cantando, dançando. Lembra aquela mulata de chapéu de palha e cinturex?

— Isso foi antes.

— Depois teve a volta olímpica, foi emocionante.

— A volta olímpica deles.

— Mas o povo aplaudiu.

— Chorando. E foi saindo em silêncio, como nos enterros.


Um silêncio de 200.000 bocas.

WILLY MEISL


Na parada dos bondes a aglomeração era excessiva. Quedaram-se os dois meio afastados, vendo partir, apinhado, o bonde para Vila Isabel.

— No Império está levando Escravo da Ambição, com o Glenn Ford — disse Neco.

— Onde fica esse Império?

— Não sei, li no jornal. Tem também uma revista...

— Lá vem o nosso!

— Nosso nada, é o Aldeia Campista — e segurou Maninho pelo braço: — Cutuca por Baixo, com a Luz del Fuego.

— Ih, só imagino.

— Não, não imaginas. O Rio é outro mundo. Sabe que aqui as gurias dão?

— Dão?

— Fácil, é só pedir.

— Não acredito. Quem te falou?

— O Gentil.

— Logo quem...

— Ele comeu uma franguinha do edifício onde mora a tia dele, em Copacabana. Uma tal Jandira, guria-família.

— E não era cabaço?

— Cabaço? No dia que passar um cabaço perto do Corcovado o Cristo cai de costas.

— Mentira — tornou Maninho. — O Gentil mente mais do que o Candinho Bicharedo.

— Ele provou, me deu a mão pra cheirar. Disse que já ia uma semana sem lavar porque tinha o cheiro da morcega dela.

— E tinha?

—Tinha.

— De quê?

— Um cheiro esquisito, de bacalhau com mijo. Mas era bom.

Encostava o Lins Vasconcelos, atrás o Cascadura e o Engenho de Dentro.

— E o Malvino, nada?

— Eu queria tomar um porre — gemeu Neco. — Me lembro de ter visto um bar aqui por perto, o TipTop.

Maninho, que embora mais moço era mais alto, passou o braço pelos ombros do outro.

— Vamos pra casa, Necão, não é bom andar pelas ruas de uma cidade que a gente não conhece, num dia como hoje. É perigoso. No portão ouvi um homem dizer que sabia onde era a casa do Danilo e iam apedrejar.

Neco livrou-se do abraço, cuspiu no chão.

— Não tenho medo de carioca.

— É perigoso — insistiu Maninho. — E aquele negro que passaram carregando? Estava morto. — Não, estava bêbado.

— Vi os olhos dele, estava morto.

Encostou o Piedade.

— E o nosso? Não tem outro pra Malvino Reis?

Maninho via partir o bonde como se arrastando, equilibrando-se nos trilhos.

— Vais votar no Getúlio? — disse Neco.

— Eu? Eu não voto.

— Eu vou.

— Que bom.

— Não debocha. Isso é coisa séria, voto popular.

— Não estou debochando, só disse que bom.

— É bom mesmo — e ergueu o dedo —, vou ganhar a eleição.

— Que isso tem a ver com o nosso scretch?

— A gente precisa ganhar alguma coisa pra não desistir de tudo.

— Ora, podemos ganhar em 54, a Suíça é um país neutro. — Quem garante? Só uma coisa é certa: essa de agora...


Nunca mais... Nunca mais...

GAZETA ESPORTIVA ILUSTRADA

Julho, 1950


Passou por eles um grupo de alegres uruguaios, com bandeiras. Obdulio, gritavam, Uruguai, Obdulio. E as pessoas os olhavam como preocupadas, como querendo avisar que houvera um grande engano, daqueles que não devem ocorrer porque vão envenenar a história e a vida de todo mundo. Mas os uruguaios não ligavam. Obdulio, gritavam, Uruguai, Obdulio.

— São uns folgados — disse Neco.

— São boa gente — disse Maninho. — Não viste o Máspoli consolando o Augusto?

— Aqui, ó. No primeiro tempo o Obdulio deu um bife no Bigode.

— Isso eu não vi. O que eu vi foi ele passar a mão na fuça do Bigode, como quem diz sossega leão.

Obdulio, gritavam os uruguaios, afastando-se. Uruguai. Obdulio. — E a gente só pode olhar, ficar se remoendo.

— Vamos gritar também — disse Maninho.

— Gritar o quê?

— Getúlio, Brasil, Getúlio.

— Não é a mesma coisa.

Parte da multidão ia quedando à espera dos bondes, a maioria seguia em frente ou enveredava por ruas laterais, para a Tijuca, à esquerda, para Vila Isabel na direção oposta. Passou o Malvino Reis com os estribos crivados de pingentes e então eles resolveram andar, juntar-se ao lento cortejo, tentar, quem sabe, descobrir um ônibus, em ultima instância recorrer ao trem da Central. Em última instância: para as bandas da via férrea, num lugar que não sabiam ao certo onde era, erguia-se a Favela do Esqueleto. E o pai recomendara: "Cuidado com a Favela do Esqueleto".

Andaram duas quadras.

— Olha o Tip-Top — disse Neco, animado. No mesmo instante viram, diante do bar, o pipoqueiro que os ultrapassara na primeira quadra da Rua São Francisco Xavier. Sentado no meio-fio, encolhido, fungando, o homem olhava os saquinhos rasgados, as pipocas espalhadas pelo chão e os restos de seu carrinho destroçado.

— Que horror — disse Neco. — Por que fizeram isso com ele?

— Eu te avisei...

— Pobre homem.

— Vamos ajudá-lo — disse Maninho. — Vamos comprar todas as pipocas dele, até as do chão.

Neco aproximou-se do homem e tocou em seu ombro. Ele voltou-se, possesso, ergueu-se e já trazia na mão uma comprida faca. Esfaqueou Neco no ventre, uma, duas, três vezes, e quando Maninho começou a gritar ele saiu correndo rua afora, dando gambetas nos transeuntes como num brinquedo de pegar. Formou-se um pequeno grupo ao redor do rapaz agonizante e do outro que gritava, mas o grosso da multidão não parava, não olhava, não ouvia, e a procissão continuava, esparsa e tarda, na busca incerta de um outro e longínquo Maracanã.

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