Um universo irracional
Alice é imortal. Enquanto sonharmos, ou nos maravilharmos com a natureza do universo; enquanto houver crianças no mundo, e filósofos bem-humorados, Alice será lembrada, lida, citada. Porque, como todo bom clássico, Alice imortalizou em alguns arranjos fortuitos de palavras um fragmento valioso da experiência humana, e o fez como nenhuma outra.
Em uma sequência onírica semiperturbada de eventos e diálogos, Alice nos conduz através de doze capítulos-episódios, cada qual como um pequeno sketch independente. O universo do País das Maravilhas não é regido por qualquer princípio compreensível; reina um caos enfastiado de si mesmo, e o absurdo é lei. O único contraponto a esse cosmos irracional e contraditório é a jovem Alice, que, indecisa entre perseguir o Coelho Branco e tentar voltar para casa, desafia sua própria paciência tentando compreender as personagens que encontra pelo caminho. Naturalmente, sem qualquer sucesso.
Mas frente aos absurdos do País das Maravilhas, muitos adultos — como que saídos das primeiras páginas de O Pequeno Príncipe — parecem não identificar o que há de especial nos disparates de Alice. A insistente falta de sentido em todos os episódios da obra podem sugerir uma ideia de total gratuidade literária; afinal, qual a razão desta história sem pé nem cabeça? Como monumento da mais profunda falta de nexo, que valor teria para crianças ou adultos?
Alice não é normal
Para figurar entre os cânones universais, é necessário que uma obra literária ofereça um diferencial. Certo livro, por exemplo, pode tratar dado tópico como nenhum outro, passando a ser referência; pode refletir com grande habilidade dada condição humana, com que quase todos podem se identificar; pode apresentar uma sequência de eventos (enredo) única e memorável; pode ser de uma composição extremamente bela (estética das palavras). Assim, podemos nos perguntar: por que Alice no País das Maravilhas tornou-se um clássico tão famoso? E ainda: do que trata o livro?
Em vários outros clássicos da literatura infantojuvenil, parece mais fácil encontrar respostas para essas perguntas. O Mágico de Oz, de Baum, por exemplo, é uma espécie de Odisseia, contada pelo ponto de vista da menina Dorothy, que, como Ulisses, passa por diversos percalços e conhece diversos personagens ao longo do caminho. Bem como Alice. E assim como Ulisses, Dorothy e Alice querem voltar para casa, mas diversos contratempos retêm seu retorno, envolvendo-as em apuros e permitindo-as conhecer os mais curiosos personagens. Em Oz, porém, temos um enredo coeso, e os fatos plantados ao longo da história são sementes para desenvolvimentos específicos e suas conclusões esperadas: a autodescoberta dos personagens (Homem de Lata, Leão Covarde, Espantalho), a revelação final sobre a identidade do Mágico, etc. Em Alice, contudo, não temos qualquer razão para a sequência geral dos fatos, como tampouco uma revelação ao final. E a narrativa não conduz a qualquer lição ou conclusão edificante, como nas fábulas.
Outras obras infantojuvenis, como Peter Pan, servem de grande metáfora para problemas bem adultos, como a nostalgia pela liberdade da infância (não por acaso, Pan e seus amigos voam) em comparação às amarras da vida adulta, a luta contra as responsabilidades do indivíduo maduro (encarnada pelo próprio Peter Pan), o arquétipo do adulto infeliz e alquebrado que assombra os jovens adultos e que serve de modelo do que não se tornar (Capitão Gancho), a eterna fuga do tempo que corrói e envelhece (simbolizada pelo Crocodilo que, levando um relógio tiquetaqueando no estômago, persegue Gancho, lembrando-o de que seus dias estão contados), e por aí vai. São metáforas mais ou menos claras sobre a realidade, transformadas criativamente em fantasia.
Esta prática literária está mais próxima do que encontramos em Alice, mas nesta última, a simbologia é muito menos relevante para o enredo em si e para Você também pode gostar: A Filosofia de Pinóquio: Lições, Segredos e Simbolismos a temática geral da narrativa, servindo mais como pequenas brincadeiras inconsequentes ao longo da história. Mesmo quando se utiliza de simbologia, Alice o faz no tom do absurdo.
É desnecessário dizer que também a jornada do herói, como utilizada em A Ilha do Tesouro, de Stevenson, ou em Pinóquio, de Carlo Collodi, não encontra lugar em Alice. Com a exceção do próprio Coelho, naturalmente, que encarna a "chamada para a aventura" nas primeiras páginas. Mas as etapas da jornada heroica, conforme elencadas por Joseph Campbell, acabam por aí.
Assim, diante da não conformidade com qualquer outro modelo de narrativa infantojuvenil, Alice pode parecer uma obra de legado paradoxal para muitos leitores. É como se nada dissesse, nada significasse, além da insanidade gratuita gerada pela mente excêntrica do autor. Será mesmo?
A explicação é que não faz sentido
A resposta mais fácil para todo esse paradoxo é etiquetar Alice no gênero nonsense. "É que não é para fazer sentido, mesmo." Resolvido!
Mas pura insanidade gratuita não gera tanto fascínio. Não teria angariado tanto amor e tantos fãs pelo mundo todo. Há, certamente, algo mais do que insanidade gratuita em Alice — ou, talvez, este algo mais seja precisamente a contemplação intencional da gratuidade insana do nosso universo, proposta por um especialista na área: Lewis Carroll, um matemático aficionada pelos problemas lógicos que nossa realidade oferece, assim como as próprias bizarrices de nossa linguagem, pela qual tentamos comunicar o pouco que julgamos entender das coisas à nossa volta.
Alice é, de fato, nonsense: não faz sentido algum. "Nonsense" significa "algo sem sentido, contrassenso, absurdo". E, ainda assim, um dos sentidos da obra, acredito, é precisamente apontar para o caos, explorá-lo e rir dele. Martin Gardner, um dos maiores especialistas sobre Carroll e sobre os livros de Alice, parece concordar:
"O último nível metafórico nos livros de Alice é este: que a vida, vista racionalmente e sem ilusão, parece ser uma história disparatada contada por um matemático idiota."
Gardner observa que costumamos preservar nossa sanidade rindo dos absurdos inevitáveis da vida, transformando as amarguras em escárnio. É verdade; mas crianças não parecem ter esse hábito. Pelo que, ao que parece, a obra oferece atrativos diferentes para crianças e adultos.
O nonsense mágico pode funcionar como escapismo para os adultos, assim como a série Harry Potter o faz por meio da fantasia, e como nenhuma outra. Para as crianças, parece funcionar mais pelo cômico gerado pela identificação das coisas absurdas que, para a maioria das pessoas grandes, como diria Saint-Exupéry, não causam muito prazer ou entusiasmo, talvez pelo seu cansado desencanto com a vida.
Um presente para Alice
Ahistória de Alice no País das Maravilhas foi primeiramente composta em 1862, em um passeio de barco pelo Tâmisa, quando Lewis Carroll entretinha Alice Pleasance Liddell e suas duas irmãs, todas filhas do reitor de Christ Church, na Inglaterra. A Alice real teria gostado tanto da história que Carroll se motivara a compô-la em forma escrita, com melhor elaboração, para ser publicada.
Atendendo ao pedido de Alice para publicar o texto, Carroll arranjou a primeira edição da obra para 1864, intitulando-a Aventuras de Alice no Subterrâneo. Esta versão original foi alterada, bastante expandida e, mais tarde, foi publicada com novo título. Entre as alterações, são notáveis como acréscimos as cenas do Gato de Cheshire e do Chapeleiro Louco. A impressão contava com ilustrações de John Tenniel (veja a galeria de imagens).
Grande parte da graça de Alice está na apreciação de eventos e costumes tipicamente ingleses da era vitoriana, que, por serem desconhecidos do público atual, causam um maravilhamento não muito menor do que o dos episódios realmente nonsense. Alguns dos trechos que nos parecem absurdos definitivamente não o eram à época de sua publicação, no entanto: algumas das piadas só poderiam ser compreendidas no século XIX; outras, somente nesta época e na Inglaterra; outras ainda eram específicas de Oxford, e algumas não passavam de piadas internas de Carroll e de Alice suas irmãs.
Há vários episódios e personagens que foram criados a partir de trocadilhos ou jogos linguísticos que só fazem sentido em inglês. O Chapeleiro Louco, por exemplo, surgiu da expressão "louco como um chapeleiro", corrente à época devido à grave doença neurológica causada pelo mercúrio usado no tratamento do feltro pelos chapeleiros. Como resultado do contato com o mercúrio, eles adquiriam o chamado "tremor do chapeleiro", que os fazia perder o apuro da movimentação dos olhos e da fala, levando, em quadros mais graves, a alucinações e à psicose. A Lebre de Março, da mesma forma, surgiu da expressão "louco como uma lebre de março", referência ao cio das lebres, período em que seu comportamento torna-se notavelmente errático.
Outros tantos elementos de Alice, aparentemente gratuitos, são alusões satíricas a alguns dos amigos ou inimigos do autor, conforme dados levantados pelos estudiosos de Carroll. Há também diversas paródias de ditos e poemas populares infantis do século XIX, que certamente eram conhecidos por Alice Liddell.
A Terra das Coisas Abismosas
Estranhíssima, fascinante e surreal, a terra das maravilhas parece proceder conforme um sonho perturbado. Nem tudo é uma maravilha, e os habitantes não estão congregados em um país — ao contrário do que o título em português sugere.
No original inglês, a obra intitula-se Alices Adventures in Wonderland. Note o uso da palavra adventures (aventuras). Em muitas versões, a palavra tem sido omitida, provavelmente por ser redundante e, por alongar o título, enfraquecer a força dos termos mais importantes e que são universalmente reconhecidos: Alice e Wonderland. Além do mais, a palavra aventura já perdeu quase toda a sua força, pelo uso mais que excessivo.
A transposição de significado mais literal que consigo pensar para o termo Wonderland é "Terra das Coisas Abismosas". Simplesmente horrível, é verdade. Mas é a significação mais próxima do que um falante da língua inglesa interpreta ao escutar Wonderland. Primeiro, porque land não significa país. Não se trata de uma nação, um Estado organizado (a despeito do que a Rainha Vermelha possa dizer); trata-se de um lugar, uma região. Em segundo lugar, a transposição de wonder para maravilha (tradução mais aproximada) nunca foi plenamente adequada, porque, em português, maravilha tem significado apenas positivo, enquanto wonder primeiramente refere-se a coisas impressionantes, muito incomuns, que causam choque, deleite ou horror.
Arqueologia mental de um escritor
Há uma tara entre os psicanalistas por fazer arqueologia da mente de autores a partir de sua arte. Como é de se esperar, vários deles debruçaram-se sobre Alice em busca de significados inconscientes para as simbologias da obra, tentando identificar o perfil mental de Lewis Carroll a partir de suas escolhas narrativas e descritivas.
Para cada personagem e evento, buscaram um porquê psicológico, seja no temperamento de Carroll, seja nas suas experiências de vida, na maneira como lidava com sua condição social, etc. Trata-se, a meu ver, de um reducionismo ingênuo — ainda que, ironicamente, parta de estudiosos que acreditam estar desvendando de forma sofisticada camadas de verdade veladas para o observador comum.
Na verdade, tudo o que o psicanalista pode ver nessas escolhas literárias são possibilidades de causa/motivação. Não se pode afirmar que tal ou tal cena tenha sido criada porque o autor sentia isso ou aquilo, ou porque sua mãe o tratou de tal ou tal maneira, ainda que tais hipóteses pareçam plausíveis. As escolhas de um escritor (ou dos artistas, de forma geral) podem ter inúmeras causas.
Os símbolos em qualquer obra — e em especial em Alice, dada a profusão com que ocorrem — são muito ricos em conexões de significado para se presumir qualquer coisa com excessiva certeza. Isso é especialmente verdade em escritores de grande perícia literária, em cujos textos nada é gratuito — nada é tacitamente posto no papel diretamente do inconsciente, sem a ponderação lógica de suas correlações com o resto da obra e de seu efeito desejado no leitor.
Se presumimos que Carroll era neurótico a partir da análise de sua obra (e ele, aparentemente, era neurótico), não é porque sua personalidade escorregou por engano nas páginas de Alice; acredito que tenha sido porque, por seu próprio cálculo, quis imputar tais características na obra. Mas talvez um psicanalista que também seja escritor literário possa dar melhor parecer sobre o tema.
Racionalizando a insanidade
Como todo clássico, Alice foi e continua sendo periodicamente fonte de releituras e utilizada como referência nas mais diversas áreas culturais. As recriações mais relevantes tendem a ser os filmes, e entre estes, os de maior sucesso até o momento foram a Alice em animação da Disney, de 1951, e a versão de Tim Burton, de 2010 (assim como sua sequência de 2016).
É notável como a versão de 1951 foi fiel ao espírito da obra original, ainda que mesclando o enredo dos dois livros da série, Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho. A personagem Alice continua sendo a mais atípica das "princesas" da Disney, justamente por não se enquadrar nos estereótipos comuns ao estúdio.
Já as versões de Tim Burton e James Bobin abandonam quase de todo o principal elemento dos originais: o nonsense. Não há dúvidas de que, devido à demanda do público, as grandes produções de cinema tenham cada vez mais se comprimido em uma fórmula pouco maleável e com pré-requisitos inegociáveis, como um enredo padronizada em três atos, pequenas "lições de moral" comoventes, alguma espécie de tensão romântica, uma significação geral que fique evidente e não ambígua, um gran finale, etc.
Como o País das Maravilhas é um mundo à parte, Tim Burton e James Bobin o trataram como uma Terra-Média, inserindo, como artificialidades obrigatórias de enredo, uma grande ameaça capaz de destruir toda a terra, um vilão com objetivos bem racionais, em controle de um exército, e uma batalha final épica. Obviamente, tudo com grande extravagância na área dos efeitos especiais. E, ao final, a protagonista Alice encontra o "sentido" da loucura, que, no caso, é a capacidade de "acreditar no impossível", e seguir seus sonhos. Porque um filme com orçamento tão elevado precisa justificar a si mesmo com uma "mensagem", e não pode ser estranho demais.
Mas este enredo é a antítese do País das Maravilhas. Lá, não há grandes batalhas para salvar ou destruir o mundo: todos são loucos, inconsequentes, desinformados, descoordenados demais para bolar um plano malévolo nos moldes de Sauron ou Voldemort. Não haveria um exército que desse a mínima para qualquer causa. Qualquer "lição de moral" só existiria por ironia. Qualquer tensão romântica existiria apenas como piada. E a insanidade não existiria apenas como sinônimo de autenticidade, com apelo de autoajuda, porque se assim o fosse não seria insanidade.
Ou seria o contrário?
Portanto, os novos filmes de Alice da Disney podem ser aventuras divertidas, mas não são nada como a obra original, e não buscam recriar o elemento que consagrou estes livros de Lewis Carroll em primeiro lugar. Desnecessário dizer: o original é insubstituível.