O Feminismo de O Último Duelo (2021), de Ridley Scott | Fantástica Cultural

Artigo O Feminismo de O Último Duelo (2021), de Ridley Scott
A R T I G OCinema & TV

O Feminismo de O Último Duelo (2021), de Ridley Scott

Por Paulo Nunes ⋅ 8 dez. 2021
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

Em plena Idade Média, o apogeu da masculinidade tóxica, Adam Driver e Matt Damon esborracham-se em pancadaria para decidir o futuro de uma nobre donzela.

o ultimo duelo 2021

Aos 84 anos, Ridley Scott ainda não perdeu a mão para o cinema. Apesar de várias produções de qualidade controversa durante sua carreira, nada lhe tira o mérito de filmes como Alien, o Oitavo Passageiro (1979), Gladiador (2000) e Blade Runner (1982). Em O Último Duelo (2021), Scott mantém o padrão de alta qualidade e agracia os amantes de cinema com outra fantástica produção de época.

Mas O Último Duelo não se alinha bem com outros filmes do gênero. Parte dessa discrepância se dá pelo estilo narrativo, que explora os eventos em três capítulos, cada qual do ponto de vista de um dos personagens principais. Apesar do grande interesse de Ridley Scott no realismo e na atmosfera da Idade Média, o roteiro está mais focado nos aspectos psicológicos dos personagens, quebrando a sensação de distanciamento temporal através da conexão com problemas humanos familiares a todos nós. Mas há outro detalhe que diferencia esse filme dos demais: sua perspectiva feminista.

o ultimo duelo 2021 cena

No centro do enredo estão o cavaleiro Jean, sua esposa Marguerite e seu amigo (e rival) Jacques. Em resumo, Jacques invade a casa do amigo, quando este está em campanha militar, e estupra Marguerite; ao descobrir o ocorrido, o marido apela ao rei da França por justiça — no caso, um duelo oficial contra Jacques, para restaurar-lhe a honra.

Um dos méritos do filme é sua proposta de contrastar a perspectiva dos três personagens, contando a história de acordo com seus pontos de vista diversos. Essa técnica ajuda a salientar vários aspectos negativos da sociedade medieval: os casamentos forçados, a brutalidade cotidiana da guerra, ao silenciamento de vítimas, a justiça do mais forte, a impunidade, etc. Ao vermos a perspectiva de mais de um personagem, entendemos melhor não só suas crenças e motivações, mas também o efeito de sua conduta, que para o personagem pode passar despercebido.

o ultimo duelo 2021 cena3

Dentre os aspectos negativos do medievo, o foco em O Último Duelo é a psicologia masculina da época, bem como sua relação conflituosa com o feminino. Não seria exagero afirmar que este é um filme sobre a afamada masculinidade tóxica.

No caso do marido de Marguerite, Jean, observa-se sua completa incapacidade de manter uma relação conjugal respeitosa e saudável. Na perspectiva de Jean, seu casamento é bem-sucedido, e seus modos para com a esposa são adequados. Jean acredita que seus motivos são nobres, e que sua conduta é meritosa. Ele se vê injustiçado pelos seus pares e pela nobreza, por não alcançar as glórias que julga merecer.

Quando nos voltamos para a perspectiva de Marguerite, porém, vemos um marido negligente, controlador e abusivo, um homem egoísta que só pensa em si mesmo e em sua honra (isto é, sua reputação). Seu interesse em casar com Marguerite, nesta outra perspectiva, é puramente utilitário, e quando ele busca justiça após o caso de estupro, sua preocupação é com sua honra. O filme explicita isso na cena em que a esposa revela o estupro ao marido, e ele responde: "Como ele (Jacques) pode ter feito isso comigo?!".

o ultimo duelo 2021 cena4

do ponto de vista de Jacques, somos apresentados a uma bizarra visão sobre sexo. Enquanto abusa de Marguerite, Jacques a chama de "meu amor" (e com sinceridade), e apesar dos esforços da mulher para resistir ao ataque, ele entende que ela o deseja, e que seu ato, portanto, é perfeitamente aceitável. Conforme suas próprias palavras, seu estupro é um ato de generosidade para com Marguerite. Para ele, não há possibilidade de a mulher não desejá-lo, dado seu status e sua boa aparência. A resistência dela seria apenas teatral. Além disso, Jacques via Jean como uma ignorante perdedor, e julgava que Marguerite o enxergasse assim também.

Todos esses e outros aspectos apresentados em O Último Duelo são representações da realidade social da Idade Média. Muitos desses aspectos evidentemente ainda persistem, e para sempre persistirão, considerando que derivam da própria natureza humana. Mas com a mera apresentação de uma realidade histórica, poderia o filme ser considerado feminista?

Capa do livro original
Capa do livro original

O que torna este filme feminista é sua escolha final: a de retratar a perspectiva dos dois homens como falsa, e a da mulher como a verdadeira.

Isso é feito da seguinte forma: na primeira parte do filme, lemos o título "Capítulo 1: A verdade segundo Jean de Carrouges"; na segunda, lemos "A verdade segundo Jacques le Gris"; na terceira, lemos "A verdade segundo Lady Marguerite"... e quando o texto se dissolve, resta na tela, sozinho, apenas o trecho "a verdade".

É onde o filme deixa de ser um retrato das injustiças e barbáries do passado, juntando-se ao coro do feminismo misândrico e do delírio ideológico de que, de alguma forma mágica, o sexo feminino nunca apresenta problemas de caráter.

Lady Marguerite é representada como um ser puro, angelical e de caráter ilibado. Em nenhum momento encontramos algo que criticar em sua pessoa. Enquanto os homens têm visões mais ou menos distorcidas sobre a realidade, como todos nós, Marguerite vê a verdade.

o ultimo duelo 2021 cena2

Se podemos presumir que os problemas de caráter dos homens, à época, se devam a uma educação desumanizada, a um sistema social opressivo e terrivelmente injusto, e a condições adversas de toda ordem, resta a dúvida: como Marguerite passou imune a tudo isso?

Apesar de a mensagem alegrar muita gente na era do #metoo, simbolicamente validando a ideia de que toda acusação feminina contra um homem é verdadeira (bandeira levantada por muitas figuras públicas e seus seguidores), o único resultado alcançado por esse tipo de abordagem é alimentar o delírio narcísico de algumas pessoas, a ilusão de uma bondade inata determinada pelo sexo.

Muitos têm comparado este filme a Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, em que também acompanhamos uma mesma história sendo apresentada por diversos pontos de vista, de acordo com o depoimento de cada personagem. Em Rashomon, porém, não existe o viés de gênero, e todos os testemunhos são questionáveis, equivalentes. Em O Último Duelo, ao contrário, a verdade é atribuída à mulher (não apenas à personagem Marguerite, mas ao próprio sexo feminino como um todo): a história inteira dedica-se a abordar questões de gênero e caracterizar aspectos negativos da masculinidade; portanto, a conotação da verdade monopolizada pela mulher é intencional.

o ultimo duelo 2021 cena5

Ironicamente, a crítica que o filme faz volta-se contra ele mesmo: se os homens no filme enxergam-se como pessoas boas e nobres, devido às ilusões que nutrem sobre si mesmos, também a representação da mulher, boa e nobre, é um ilusão desenhada pelo roteiro para encobrir as falhas humanas de caráter caso estas sejam apresentadas pelo sexo feminino.

É, enfim, uma pena: se a perspectiva de Marguerite não fosse tratada como a verdade absoluta, e se ela fosse humanizada, ao invés de retratada como uma projeção narcísica da mulher perfeita, teríamos um obra-prima que se manteria relevante daqui várias décadas. Com a inserção de clichês ideológicos, porém, parte do filme restará datada em pouco tempo.

Título: O Último Duelo
Título original: The Last Duel
Diretor: Ridley Scott
Ano: 2021
País: Estados Unidos

cavaleiro medieval

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST