Pode parecer estranho, mas o segundo grande experimento da literatura ocidental — a Odisseia — é até hoje um modelo de sofisticação.
De todos os recursos literários elaborados ao longo da história, muitos já figuravam nesse texto quase inaugural (do século VIII ou VII a.C.). Se seu enredo é épico, seu papel na arte narrativa também o é: sua elaboração habilidosa inspirou escritores por milênios, em obras como Eneida, Divina Comédia, Paraíso Perdido, Os Lusíadas.
James Joyce, querendo contrapor a grandiosidade dessas narrativas, escreveu Ulisses tentando demonstrar que a verdadeira odisseia humana é o cotidiano — a vida comum, sem interesse. Joyce queria ressaltar a condição real do indivíduo. Mas não é essa, precisamente, a ideia por trás da Odisseia de Homero? Uma análise mais profunda da obra nos revela que, acima de tudo, o seu tema é a identidade humana.
Vejamos, antes de mais nada, o enredo. Odisseu (ou Ulisses, em latim), rei da ilha de Ítaca, é convocado para o que veio a se chamar a Guerra de Troia. Ao longo de toda a obra, a constante é o esforço do herói em não se deixar vencer pelo caos, e não esquecer sua identidade. Em companhia de outros monarcas gregos e de seus exércitos, Odisseu navega até as praias troianas, permanecendo em combate por uma longa década. O fim do confronto, contudo, não encerra suas aventuras. No caminho de volta, o herói arranja um inimigo — Poseidon, o deus dos mares — que, com seus poderes, busca a todo custo destruí-lo. Enquanto enfrenta diversos contratempos, em uma luta desesperada para retornar à terra natal, seu palácio em Ítaca é tomado e príncipes usurpadores passam a consumir seus bens, competindo pela mão (e pela cama) de sua esposa. Eis, em resumo, sua situação.
Ao longo de toda a obra, a constante é o esforço do herói em não se deixar vencer pelo caos, e não esquecer sua identidade. Não se trata somente de perder a esposa, o filho, ou o próprio reino. Para o homem grego desse período, o sentimento de pertencimento a um grupo, a uma linhagem, é fundamental — uma forma de constituição da identidade. Para ele, só se pode ser alguém em relação a outros. Assim, é somente junto aos seus companheiros e à sua família que Odisseu pode ser humanamente íntegro.
Assim, se separarmos os antagonistas de Odisseu em dois grupos — os realistas e os fantásticos —, perceberemos que há duas grandes forças que buscam alienar o herói de sua identidade. As realistas, evidentemente, são os maus homens, que, como exemplos de imoralidade, invadem o palácio de Odisseu durante sua ausência e competem pelo trono junto à rainha. Do lado dos inimigos fantásticos, podemos citar Poseidon e seu filho Polifemo, as sereias, os monstros Cila e Caribdes, a ninfa Calipso, etc. Cada um deles busca alienar o herói de sua própria maneira: uns tentam retê-lo, outros encantá-lo, e alguns simplesmente devorá-lo.
A ninfa
Se Odisseu é um modelo de herói grego — sendo, dentre outras coisas, forte, belo, corajoso e astuto —, parece que a fidelidade marital não fazia parte de seus atributos.
É certo que ama Penélope, sua esposa; mas também não recusa algumas aventuras. Ao ser retido pela deusa-ninfa Calipso em sua ilha particular, ele é convidado a dividir o leito com a divindade. O herói, é claro, aceita com gosto. Somente após cinco dias é que ele descobre a artimanha: para cada dia passado no palácio da ninfa, um ano é passado no mundo externo. Calipso tenta aliená-lo da realidade, assim como de sua vida anterior.
Para além dos anos desperdiçados, o perigo enfrentado por Odisseu é o de esquecer seu passado, perdendo sua identidade. Reino, família e companheiros de viagem tornam-se resquícios de uma história prestes a se apagar, com a oferta de Calipso: a de viver com ela, à parte do resto do mundo, para sempre. Ou seja: abdicar de suas responsabilidades como rei de uma pequena comunidade, como pai, como marido, como homem grego. Este é o dilema ético encarado por Odisseu.
As sereias
Um dos episódios mais lembrados da Odisseia é o encontro de Odisseu com as sereias. Trata-se de um trecho particularmente breve, mas marcante.
No intuito de escutar o canto daquelas criaturas e experimentar os seus feitiços sem correr o risco de se lançar ao mar, Odisseu ordena aos companheiros que o amarrem firmemente ao mastro da nau. Enquanto os demais tripulantes se ocupam de remar, mantendo os ouvidos tapados com cera, o herói é abordado pelas sereias, que lhe prometem informações preciosas sobre o passado e o futuro. Tentam seduzi-lo pela oferta da ciência: poderiam contar-lhe o que havia sucedido a seus companheiros e familiares, ao longo de vários anos, e o que ainda viria a suceder-lhes. Uma isca, é claro, para a perdição — pois elas se alimentam de humanos.
Embora descreva uma ação, a cena começa e termina da mesma forma, e o arranjo de seus elementos faz lembrar uma imagem estática, eterna; por seu fascínio, ela foi diversas vezes representada nas artes na forma de pinturas, gravuras, estampas. Nela, o herói vence a tentação pela astúcia. Seu desejo de conhecer o perigo, e ainda assim safar-se dele, sugere um espírito curioso, ávido pelo conhecimento; não é à toa que também o conhecimento é o que as sereias lhe oferecem: é o seu ponto fraco. Odisseu quer saber; ele encarna literalmente o homo sapiens.
O perigo das sereias, portanto, é um perigo natural, enfrentado pelas gerações humanas desde os primórdios: o de perecer na busca pelo conhecimento. Se a história humana é determinada pelos avanços do saber e das tecnologias, não se pode excluir desse processo os perigos a que a curiosidade e a exploração podem conduzir.
O ciclope
Quando o ciclope Polifemo, o gigante de um olho só, aprisiona Odisseu e seus companheiros em sua morada — uma tosca caverna nos rochedos —, O homem civilizado está demasiado próximo do primitivismo: só a cultura e a ciência o afastam dele. o herói utiliza-se de uma série de ardis para libertar-se.
Um desses ardis é confundir a criatura: ao identificar-se a Polifemo, elabora um arranjo de palavras que, em português, poderia ser traduzido para "meu nome é Ninguém". Por ocasião da fuga de Odisseu e de seus companheiros (os que não haviam sido devorados), o gigante, que acabara de ser cegado por uma estaca, pede ajuda a seus parentes ciclopes gritando: "ninguém me cegou!", ao que nenhum deles, obviamente, dá atenção. A piada, aparentemente infame, é um dos primeiros jogos de palavra da literatura. E nele, outra vez, o tema da identidade é abordado.
Além disso, o ciclope Polifemo é como uma encarnação da fúria e da irracionalidade da natureza. Sua pouca inteligência, assim como seus hábitos selvagens — dentre eles, a antropofagia —, fazem lembrar o próprio passado de nossa espécie, do qual o homem civilizado procura afastar-se.
Ao negar sua origem animal, o ser humano às vezes o faz com repulsa, com desprezo; não é preciso ser Freud para compreender que o sentimento forte aí envolvido é uma forma de evitar que o indivíduo retorne ao estado inicial. O homem civilizado está demasiado próximo do primitivismo: só a cultura e a ciência o afastam dele. A figura de Polifemo, assim, parece ter sido constituída por esses sentimentos e por essa imagem grega do barbarismo; como se fosse dito: "vejo no que podemos nos transformar".
A deusa feiticeira
Assim como a tentação do amor e do sexo pode levar um indivíduo à perdição, como no caso da ninfa Calipso, assim também ocorre com os prazeres da comida, da bebida e da hospitalidade. Na Odisseia, essa provação é representada pela deusa feiticeira Circe.
Em seu palácio, na ilha de Eana, Circe tem por hábito convidar os marinheiros a descansarem em sua casa, oferecendo-lhes banquetes vistosos, vinhos, iguarias e acomodações luxuosas. Depois de desfrutarem da hospitalidade, porém, os homens são transformados, um a um, em animais. Circe parece representar um alerta simbólico contra a gula, o alcoolismo e a fanfarronice — hábitos que podem transformar a personalidade e a conduta de uma pessoa, levando-os à perdição.
Alertado pelo companheiro Euríloco sobre as artimanhas da deusa, Odisseu não se deixa enganar e, à força da espada, obriga Circe a reverter seu feitiço, que já havia transformado mais de vinte de seus homens em feras.
Retorno a Ítaca
A provação final de Odisseu consiste em seu retorno ao lar. É aqui que o tema da identidade se torna mais visível: o herói é transmutado pela deusa Atena em um velho mendigo, a fim de entrar incógnito em seu palácio e ver por si mesmo o que se fazia em sua ausência.
Chega a última etapa da aventura: o reconhecimento. Transformado pelo tempo e por tantas aventuras, e também um pouco esquecido por daqueles que não o viam há vinte anos, Odisseu precisou provar sua identidade.
Aos inimigos, e também ao filho, provou-o pelo teste das armas: envergou o arco que, dizia-se, somente ele era capaz de armar, e atirou uma flecha por entre uma fileira de aros estreitos — façanha reconhecidamente sua. Essa identificação do indivíduo pela arma ecoa no mito do rei Arthur e da espada Excalibur mais de um milênio depois.
À esposa, Odisseu pôde comprovar sua identidade lembrando-a de uma memória íntima do casal — os detalhes da construção de sua cama, que ele mesmo executara. Ao pai, relembra os trabalhos que tiveram juntos no plantio de um pomar; à ama-de-leite, apresenta a cicatriz que obtivera ainda na infância, ao enfrentar com coragem um furioso javali.
O astuto herói passa por todas as provas, mas não esquece quem é. Ao final, vence a consciência, e a memória, sobre o caos.