Muita gente não esperava nada de Matrix 4, e nesse quesito, o filme não desapontou. E outros tantos esperavam apenas um filme de ação nos moldes preguiçosos e formulaicos da nossa década, com algumas referências culturais nostálgicas: estes também não devem ter se decepcionado.
Vamos ser francos: como cada pessoa busca algo diferente nos filmes, não faz sentido classificar um filme como bom um ruim: vai depender das expectativas de quem assiste. Algo óbvio, na verdade, mas que frequentemente esquecemos.
Assim, se você gostou de Matrix 4, o filme cumpriu sua missão para você. No meu caso, porém, a experiência foi oposta. Então, internautas de pavio curto, estejam avisados: vou apontar vários problemas que, pessoalmente, identifiquei na produção. Se isso é coisa que pode deixá-lo furioso, e que você definitivamente não quer ouvir porque irá prejudicar sua apreciação do filme, talvez seja melhor ir ler outra coisa.
Direto ao ponto agora: Matrix 4 é do começo ao fim uma cópia do primeiro filme, repetindo sua estrutura quase cena a cena, ato a ato. Assim, tratarei de seu enredo xerocado no próximo bloco; no seguinte, farei meu breve review; e no bloco final, comentarei o empoderamento feminino de Trinity.
E antes que seja tarde, já aviso: spoilers.
Ecologia no cinema: como reciclar um roteiro
Assim como Star Wars — Episódio 7 — O Despertar da Força, Matrix 4 é como um desses desenhos de linha que fazemos sobrepondo um papel em branco ao desenho original, passando por cima, como se diz. Mas além da repetição e das referências inseridas a cada 10 segundos, ou algo assim, Matrix 4 vai além e inclui incontáveis cenas dos filmes originais nos mais diversos momentos da história, algo que jamais vi em nenhum outro filme.
É como um filme dentro de um filme. Seria isso intencional, em referência a uma Matrix dentro de uma Matrix (uma espécie de inception, como em A Origem)? Pode ser. Mas o resultado é bastante tedioso e desconcertante.
1. Na cena de abertura, Trinity confronta os agentes da Matrix em uma cena de ação misteriosa (as imagens são copiadas e coladas do original). Desta vez, porém, a cena é intercalada com novos personagens que assistem aos eventos envolvendo Trinity. É o público assistindo aos novos personagens assistindo a Matrix.
2. Somos então reapresentados a Thomas Anderson, Neo, vivendo alienado no mundo simulado da Matrix (como no primeiro filme, de novo). Desta vez, ao invés de hacker, ele é um programador que criou o game mais famoso do mundo: a trilogia de jogos Matrix, pela Warner Bros. (sim, isso está no filme).
Como no original, ele sofre de insights ocasionais de que sua realidade é uma ficção. Assistimos a dezenas de imagens dos primeiros filmes, em flashbacks, e em dado momento o público deve se perguntar: Quando a história nova, deste filme, irá começar?
3. Neo é então procurado por pessoas de fora da Matrix, que querem libertá-lo com a pílula vermelha, mas ele recusa o chamado à aventura, a princípio (como no primeiro filme). Temos então mais flashbacks para lembrar o público de como o primeiro filme é icônico.
Os agentes da Matrix, então, perseguem e atacam Neo, até que ele, enfim, é convencido a tomar a pílula vermelha e ser desplugado. Ele acorda em um casulo, é libertado por máquinas e embarca em um veículo futurista, conhecendo uma tripulação gótica (e agora com mais diversidade). Até aqui, creio que o título mais apropriado para este filme seria Matrix: Déjà Vu.
4. Como não podemos passar sem Morpheus, o filme traz o personagem de volta, agora interpretado por outro ator. No enredo, o verdadeiro Morpheus já está morto há anos, mas isso não impede o filme de ressuscitá-lo na forma de uma simulação. Mais déjà vu: o Morpheus fake explica detalhes do enredo para Neo, como no primeiro filme, e luta Kung Fu com ele — tudo nos conformes.
Por volta desta parte, a inserção do filme original dentro do filme atual chega ao cúmulo. Assistimos ao novo Morpheus oferendo a pílula vermelha a Neo com cenas do filme original sendo projetadas em uma tela de cinema no fundo, a mesma cena icônica da oferta das duas pílulas. É a mesma cena, a mesma situação, sendo exibida duas vezes ao mesmo tempo para o público.
5. E obrigatório também é o duelo entre Neo e o agente Smith. Desta vez, Hugo Weaving não pôde (ou não quis) retornar ao papel, e seu substituto, que tenta imitá-lo, é encarregado da tarefa impossível de replicar seu carisma e sua atuação magnética como arquivilão. A cena do duelo se desenrola quase da mesma forma que no filme original, como uma réplica, mas agora com uma filmografia genérica, Kung Fu nada impressionante e nenhuma tensão.
Em um dos momentos-chave, o novo ator interpretatando o agente Smith grita em fúria para Neo: "Miiister Andersooon!", tentando imitar Hugo Weaving; e o filme literalmente intercala essa imagem com a cena do filme original, com Hugo Weaving gritando "Mister Anderson!". É como se o filme tentasse convencer o público à força, da maneira mais descarada e anticinemática possível, de que continua sendo épico e impactante (e não é): copiando e colando a imagem de outro ator para tentar tornar a cena mais impressionante. Resultado: total cringe.
6. E por fim, temos a revelação de que um dos personagens é o escolhido (como plot twist!); pessoas pulando de prédios acreditando que irão morrer, para depois levitarem; e outras tantas cenas copiadas e coladas do original, com alterações que só as fazem piores.
Os clichês e callback aos filmes originais até são esperados, pois, para manter a integridade de uma franquia, certos temas, padrões e eventos precisam se repetir ao longo dos filmes. Mas há uma linha tênue entre continuar na tradição da franquia, por um lado, e copiar quase tudo sem criar quase nada de novo para justificar uma continuação, por outro. E Matrix 4 escorregou para esta segunda vala.
Os dois tipos de espectadores de Matrix 4 e suas expectativas
Se você espera apenas duas horas de entretenimento leve, com cenas de ação passáveis, alguns dramas batidos mais relativamente eficientes, e não se preocupa muito com os filmes originais, cinematografia cuidadosa, originalidade ou alto padrão artístico, é bem possível que Matrix 4 o satisfaça. Talvez você até o adore. Já lhe conto o final e a moral da história: o amor a tudo vence.
Agora, se você espera uma história original, bem estruturada; se você procura um enredo intrigante, com situações tensas e emocionalmente impactantes que o façam sentar na ponta da cadeira, roendo as unhas de ansiedade pelo desfecho; se você deseja cenas de ação que não o entediem às lágrimas, e que não sejam filmadas de forma genérica e repetitiva; se você anseia por personagens com que possa se conectar emocionalmente, para que possa se importar com o que acontecerá com eles; se você ama uma cinematografia brilhante como a do filme original, em que cada frame daria uma ilustração criativa e bem proporcionada, com cores, formas, ângulos e iluminação soberbos; se você aprecia personagens carismáticos e icônicos, cujo carisma e interesse não provenham unicamente de sua performance em filmes anteriores; se você quer vivenciar momentos memoráveis e linhas de diálogo marcantes para repetir por décadas em memes carinhosos; se você valoriza um roteiro claro, enxuto, sem repetições e desvios desnecessários, sem cenas confusas e mal editadas; se você entende que as motivações dos personagens devam ser compreensíveis nos momentos críticos de um filme, para que as decisões que impactam a história façam sentido; se você busca por um filme elegante, como o original, que você possa começar a assistir aleatoriamente em qualquer trecho, a qualquer momento, e imediatamente ficar preso à história, devido à eficiência do storytelling; e se você gostaria de assistir a uma continuação de franquia que traga ideias, dilemas e elementos filosóficos novos e inteligentes, acrescentando valor aos originais e justificando sua existência como uma extensão da narrativa, com valor intrínseco e sem depender de nostalgia barata e preguiçosa; então, meu amigo, Matrix 4 não foi feito pensando em você. Absolutamente não.
Em resumo, Matrix 4, na minha opinião, foi provavelmente produzido por pressão do estúdio (Warner Bros.), não havendo qualquer paixão ou ímpeto criativo por traz dele. No próprio filme, isso é sugerido: no contexto de Matrix 4, Matrix existe na forma de uma trilogia de games; e os criadores do jogo, no filme, afirmam que estão sendo pressionados pelo estúdio a produzir uma continuação. O estúdio teria lhes declarado que faria uma continuação como ou sem os escritores originais. Seria esta a situação vivida pela diretora, Lana Wachowski, na vida real?
E assim sendo, é uma produção convoluta, do tipo Frankenstein, misturando de forma desastrada a nostalgia dos originais com uma tentativa pouco esforçada de acrescentar ideias filosóficas e comentários sociopolíticos à franquia. E tecnicamente, é genérico como muitas produções atuais, criado em uma linha de montagem estéril.
Conclusões (e Trinity como a nova escolhida)
A revelação final, de que, na verdade, Trinity é a escolhida, e não Neo, deveria servir para chocar o pública, em um momento mindblowing. Mas não: não funcionou. Desde 2015, mais ou menos, todas as principais franquias têm feito a mesma coisa: passar o bastão de herói, quando homem, para as personagens femininas, alinhando-se às demandas feministas.
Em Matrix 4, por qualquer razão inexplicável, Neo não é mais capaz de voar, apesar de ter recobrado seus outros poderes. Em uma das cenas finais, ele e Trinity saltam de um prédio, teoricamente para uma morte certa, e voilà, agora Trinity é quem sabe voar. É ela quem salva Neo, agora. Entendeu? Igualdade.
Pessoalmente, não vi problema nessa mensagem, porque, como o próprio filme indica, Neo teve seu momento de "ser o escolhido", e neste novo filme "seria a vez de Trinity". Ao final, ambos se tornam superdeuses no mundo de Matrix e voam juntos como o casal maravilha. Não há uma supremacia de um sexo sobre outro, e considerando o estado de Hollywood atualmente, isso é bastante positivo. Mas será que todo filme em que um personagem homem é o herói precisa de uma continuação que iguale alguma de suas personagens femininas ao homem no quesito heroísmo? Não podemos ter alguns filmes como homens sendo heróis, e outros com mulheres sendo heróis?
Mas talvez a única ideia que tenha convencido Lana Wachowski a escrever e dirigir a continuação (para além do dinheiro) tenha sido essa mensagem, que talvez lhe interesse particularmente: a de revisitar Matrix e igualar os dois protagonistas em seu nível de heroísmo. Talvez o fato de que a criação mais popular das irmãs transgênero Lilly e Lana Wachowski seja protagonizada por um homem branco heterossexual seja visto por elas como algo problemático nos padrões ideológicos atuais. Muitos fãs, porém, não gostaram da mudança, mas francamente, isso é o que menos importou para mim: ver Neo e Trinity juntos ao final, em absoluta glória, até agradou-me.
Se não fosse por todo o resto, eu até teria ficado satisfeito.
3 ExtraComentários
- Alguns críticos estão defendendo o filme devido às suas metarreferências — isto é, o filme fala de si mesmo, aborda a própria franquia, dentro da franquia, e faz comentários aos fãs de Matrix, à indústria do cinema, à originalidade, etc. Para esses críticos, isso é simplesmente genial. Dica: se seu filme não é original, criticar a falta de originalidade dentro do roteiro não o tornará melhor. E se você não consegue fazer um filme com uma história engajante e competente, suas autorreferências "inteligentes" não irão salvar o filme de ser tedioso, convoluto e incompetente.
- Os personagens entrando e saindo da Matrix através de espelhos é uma referência ao livro Através do Espelho, o segundo e último da série de Alice no País das Maravilhas. No livro, Alice entra no País das Maravilhas através de um espelho. Genial, não? Outra dica: copiar uma ideia de um livro infantil do século XIX não irá tornar o seu filme inteligente.
- As cenas em que o vilão, o controlador da Matrix, para o tempo, congelando os personagens, e caminha entre eles fazendo seu monólogo tedioso, são tão ridículas que não consegui parar de rir ao assisti-las — ainda mais porque o ator, suposto arqui-inimigo ameaçador e cruel, é interpretado por Neil Patrick Harris, de How I Met Your Mother, cuja presença dá uma ar de comédia ruim ao filme. Quando uma bala se move em slow motion em direção a Trinity, no que deveria ser um momento tenso para Neo, que observa tudo paralisado pelo poder do vilão, não dá para sentir qualquer seriedade ou receio pela personagem. É tudo uma farsa, beirando a comédia. Em suma, não consegui levar os antagonistas e suas ameaças a sério. E sem um antagonista convincente, o conflito em um filme de ação como este não funciona.