A criação artística parece ser um aspecto fundamental das culturas humanas. Ao longo dos séculos, muitos pensadores têm se debruçado sobre esse tema, e tende a ser um consenso que as artes desempenham um papel crucial na vida das pessoas. Pode-se notar, porém, um paradoxo: a carreira de artista é uma das mais precárias e instáveis do mercado. E, apesar da suposta universalidade da arte, seu consumo restringe-se a uma parcela bastante reduzida da população.
Para quem se forma em Artes Visuais, as opções profissionais mais acessíveis são aquelas relacionadas à educação. Há uma constante demanda das escolas por educadores licenciados neste ramo, e aulas particulares, fora da rede de ensino, também são uma alternativa. Com critérios de entrada mais rigorosos, existe ainda a área acadêmica — isto é, a docência em universidades. Todas essas funções, porém, estão mais relacionadas à educação e à pesquisa. Diplomados em Artes, estes profissionais atuam mais como professores e pesquisadores.
O artista que se dedica exclusivamente à produção de arte, por sua vez, encontra vários obstáculos em sua carreira, como insegurança profissional e baixa renda. Renan Alves Araújo, por exemplo, relatou, em entrevista para o portal G1, que teve mais de 50 currículos rejeitados e que vivencia várias dificuldades financeiras, apesar de sua formação em Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Paola Zardon, artista e docente do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lamenta o desinteresse popular pelo trabalho artístico de acadêmicos e egressos dos cursos da área.
Mesmo artistas que participam de bienais e possuem projeção no sistema de grandes mostras e galerias volta e meia estão com problemas monetários. A precariedade não é expurgada com o sucesso.
Com exceção da própria comunidade artística, e parte dos acadêmicos, a sociedade parece não se interessar pelo que se entende, hoje, como arte. Paola Zardon confessa:
Estudar algo que a sociedade não valoriza, que não te trará um mínimo de garantia de subsistência digna, deprime. Dá vontade de desistir.
Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela discrepância entre as diferentes formas de encarar a arte. Quando falamos da produção de artistas, atualmente, estamos nos referindo ao que Hans Abbing, no livro The Changing Social Economy of Art, denomina arte séria. Esta é a arte academicamente aceita, por mútuo acordo dos pares — os iniciados. Segundo Abbing, a criação artística dessa elite busca intencionalmente desviar-se das produções e gostos populares, como forma de justificar seu caráter especial, exclusivo.
Nas palavras de outro egresso do Instituto de Artes (IA) da UFRGS, que não quis se identificar:
A apreciação da arte contemporânea, produzida na academia, exige uma bagagem cultural teórica a qual a população em geral não tem acesso. O brasileiro médio aprecia obras mais tradicionais e de fácil fruição, ou obras da cultura popular, ainda assentada numa estética bastante barroca. Para além disso, está o fator econômico. Não é possível consumir arte quando se precisa escolher entre ela e o feijão.
Até o século XIX, e antes do impressionismo, a arte empregava uma estética passível de apreciação por indivíduos de qualquer grupo social, por se voltar às preferências humanas mais comuns. Com a formação das escolas de Belas Artes, a classe artística passou a desenvolver novas formas de estética, cada vez menos ligadas às preferências leigas, e mais metarreferenciais, culminando, com o modernismo, na completa eliminação do Belo como uma necessidade nas Artes. Hans Abbing explica que, com o processo de elitização do ramo, criou-se um ciclo de segregação crescente do produto artístico, requerendo uma iniciação intelectual para sua apreciação adequada.
De fato, Paola Zordan entende que a arte deva se desvencilhar da beleza, focando nos significados e simbologias — isto é, na mensagem.
Uma das principais tarefas do ensino de artes é desvencilhar o olhar do gosto, para que este aprenda a trabalhar com o entendimento das imagens e seus signos.
Para a professora, a arte deve estar desconectada do prazer estético. No entanto, ela reconhece que tal abordagem tem sido rejeitada pela sociedade.
Em termos locais e regionais, as artes visuais ficam obscurecidas numa mentalidade social que pouco compreende as funções do campo. Dentro de uma sociedade que consome uma produção comercial barata, feita de abstrações fáceis, que tomam caminhos que visualmente deprimem quem pensa o visual, existir ou não um Instituto de Artes quase não importa.
Arte Séria, Arte Popular, Arte Identitária
Egressa do Instituto de Artes da UFRGS e com mestrado em Artes Visuais, a artista e pós-graduanda Leli Baldissera acredita que muita coisa deve mudar no ambiente acadêmico e artístico.
Não vejo muita preocupação em tornar essa arte mais acessível e se conectar ao gosto popular, e acredito que nem seja seu objetivo.
Ela relata:
Na academia há muito preconceito com alguns tipos de arte que são considerados menores e não se enquadram com o que os professores apreciam e ensinam, o que acaba por desmotivar os jovens artistas que realizam arte figurativa e ilustração, por exemplo, como foi meu caso. A questão é que todas têm seu lugar e seu público e deveriam ser valorizadas e incentivadas.
Entre as artes pouco valorizadas na academia, é possível distinguir dois grupos principais: a arte de massa, e a arte dos grupos considerados como "minorias". A dita arte de massa é geralmente vista pelos acadêmicos como um entretenimento descartável, sem valor cultural. Ainda que seja a mais consumida e, portanto, a de maior impacto populacional, ela tende a ser encarada pelos especialistas como mero artefato comercial. Já a produção cultural das minorias, como a de grupos identitários baseados em etnia, gênero ou orientação sexual, foge dos padrões da "arte séria", mas oferece um aspecto ideológico de interesse para vários acadêmicos. Alguns deles têm manifestado sua preocupação em contemplar esta segunda forma de produção cultural na universidade.
No entanto, segundo o coordenador da Comissão de Pesquisa do IA, Chico Machado, as posições predominantes na área ainda são muito conservadoras e fechadas.
Existe uma desconexão e uma defasagem neste aspecto, e isso é expresso nos currículos, na didática e nas posições e juízos de valor proferidos pelos professores de modo geral, com algumas exceções.
Já Patrícia Leonardelli, coordenadora da Comissão de Extensão, entende que esse conflito de valoração das formas de produção artística represente uma "tensão positiva entre os campos".
Essa tensão, no entanto, pode não estar sendo vista por outros acadêmicos como positiva.
O conservadorismo e um certo grau de classicismo imperam mesmo entre os que publicamente mantêm um discurso inclusivo e progressista. Isso por si só emperra a inclusividade, a diversidade e a pluralidade — diz Chico.
Alexandre Santos, chefe do Departamento de Artes Visuais da mesma universidade, também mostra uma preocupação específica com o tema de minorias e acredita que a academia deva incluir em suas pautas as manifestações das culturas indígenas, afro-brasileiras, LGBTQ+, entre outras. Para ele, um dos principais problemas nas universidades, atualmente, é sua herança colonialista — isto é, as bases europeias da cultura brasileira.
Uma das propostas de Alexandre, nesse sentido, é a adoção da ideologia decolonialista. Na definição de Elison Antonio Paim, pós-doutor em História, em artigo para a HHMagazine, a abordagem decolonial é uma ferramenta política que busca "a desconstrução das metanarrativas sobre a modernização, racionalização e progresso procurando restaurar as vozes, as experiências, as identidades, as histórias dos subalternos e a importância das comunidades periféricas". Sua premissa é que a sociedade brasileira ainda é "calcada em práticas preconceituosas e discriminatórias quando, em boa parte das aulas, não problematiza o currículo eurocentrado, branco e racista, masculino, cristão".
A professora Paola também entende a herança europeia como problemática.
O próprio conceito de arte é europeu. O que entende-se como arte, hoje, nos cursos universitários, não tem sentido para as culturas indígenas. Separar o popular e o acadêmico não cabe mais, pois desde o século XX todos os "gostos" se misturam.
Percebe-se, porém, que o termo "arte popular" é entendido pelos acadêmicos entrevistados como "arte identitária". Em suas falas, é evidenciada uma boa vontade para com as manifestações culturais de minorias, empatia baseada em critérios como raça, gênero e orientação sexual. No entanto, tanto a arte dita de massa quanto aquela produzida por grupos não considerados como "minorias protegidas" são vistas com desprezo. Paola Zordan as considera como manifestações de "uma sociedade que consome uma produção comercial barata, feita de abstrações fáceis, que tomam caminhos que visualmente deprimem quem pensa o visual".
E desabafa:
Sinto vergonha de ver, em espaços de circulação de públicos, saguão de prédios, salas de espera, odes ao mal-estar visual, porque as imagens que estão ali, pinturas e até esculturas, raramente advinda dos egressos de cursos de Artes Visuais, raramente foram pensadas.
Prioridades do Ensino em Artes e suas Consequências
Essa tensão entre as modalidades de arte manifesta-se também na dificuldade de os artistas encontrarem seu lugar profissional fora das portas da faculdade, por não estarem em sintonia com as demandas do mercado. A pós-graduanda Leli Baldissera relata essa realidade:
Não havia nenhuma cadeira que falasse sobre mercado, profissionalização, carreira, etc. Os alunos saem da graduação sem saber como se posicionar no mercado, como vender seu trabalho, por qual valor, quais profissões podem seguir... É tudo muito vago, ganhar dinheiro com arte e se sustentar parece ser um tema tabu. Alguns poucos conseguem se estabelecer no sistema, mas a grande maioria sai de lá tendo que realizar trabalhos em outras áreas do conhecimento.
Acadêmicos como Paola Zordan e Patrícia Leonardelli enfatizam que uma das prioridades no ensino de Artes é dar voz a grupos silenciados, minorizados, combatendo, nas palavras de Patrícia, "os modos de opressão contemporâneos". Ao avaliar o preparo profissional de seus alunos, Paola não considera critérios propriamente técnicos, ou de habilidade, nem as demandas sinalizadas pela própria sociedade ou pelo mercado, mas aspectos como "presença, participação, questionamento, atitude, tudo isso e mais respeito, cortesia, gentileza, especialmente com os demais colegas".
Na prática, tal abordagem parece não estar surtindo efeitos positivos nem para dar voz aos grupos minorizados (visto o baixo alcance de suas iniciativas do IA, conforme relata Chico Machado), nem para garantir o sucesso profissional dos ex-alunos.
Ter formação acadêmica não garante nada — diz Paola. — Um curso superior não é responsável pelo modo que os artistas são tratados numa sociedade de consumo fácil e pouca visão de mundo.
Quando procurado para explicar os critérios e competências a serem avaliados para a qualificação do profissional artista, o chefe do Departamento de Artes Visuais, Alexandre Santos, não soube precisar. Talvez a falta de uma estratégia em relação à inserção dos formandos no mercado, somada à falta de atenção dada pela academia às necessidades do mercado (isto é, os interesses do consumidor), explique a situação descrita por Chico Machado:
Quantos e quem frequenta exposições? A não ser em eventos de grande monta, como as bienais, o público sequer tem acesso ou conhece o que se produz. A circulação da produção das obras das artes visuais é ínfima.
Pela observação do mercado brasileiro, percebe-se que há grande demanda por diversas formas de produção artística e entretenimento. Assim, a baixa procura pelo trabalho dos artistas de formação acadêmica é uma sinalização de que o grosso da população não tem interesse em consumir tais criações. Na mentalidade universitária, porém, identifica-se uma resistência à adaptação aos interesses da própria sociedade. Ao invés de buscarem uma equilíbrio entre os interesses do artista, da academia e os anseios do público consumidor, estratégia que talvez pudesse subsidiar estes profissionais, vários dos entrevistados sugerem apenas o financiamento público como solução — isto é, o subsídio da produção de obras para um público ínfimo.
Chico Machado compartilha dessa opinião:
O Estado deveria financiar e fomentar as artes para que não se ficasse à mercê de questões do mercado das artes e do interesse de autodivulgação das instituições e empresas privadas... os artistas precisam ter seu sustento e condições de trabalho garantidos.
Com exceção das pautas progressistas, há pouco interesse dos acadêmicos das Artes em adaptar o curso às demandas manifestadas pela sociedade. Em geral, são os próprios acadêmicos a decidir, segundo suas crenças, quais pautas sociais são importantes — e estas frequentemente não se alinham com os anseios da maioria. Assim, é possível que essa desconexão entre a elite artística e as manifestações populares (ou de massa) ainda venha a se agravar.
Paola Zordan, pelo menos, não vê a situação com otimismo:
Se em cinco séculos de academias de desenho e, posteriormente, de Belas Artes, isso não se alterou, por que teria de ser alterado agora?