Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, e muito movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.
Guardei o papel no bolso. Chegando cm casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
— Sou aquele cara do Jaguar preto —, eu disse.
— Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?
— Apanho você às nove horas para jantarmos —, eu disse.
— Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?
— Nada.
— Eu laço você na rua e você não pensou nada?
— Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
— Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de quê? —, eu disse.
— Impostação de voz.
— Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é?
— Sou. De cinema.
— Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
— Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso esperar, tenho só vinte anos.
No semiescuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
— Fica muito cheio em frente ao restaurante —, eu disse.
— O porteiro guarda o carro, você não sabia? —, ela disse.
— Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.
Ângela pediu um martini.
— Você não bebe? —, Ângela perguntou.
— Às vezes.
— Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o bilhete?
— Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
— Pensa —, Ângela disse.
— Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se interessou pelo meu perfil, Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
— E a segunda hipótese?
— Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
— E qual a hipótese que você escolhe? —, Ângela disse.
— A segunda. Que você é uma puta —, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martini como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha — era má atriz, via-se que estava perturbada — e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.
— E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você acreditaria?
— Não. Ou melhor, não me interessa —, eu disse.
— Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.
— Simplesmente não interessa. Vamos jantar —, eu disse.
Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martinis.
— Nunca fui tão humilhada em minha vida. — A voz de Ângela soava ligeiramente pastosa.
— Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso —, eu disse.
— Eu não quero fugir de você —, disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. — Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele momento interlocutório.
— O que é que você faz?
— Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul —, eu disse.
— Isso é verdade?
— Você não viu o meu carro?
— Você pode ser um industrial.
— Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha —, eu disse.
— Industrial.
— Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.
— Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
— Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir alguma coisa, — eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
— Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido —, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
— Vamos embora? —, eu disse.
Entramos no carro.
— Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado —, disse Ângela.
— O azar de um é a sorte do outro —, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
— Vou deixar você um pouco antes da sua casa —, eu disse.
— Por quê?
— Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.
— Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.
— A gente não vai se ver mais? —, Ângela perguntou.
— Acho difícil.
— Todos os homens se apaixonam por mim.
— Acredito.
— E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você —, disse Ângela.
— Um completa o outro —, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do para-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme colorido, dublado.
— Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso? —, ela disse.
— Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.
Fontes: FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das letras, 1994.