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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião
O homem que se extraviar do caminho da doutrina terá por morada a assembleia dos gigantes.
(Provérbios, XXI, 16)
Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.
Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacrifícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania.
Quase da mesma idade, fomos companheiros inseparáveis na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples companheiros.
Enquanto me perdurou a natural inconsequência da infância, não sofri com as suas esquisitices. Bárbara era menina franzina e não fazia mal que adquirisse formas mais amplas. Assim pensando, muito tombo levei subindo em árvores, onde os olhos ávidos da minha companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de passarinho. Apanhei também algumas surras de meninos aos quais era obrigado a agredir unicamente para realizar um desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se lhe tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as mãos e sentia-se feliz em acariciar-me a face intumescida, como se as equimoses fossem um presente que eu lhe tivesse dado.
Às vezes relutava em aquiescer às suas exigências, vendo-a engordar incessantemente. Entretanto, não durava muito a minha indecisão. Vencia-me a insistência do seu olhar, que transformava os mais insignificantes pedidos numa ordem formal. (Que ternura lhe vinha aos olhos, que ar convincente o dela ao me fazer tão extravagantes solicitações!)
Houve tempo — sim, houve — em que me fiz duro e ameacei abandoná-la ao primeiro pedido que recebesse.
Até certo ponto, minha advertência produziu o efeito desejado. Bárbara se refugiou num mutismo agressivo e se recusava a comer ou conversar comigo. Fugia à minha presença, escondendo-se no quintal, e contaminava o ambiente com uma tristeza que me angustiava. Definhava-lhe o corpo, enquanto lhe crescia assustadoramente o ventre. Desconfiado de que a ausência de pedidos em minha mulher poderia favorecer o aparecimento de uma nova espécie de fenômeno, apavorei-me. O médico me tranquilizou. Aquela barriga imensa prenunciava apenas um filho.
Ingênuas esperanças fizeram-me acreditar que o nascimento da criança eliminasse de vez as estranhas manias de Bárbara. E suspeitando que a sua magreza e palidez fossem prenuncio de grave moléstia, tive medo de que, adoecendo, lhe morresse o filho no ventre. Antes que tal acontecesse, lhe implorei que pedisse algo.
Pediu o oceano.
Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que a minha esposa viesse a engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe somente uma pequena garrafa contendo água do oceano.
No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomou-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais o largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-a contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.
Momentaneamente despreocupei-me da exagerada gordura de Bárbara. As minhas apreensões voltavam-se agora para o seu ventre a dilatar-se de forma assustadora. A tal extremo se dilatou que, apesar da compacta massa de banha que lhe cobria o corpo, ela ficava escondida por trás de colossal barriga. Receoso de que dali saísse um gigante, imaginava como seria terrível viver ao lado de uma mulher gordíssima e um filho monstruoso, que poderia ainda herdar da mãe a obsessão de pedir as coisas.
Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e feio, pesando um quilo.
Desde os primeiros instantes, Bárbara o repeliu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o ter encomendado.
A insensibilidade da mãe, indiferente ao pranto e à fome do menino, obrigou-me a criá-lo no colo. Enquanto ele chorava por alimento, ela se negava a entregar-lhe os seios volumosos, e cheios de leite.
Quando Bárbara se cansou da água do mar, pediu-me um baobá, plantado no terreno ao lado do nosso. De madrugada, após certificar-me de que o garoto dormia tranquilamente, pulei o muro divisório com o quintal do vizinho e arranquei um galho da árvore.
Ao regressar a casa, não esperei que amanhecesse para entregar o presente à minha mulher. Acordei-a, chamando baixinho pelo seu nome. Abriu os olhos, sorridente, adivinhando o motivo por que fora acordada:
— Onde está?
— Aqui. — E lhe exibi a mão, que trazia oculta nas costas.
— Idiota! — gritou, cuspindo no meu rosto. — Não lhe pedi um galho. — E virou para o canto, sem me dar tempo de explicar que o baobá era demasiado frondoso, medindo cerca de dez metros de altura.
Dias depois, como o dono do imóvel recusasse vender a árvore separadamente, tive que adquirir toda a propriedade por preço exorbitante.
Fechado o negócio, contratei o serviço de alguns homens que, munidos de picaretas e de um guindaste, arrancaram o baobá do solo e o estenderam no chão.
Feliz e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo de um coração, o que muito me comoveu. Esse foi, no entanto, o único gesto de carinho que dela recebi. Alheia à gratidão com que eu recebera a sua lembrança, assistiu ao murchar das folhas e, ao ver seco o baobá, desinteressou-se dele.
Estava terrivelmente gorda. Tentei afastá-la da obsessão, levando-a ao cinema, aos campos de futebol. (O menino tinha que ser carregado nos braços, pois anos após o seu nascimento continuava do mesmo tamanho, sem crescer uma polegada.) A primeira ideia que lhe ocorria, nessas ocasiões, era pedir a máquina de projeção ou a bola, com a qual se entretinham os jogadores. Fazia-me interromper, sob o protesto dos assistentes, a sessão ou a partida, a fim de lhe satisfazer a vontade.
Muito tarde verifiquei a inutilidade dos meus esforços para modificar o comportamento de Bárbara. Jamais compreenderia o meu amor e engordaria sempre.
Deixei que agisse como bem entendesse e aguardei resignadamente novos pedidos. Seriam os últimos. Já gastara uma fortuna com as suas excentricidades.
Afetuosamente, chegou-se para mim, uma tarde, e me alisou os cabelos. Apanhado de surpresa, não atinei de imediato com o motivo do seu procedimento. Ela mesma se encarregou de mostrar a razão:
— Seria tão feliz se possuísse um navio!
— Mas ficaremos pobres, querida. Não teremos com que comprar alimentos e o garoto morrerá de fome.
— Não importa o garoto, teremos um navio, que é a coisa mais bonita do mundo.
Irritado, não pude achar graça nas suas palavras. Como poderia saber da beleza de um barco, se nunca tinha visto um e se conhecia o mar somente através de uma garrafa?!
Contive a raiva e novamente embarquei para o litoral. Dentre os transatlânticos ancorados no porto, escolhi o maior. Mandei que o desmontassem e o fiz transportar à nossa cidade.
Voltava desolado. No último carro de uma das numerosas composições que conduziam partes do navio, meu filho olhava-me inquieto, procurando compreender a razão de tantos e inúteis apitos de trem.
Bárbara, avisada por telegrama, esperava-nos na gare da estação. Recebeu-nos alegremente e até dirigiu um gracejo ao pequeno.
Numa área extensa, formada por vários lotes, Bárbara acompanhou os menores detalhes da montagem da nave. Eu permanecia sentado no chão, aborrecido e triste. Ora olhava o menino, que talvez nunca chegasse a caminhar com as suas perninhas, ora o corpo de minha mulher que, de tão gordo, vários homens, dando as mãos, uns aos outros, não conseguiriam abraçar.
Montado o barco, ela se transferiu para lá e não mais desceu a terra. Passava os dias e as noites no convés, inteiramente abstraída de tudo que não se relacionasse com a nau.
O dinheiro escasso, desde a compra do navio, logo se esgotou. Veio a fome, o guri esperneava, rolava na relva, enchia a boca de terra. Já não me tocava tanto o choro de meu filho. Trazia os olhos dirigidos para minha esposa, esperando que emagrecesse à falta de alimentação.
Não emagreceu. Pelo contrário, adquiriu mais algumas dezenas de quilos. A sua excessiva obesidade não lhe permitia entrar nos beliches e os seus passeios se limitavam ao tombadilho, onde se locomovia com dificuldade.
Eu ficava junto ao menino e, se conseguia burlar a vigilância de minha mulher, roubava pedaços de madeira ou ferro do transatlântico e trocava-os por alimento.
Vi Bárbara, uma noite, olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua, larguei o garoto no chão e subi depressa até o lugar em que ela se encontrava. Procurei, com os melhores argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade das minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços. Também não adiantou. O seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo.
Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria.
Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.