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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião
O trabalho dos insensatos afligira aqueles que não sabem ir à cidade.
(Eclesiastes, X, 15)
Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na antepenúltima estação.
Cariba acreditou que a demora poderia ser atribuída a algum comboio de carga descarrilado na linha, acidente comum naquele trecho da ferrovia. Como se fizesse excessivo o atraso e ninguém o procurasse para lhe explicar o que estava ocorrendo, pensou numa provável desconsideração à sua pessoa, em virtude de ser o único passageiro do trem.
Chamou o funcionário que examinara as passagens e quis saber se constituía motivo para tanta negligência o fato de ir vazia a composição.
Não recebeu uma resposta direta do empregado da estrada, que se limitou a apontar o morro, onde se dispunham, sem simetria, dezenas de casinhas brancas.
— Belas mulheres? — indagou o viajante.
— Casas vazias.
Percebeu logo que tinha pela frente um cretino. Apanhou as malas e se dispôs a subir as íngremes ladeiras que o conduziriam ao povoado.
A escalada foi lenta e cansativa. O suor escorria pela sua testa, enquanto seus olhos se sentiam cada vez mais atraídos pela leveza das pequeninas edificações.
Uma vaga tristeza rodeava o lugarejo. As janelas e portas das casas estavam fechadas, mas os jardins pareciam ter sido regados na véspera. Experimentou bater em alguns dos chalés e não o atenderam. Caminhou um pouco mais e, do topo da montanha, avistou a cidade, tão grande quanto a que buscava. Vinte mil habitantes, soube depois.
Desceu vagarosamente. Os homens (e por que não as belas mulheres?) deveriam encontrar-se lá embaixo.
Várias vezes voltou a cabeça, procurando fixar bem a paisagem que deixava para trás. Tinha o pressentimento de que não regressaria por aquele caminho.
Durante todo o percurso, desde as vias secundárias à avenida principal, os moradores do lugar observaram Cariba com desconfiança. Talvez estranhassem as valises de couro de camelo que carregava ou o seu paletó xadrez, as calças de veludo azul. Mesmo sendo o seu traje usual nas constantes viagens que fazia, achou prudente desfazer qualquer mal-entendido provocado pela sua presença entre eles:
— Que cidade é esta? — perguntou, esforçando-se para dar às palavras o máximo de cordialidade.
Nem chegou a indagar pelas mulheres, conforme pretendia. Pegaram-no com violência pelos braços e o foram levando, aos trancos, para a delegacia de polícia:
— É o homem procurado — disseram ao delegado, um sargento espadaúdo e rude.
— Já temos vadios de sobra nesta localidade. O que veio fazer aqui? — perguntou o policial.
— Nada.
— Então é você mesmo. Como é possível uma pessoa ir a uma cidade desconhecida sem nenhum objetivo? A menos que seja um turista.
— Não sou turista e quero saber onde estou.
— Isso não lhe podemos revelar agora. Poderia prejudicar as investigações.
— E por que as casas do morro estavam fechadas? — atalhou o desconhecido, agastado com a falta de polidez com que o tratavam.
— Se não tomássemos essa precaução você não desceria.
Cariba compreendeu tardiamente que a sedução das casinhas brancas fora um ardil para atraí-lo ao vale.
* * *
— As testemunhas! — gritou o delegado.
Introduziram na sala um homem de rosto chupado, os cabelos grisalhos. Fez uma reverência diante da autoridade e encarou o preso com visível repugnância:
— Não tenho medo de sua cara.
— A sua coragem pouco nos importa — aparteou, áspero, o sargento. — Cinja-se ao que for interrogado e responda logo se conhece este sujeito.
— Não. Nunca o vi antes, mas tenho a impressão de que foi ele quem me abordou na rua. Pediu-me informações sobre os nossos costumes e desapareceu.
O militar se impacientou:
— Venham os outros idiotas!
Um de cada vez, vários homens depuseram e não esclareceram muita coisa. A uns, o estranho fizera indagações de pouca importância: "Esta cidade é nova ou velha?" — a outros, dirigira perguntas inconvenientes: "Quem são os donos do município?".
Muitos viram-no de perto, sem que o suspeito lhes dissesse sequer uma palavra. Só num ponto estavam de acordo, tanto os que lhe ouviram a voz ou lhe divisaram apenas o semblante: não sabiam descrever seu aspecto físico, se era alto ou baixo, qual a sua cor e em que língua lhes falara.
Já saíra a última testemunha, quando o delegado, exultante, deu um murro na mesa:
— Tragam a Viegas, ela sabe!
Duas horas se passaram até que chegasse a mulher. Entrou desembaraçada, os lábios ligeiramente pintados, as sobrancelhas pinçadas e um sorriso que deixou Cariba enamorado.
Rendido ao encanto da prostituta que, por seu lado, trazia os olhos fixos nos dele, o forasteiro não ouvia o que ela falava. Aos poucos, reencontrou-se com a realidade e começou a prestar atenção ao depoimento:
— Quis fugir, porém ele me agarrou pelos pulsos e perguntou: "Como vai seu pai? Ainda mora com as tias velhas?". — Não obtendo resposta, indagou pelos meus filhos. O senhor bem sabe que sou solteira e papai, quando morreu, morava sozinho. Por isso, antes que terminasse de falar, já suspeitava dele e me apressei em libertar-me dos seus braços. Não consegui. Segurou-me com mais força e, obrigando-me a encostar o ouvido nos seus lábios, dizia: "É preciso conspirar". — Na expectativa de convencê-lo a ir embora, mostrei-lhe o perigo a que se expunha enfrentando uma polícia tão rigorosa quanto a nossa. Sem demonstrar temor, respondeu-me: "Não é necessária a polícia".
Cariba sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher. Que corpo tivera nas mãos!
O policial, porém, não se contentou com o que ouvira:
— E reconhece este homem como sendo o que a abraçou na rua?
— Não me lembro do seu rosto, mas um e outro são a mesma pessoa.
O delegado ficou satisfeito. Virou-se para o indiciado e lhe afirmou que, mesmo tendo elementos para ultimar o inquérito, ouviria novamente as testemunhas na sua presença, o que de fato fez com a habitual grosseria:
— Então vocês viram o cara e não sabem descrevê-lo, seus idiotas!
À exceção da Viegas, permaneceram todos em silêncio. Ela, fixando os olhos maliciosos no desconhecido, confirmou:
— Sim, é ele.
Animados, os outros também falaram, repetindo o que disseram antes: não reconheciam o prisioneiro, mas deveria ser o mesmo indivíduo que lhes perguntara coisas tão estranhas.
O sargento chegara a uma conclusão, entretanto divagava:
— O telegrama da Chefia de Polícia não esclarece nada sobre a nacionalidade do delinquente, sua aparência, idade e quais os crimes que cometeu. Diz tratar-se de elemento altamente perigoso, identificável pelo mau hábito de fazer perguntas e que estaria hoje neste lugar.
Cariba, já incomodado com a perspectiva de ficar detido até que se desfizesse o equívoco, ponderou:
— Nada disso faz sentido. Não podem me prender com base no que acabo de ouvir. Cheguei aqui há poucas horas e as testemunhas afirmam que me viram, pela primeira vez, na semana passada!
O delegado impediu que prosseguisse:
— O comunicado do setor de segurança é claro e diz textualmente: "O homem chegará dia 15, isto é, hoje, e pode ser reconhecido pela sua exagerada curiosidade".
O policial encerrou os interrogatórios, declarando que os depoimentos ali prestados eram suficientes para incriminar o acusado, porém, não desejava precipitar-se. Aguardaria o aparecimento de alguém que reunisse contra si indícios de maior culpabilidade e eximisse Cariba das acusações que lhe pesavam.
— Quer dizer que permanecerei preso esse tempo todo?
A resposta do delegado desanimou-o: ficaria encarcerado até a captura do verdadeiro criminoso.
E se o culpado não existisse?
Cinco meses após a sua detenção, ele não mais espera sair da cadeia. Das suas grades, observa os homens que passam na rua. Mal o encaram, amedrontados, apressam o passo.
Pressente, às vezes, que irão perguntar qualquer coisa aos companheiros e fica à espreita, ansioso que isso aconteça. Logo se desengana. Abrem a boca, arrependem-se, e se afastam rapidamente.
As mulheres, alheias ao medo, costumam ir à Delegacia para levar-lhe cigarros. São as mais belas, exatamente as que esperava encontrar no distante povoado. Meigas e silenciosas, notam nos olhos dele o desespero por não poder abraçá-las, sentir-lhes o hálito quente.
Só resta esperar pela Viegas, que, sensual e perfumada, vem vê-lo ao fim da tarde. Sorri, e diz com uma invariabilidade que o enternece:
— É você.
Quando ela se despede — o corpo tenso, o suor porejando na testa — Cariba sente o imenso poder daquela prisão.
Caminha, dentro da noite, de um lado para outro. E, ao avistar o guarda, cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem, corre para as grades internas, impelido por uma débil esperança:
— Alguém fez hoje alguma pergunta?
— Não. Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.