Confira nossa lista de
contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião
Tu abriste caminho aos teus cavalos
no mar, através do lodo que se acha
no fundo das grandes águas.
(Habacuc, III, 15)
Lamentava ter aceitado o conselho de procurar a clínica do doutor Pink. Uma depressão ocasional, e caíra nas mãos do analista. Por desconhecer até aquela data a existência de semelhante especialidade, achou estranho o comportamento do médico, que nada receitara nem demonstrara interesse pelos sintomas da doença.
Galateu não sabia se estava realmente enfermo, mas era fora de propósito ser obrigado a deitar-se num divã e ouvir uma série de perguntas imbecis sobre a sua adolescência:
— Doutor, vim atrás de clínico, não de padre.
O analista se irritou com a insinuação. E, repreensivo, assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal. Exigia que falasse da infância, do relacionamento com os pais.
Durou duas horas o interrogatório. E quando, pronto para sair, quis saber o preço da consulta, levou um susto: o pagamento seria mensal.
Já desconfiara que a clientela do médico devia ser pequena. Segurá-lo tanto tempo e ainda insinuar a possibilidade de submetê-lo a longo tratamento!
— É bom pegar o dinheiro agora, caso contrário darei melhor destino a ele: mulheres.
— Acho que me fiz entender. O acerto será no fim do mês.
O tom era categórico e nem por isso demoveu o cliente da intenção de jamais voltar ao consultório:
— Como quiser. Mande a conta pelo correio e receberá o cheque correspondente.
Dois dias após, atendeu a um telefonema. A voz macia lhe agradou desde logo. Só não contava com o recado:
— O doutor Pink manda lembrar-lhe a entrevista de hoje. Como o horário ficou reservado para o senhor, vindo ou deixando de vir terá que pagar cinco mil cruzeiros.
— Cinco mil cruzeiros?! Onde ele pensa que eu ganho o dinheiro? Só pago, apesar do roubo, a primeira consulta. E tudo tratado por correspondência, que não quero mais ouvir sua voz nem ver a cara dele.
Mal iniciara as tarefas de atuário na Companhia de Seguros Gerais, Galateu foi chamado ao telefone. Levantou-se contrariado. O aparelho ficava distante e detestava ser interrompido durante o serviço.
— Sim. Como? Por que não compareci? Ora, doutor, estou bem e peço que não me incomode. Ir à minha casa? Arranje programa melhor, que eu tenho um ótimo para esta noite. — E bateu com o fone no gancho.
Findo o expediente, Galateu caminhava em direção a seu carro, quando avistou o doutor Pink:
— A brincadeira está indo longe demais. O senhor não considera falta de ética aliciar clientes? Devo esclarecer, em definitivo, que as minhas ocupações não me permitem preencher os seus horários vagos.
O analista inclinou-se sobre os ombros de Galateu:
— Você não compreende que o seu inconsciente é lodo puro?
— Até agora só entendi que o senhor confunde medicina com catecismo.
— Engano seu. Não quero salvá-lo, mas curá-lo.
— Bem, doutor, sua conversa é instrutiva, porém outra pessoa mais interessante me aguarda. Só espero que este nosso diálogo não se transforme em cifras.
Ao despedir-se, ainda era um homem bem-humorado.
No dia seguinte, coube à secretária do analista lhe telefonar:
— O doutor ficou aborrecido com o seu procedimento ontem e pede para avisá-lo que estará à sua disposição no horário combinado.
— Nada combinei. Por favor, me deixe em paz! — Percebeu, insatisfeito, que começava a implorar.
A ligação fora cortada e ele permanecia imóvel diante da janela do escritório. Uma recordação desagradável aflorava do passado. Apreensivo, deslocou-se para sua mesa.
Procurou concentrar-se no trabalho, mas o pensamento girava entre o episódio sepultado no inconsciente e a curiosidade malsã do doutor Pink. Insurgia-se contra essa intromissão em sua vida, receoso de que o médico pressentisse a verdade toda.
O tempo esvaía-se lentamente, Galateu errava nos cálculos. Ao fim do turno da tarde pouco fizera de aproveitável.
Não foi direto para casa. Passou por diversos bares, sem se demorar em nenhum deles. Nem os jornais, adquiridos numa banca, conseguiu ler. Ainda preocupado quanto aos objetivos do analista, esforçava-se por fugir de uma cena que julgara esquecida para sempre.
Aproximava-se a hora de encontrar-se com a mulher do seu chefe e relutava em ir ou não. Resolveu cancelar o encontro: aos diabos com a promoção!
Só pôde dormir, à noite, tomando uma dose elevada de barbitúricos. Sono agitado, com pesadelos e uma dor dilacerante, que não sabia se real ou apenas sonho. Uma faca penetrava-lhe a carne, escarafunchava os tecidos, à procura de um segredo. Sua irmã Epsila e o analista, debruçados sobre o seu corpo, acompanhavam atentos os movimentos irregulares da lâmina.
Na ânsia de acordar, rolava na cama, empapando de suor o travesseiro. A duro esforço conseguiu despertar. Apalpou o peito e as mãos encontraram uma coisa pegajosa. Meio entorpecido pela ação dos soníferos, buscou no banheiro o espelho e viu que o mamilo esquerdo desaparecera. No lugar despontara uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates.
Passado o espanto e superada a náusea, quis chamar um médico. Só não o fez ante o temor de repetir-se a infeliz experiência que tivera com o doutor Pink. Preferiu medicar-se na farmácia da esquina.
O farmacêutico lhe receitou uma pomada cicatrizante, garantindo a cura em poucos dias de aplicação, o que de fato ocorreu.
Dois meses decorridos, a consciência tranquilizada, Galateu se dividia entre a rotina do escritório e os encontros com a mulher do diretor. O analista não voltara a importuná-lo e pensou ter ficado livre dele.
A ilusão durou pouco. Não tardaria a ouvir a voz do médico. Era noite, estava se preparando para deitar-se:
— É chegado o tempo das amoras silvestres.
Foi o que disse e deixou Galateu intrigado, a dissecar uma a uma as palavras, como se pertencessem a um quebra-cabeça. Antecipadamente sabia que no seu bojo nada vinha de bom.
A frase, indecifrada, se perdeu no sono.
Acordou, de manhã, com uma dor penetrante. Nem teve necessidade de tocar no mamilo, para certificar-se de que a ferida ressurgira, agora do lado direito. Procurou na mesinha de cabeceira o resto da pomada e, desalentado, espalhou-a entre as pétalas rubras.
Acabara de telefonar a seu superior, comunicando-lhe que não iria trabalhar, quando a empregada anunciou a presença de um homem, portador de assunto urgente. Pôs o robe sobre o pijama para atender o visitante, um oficial de justiça. Dele recebeu, surpreso, uma intimação para comparecer ao fórum, a fim de contestar a ação de cobrança de honorários, que lhe movia o doutor Pink da Silva e Glória.
O advogado que contratara não o animou muito quanto às reais possibilidades de levar a bom termo a causa:
— Como poderei defendê-lo satisfatoriamente, se o senhor é o primeiro a confessar ignorância de um fato de conhecimento geral: a longa duração do tratamento pela terapia psicanalítica? E onde conseguir elementos probatórios, além da sua palavra, para refutar o médico, que afirma ter ficado à sua disposição durante dois meses, no horário que lhe foi reservado? Dentro desse quadro desencorajador — concluiu — não lhe posso garantir uma vitória tranquila.
Galateu acompanhou com sacrifício as audiências de instrução e julgamento. As dores, insuportáveis, vinham do fundo na direção dos mamilos. Quando o juiz lhe perguntou se ignorava que a terapêutica das desordens mentais se processava lenta e gradativamente, teve a impressão de estar ouvindo o eco das palavras do advogado.
Não adiantava lutar, nem queria. Ouviu resignado a sentença que o condenava a pagar quatrocentos mil cruzeiros ao analista, de acordo com o valor arbitrado pela perícia. Da quantia, declarou possuir parte, ficando de completá-la com a venda do automóvel. Nesse instante percebeu o quadro sombrio que tinha à sua frente: novas cobranças de honorários, a penhora do apartamento, o desabrochar e o cerrar das feridas. Voltou-se para o passado e lhe veio a dúvida se não estaria condenado muito antes de procurar o médico.
De súbito empalideceu. Rosto contraído, gotículas de suor escorrendo pela testa, levou a mão ao peito e caiu sobre a mesa. Apressaram-se todos em socorrê-lo. Recuperado do desfalecimento, viu nos olhos dos que o amparavam uma solidariedade vazia.
Passara um mês e continuava acamado. Cuidavam dele a empregada e o farmacêutico, que lhe aplicavam compressas de água quente, pomadas e injeções de morfina. O alívio era passageiro, logo voltavam as dores.
Na primeira semana, ainda atendeu ao telefone. Depois desligou o aparelho e o utilizava apenas para comunicar-se com a farmácia. É que a maioria dos telefonemas vinham do doutor Pink, obstinado em ser recebido ou insistindo para que ele fosse ao consultório. Não satisfeito com as recusas, o médico prometia-lhe devolver o dinheiro que recebera e nada cobrar pelo resto do tratamento.
Na ausência da empregada, que fora à mercearia, tocaram a campainha com insistência. Mesmo fraco, quase sem condições de caminhar, Galateu levantou-se para atender quem o procurava em hora tão inoportuna.
Arrependeu-se da imprudência: na soleira da porta estavam a irmã e um menino com a aparência de retardado mental. Normalmente teria motivos para assustar-se, mas o choque foi maior do que podia esperar: a nova imagem de Epsila era uma contrafação da jovem que aparecera no sonho. Perdera, em doze anos, o viço, a suavidade de traços. Magra, muito magra, os olhos sem brilho e a falta de dentes no maxilar superior davam-lhe um aspecto contristador.
O medo substituiu nele a repulsa:
— O que deseja?
— Vim para tratar de você.
— Saia, não a quero aqui. Se for necessário, chamarei um médico.
Ela se fez de desentendida. Afastou-o, forçando a passagem com o braço. Galateu perdeu o equilíbrio e caiu. Menos pelo leve empurrão do que pela sua extrema debilidade.
Epsila ajudou-o a levantar-se e o conduziu ao quarto.
Adormecera por algum tempo. Ao acordar, viu o debiloide sentado na beirada da cama:
— Eu, Zeus — e apontava o polegar para o seu próprio rosto.
Tinha urgência de ver-se livre dele. Sua cara de idiota e a maneira de expressar-se causavam-lhe mal-estar.
— Fale com a empregada para vir aqui.
— Pai, a mãe mandou ela embora.
— Quem disse que sou seu pai? — Além da repugnância que lhe provocavam os esgares do pequeno mentecapto, ficara desconcertado com a revelação:
— Então chame Epsila, chame alguém. Rápido!
A irmã veio depressa. Ainda enxugava um prato:
— Estou ocupada, o que deseja?
— Por que despediu Joana?
— Basta uma mulher para os serviços caseiros. — E caminhando na direção da mesinha de cabeceira, para recolocar no gancho o fone fora de lugar, acrescentou:
— Ia me esquecendo. Há poucos instantes veio aqui um homem, dizendo que estava na hora de lhe aplicar a injeção. Impedi a entrada dele e lhe fiz um apelo para que não mais voltasse, pois você poderia viciar-se com o uso prolongado da morfina.
Galateu ficou estarrecido:
— Sabe o que fez, sua cadela?! As dores me matarão!
Nisso, o telefone tocou. Epsila atendeu e, virando-se para o irmão, disse que o doutor Pink estava na linha.
— Não quero falar com ele.
— Atenda. — Era uma ordem, apesar da inflexão da voz — mansa e neutra.
Convencido da desvantagem de contrariar a irmã, acedeu:
— Estou bem de saúde, doutor. Se houver necessidade, pedirei sua ajuda.
Nos dias posteriores, bastava ouvir a campainha do telefone, Epsila vinha correndo. Se era o médico, Galateu tinha que ouvi-lo. Obstinava-se, porém, em recusar as propostas do analista. Após os curtos diálogos, ele discava aflito para o farmacêutico, implorando-lhe que o socorresse. Este se negava, dizendo que fizera diversas tentativas para entrar no apartamento e fora obstado pela bruxa.
Bruxa?! Galateu se compenetrou de que mesmo longe dali teria poucas possibilidades de sobreviver, e nenhuma se permanecesse onde se encontrava. Restava-lhe a fuga. Aguardou a noite, na expectativa de que a irmã se recolhesse.
Na hora prevista, desceu da cama com cuidado e rastejou até o corredor. Prosseguiu com paciente lentidão, sabendo das dificuldades que teria para chegar à rua, pois superestimara o que lhe restava do seu antigo vigor. Preferia, no entanto, tentar tudo, menos continuar enclausurado no apartamento. Demorou a atingir a sala e teve que apoiar-se à parede para levantar-se. Tateando no escuro, conseguiu localizar a porta, mas não encontrou a chave na fechadura. Novamente de rastros, dirigiu-se à cozinha, pretendendo alcançar a área de serviço. Arfava, o pijama molhado de suor colava-se à sua pele. Para recobrar o fôlego, sentou-se no chão. Começava a recuperar-se quando acenderam a luz. Trêmulo, a visão turvada pela luminosidade, encolheu-se. Acomodada a vista à claridade, viu Zeus que, de cima de um tamborete, apertava o interruptor. Sorria. Um sorriso torto:
— As chaves. A mãe escondeu.
De manhã encontraram-no no mesmo lugar, ainda desfalecido. Levado para a cama, voltou à meia realidade, as coisas lhe parecendo confusas, as imagens da irmã e do garoto misturadas entre sombras. Via no teto uma enorme chave e rente ao peito uma lâmina afiada bailava, aproximando-se e afastando-se.
Exalava um odor fétido da pústula. O mentecapto não se importava, entretido em dar cabriolas na extremidade do aposento. A mãe, comprimindo as narinas com os dedos, abriu a janela. Como persistisse o mau cheiro, abandonou o quarto e só regressou ao ouvir tocar a campainha do telefone. Disse algumas palavras em voz baixa e passou o fone ao irmão, que não conseguiu retê-lo nas mãos. Ela veio em seu auxílio. Segurou o receptor para o enfermo, que mal ouvia e custava a entender o que lhe diziam. Em resposta, apenas balbuciou:
— Venha. — Uma baba de sangue escorreu pelos cantos da boca.
Um quarto de hora depois, aparecia o doutor Pink. Circunspecto, abriu o paletó do pijama de Galateu e com o bisturi, retirado da valise, limpou as pétalas da ferida. Epsila, a um sinal do médico, aproximou-se e ambos se debruçaram sobre o corpo do moribundo, enquanto este esboçava imperceptível gesto de asco.