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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião
Eu amo os que me amam; e os que vigiam desde a manhã, por mm buscarem, achar-me-ão.
(Provérbios, VIII, 17)
Uma tarde — estávamos nos primeiros dias de abril — ela chegou à nossa casa. Empurrou com naturalidade o portão que vedava o acesso ao pequeno jardim, como se obedecesse a hábito antigo. Do alpendre, onde me encontrava, escapou-me uma observação desnecessária:
— E se tivéssemos um cachorro?
— Não me atemorizam os cães — retrucou aborrecida.
Com alguma dificuldade (devia ser pesada a mala que carregava), subiu a escada. Antes de entrar pela porta principal, voltou-se:
— Nem os homens tampouco.
Surpreso por vê-la adivinhar meu pensamento, apressei-me em desfazer a situação cada vez mais embaraçosa:
— Hoje o tempo está ruim. Se continuar assim...
Interrompi a série de bobagens que me ocorria e, encabulado, procurei evitar o seu olhar repreensivo.
Sorriu levemente, enquanto eu, nervoso, torcia as mãos.
Logo a desconhecida se adaptou aos nossos hábitos. Raramente saía e nunca aparecia à janela.
Talvez não tivesse reparado no primeiro momento em sua beleza. Bela, mesmo no desencanto, no seu meio sorriso. Alta, a pele clara, de um branco pálido, quase transparente, e uma magreza que acusava profundo abatimento. Os olhos eram castanhos, mas não desejo falar deles. Jamais me abandonaram.
Cedo começou a engordar, a ganhar cores e, no rosto, já estampava uma alegria tranquila.
Não nos disse o nome, de onde viera e que acontecimentos lhe abalaram a vida. Respeitávamos, entretanto, o seu segredo. Para nós era ela, simplesmente ela. Alguém que necessitava de nossos cuidados, do nosso carinho.
Aceitei os seus longos silêncios, as suas repentinas perguntas. Uma noite, sem que eu esperasse, interrogou-me:
— Já amou alguma vez?
Por ser negativa a resposta, deixou transparecer a decepção. Pouco depois, abandonava a sala, sem nada acrescentar ao que dissera. Na manhã seguinte, encontramos vazio o seu quarto.
Todos os dias, mal começava a cair a tarde, eu ia para o alpendre, à espera de que ela surgisse a qualquer momento na esquina. Minha irmã Cordélia desaprovava-me:
— É inútil, ela não voltará. Se você estivesse menos apaixonado, não teria tanta esperança.
Um ano após a sua fuga — estávamos novamente em abril — a vi aparecer no portão. Trazia mais triste a fisionomia, maiores as olheiras. Dos meus olhos, que se puseram alegres ao vê-la, desprendeu-se uma lágrima, e disse, esforçando-me para lhe tornar cordial a recepção:
— Cuidado, agora temos uma cadelinha.
— Mas o dono dela ainda é manso, não? Ou se tornou feroz na minha ausência?
Estendi-lhe as mãos, que ela segurou por algum tempo. E, sem conter a minha ansiedade, indaguei:
— Por onde andou? O que fez esse tempo todo?
— Andei por aí e nada fiz. Talvez amasse um pouco — concluiu, sacudindo a cabeça com tristeza.
A sua vida entre nós retomou o ritmo da outra vez. Mas eu estava intranquilo. Cordélia olhava-me penalizada, insinuava que eu não deveria ocultar mais a minha paixão.
Faltava-me, contudo, a coragem e adiava a minha primeira declaração de amor.
Meses depois, Elisa — sim, ela nos disse o nome — partiu de novo.
E como lhe ficasse sabendo o nome, sugeri à minha irmã que mudássemos de residência. Cordélia, apegada ao extremo à nossa casa, nada objetou. Limitou-se a perguntar:
— E Elisa? Como poderá encontrar-nos ao regressar?
Refreei a custo a angústia e repeti completamente idiotizado:
— Sim, como poderá?