O Bom Amigo Batista - Murilo Rubião | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo O Bom Amigo Batista - Murilo Rubião | Conto Completo
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O Bom Amigo Batista - Murilo Rubião | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 13 mar. 2022
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"Desde a infância procuraram meter-me na cabeça que devia evitar a companhia de João Batista, o melhor amigo que já tive..."

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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião


Bem-aventurados os mansos: porque eles possuirão a terra.
(Mateus, V, 4)

I

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Desde a infância procuraram meter-me na cabeça que devia evitar a companhia de João Batista, o melhor amigo que já tive. A começar pelo meu irmão:

— Não vê, José, que Batista está abusando de você? Todos os dias come da sua merenda, copia seus exercícios escolares e ainda banca o valente com os outros meninos, fiado nos seus braços. Todavia, quando os moleques lhe deram aquela surra, nem se abalou para ajudá-lo.

Era uma injustiça. Batista não viera em meu auxílio, como explicou em seguida, porque fora acometido de cãibra justamente no momento em que fui agredido.


II

Após o grupo, veio o ginásio e lá em casa meus pais, unidos a meu irmão, na faina de me separar do amigo, pouco variavam de estribilho:

— Você precisa deixar de ser burro, de ser idiota. Batista está aproveitando do seu trabalho como uma sanguessuga. Você estuda e ele, copiando suas provas, recebe as melhores notas da classe. E os discursos? Você os escreve, para que seu amigo, lendo-os apenas, fique com a glória de bom orador e de líder da turma.

Tio Eduardo, o mais novo dos irmãos de mamãe, que à falta de um ofício morava conosco havia anos, deixava sua observação para o final:

— Além de tudo, é filho daquele mandrião do Honório, o caça-dotes!

Não adiantava argumentar com meus pais. Muito menos com titio, que fora noivo da mãe de Batista, mulher bonita e rica.

Discutir seria pior. Ficavam irritados e me agrediam com uma torrente de adjetivos dificilmente toleráveis por pessoas de maior sensibilidade.

Ante essa perspectiva desfavorável, contentava-me em saber que não tinham razão e em tornar cada vez mais sólida a minha amizade pelo colega.

De fato, ajudava-o nos exames e discursos. Também não era menos verdade ser ele mais brilhante do que eu. Dava-lhe uns poucos dados, que dependiam da minha boa memória, e Batista, desenvolvendo-os com inteligência, fazia magníficas provas.

Quanto aos discursos, poderia escrevê-los sem a minha colaboração e bem superiores aos meus. Só não os redigia em virtude da preguiça que o assaltava nas vésperas de pronunciá-los, ou mesmo por saber que esse trabalho me dava prazer.

Que me custava prestar-lhe ajuda se, além de gago e tímido, eu não pretendia seguir carreira que dependesse da oratória?


III

Não conseguindo convencer-me, meus parentes mudaram de tática. Em vez da reiteração das censuras, que resultavam inócuas, passaram a meter-me em ridículo. Serviu de pretexto para a nova ofensiva uma namorada que me foi tomada por Batista. Eu gostava da moça — uma ruiva de dentes alvos e miúdos —, razão por que quase rompi com o amigo. Desculpei-o posteriormente ao saber que assim procedera pelo temor de que a ruiva me levasse a praticar alguma tolice. Eu estava apaixonado e ela era bastante leviana. Tanto era — dizia-me o companheiro — que me abandonara por ele! O argumento me satisfez e não mais me incomodaram as pequenas ironias que a todo instante me atiravam.


IV

Quando mais tarde, juntos, entramos para o Ministério da Fazenda, disseram os da minha família que eu ditara para meu colega as provas do concurso e isso, de certo modo, explicava o primeiro lugar conquistado por Batista.

Sórdida mentira! Apenas o auxiliara na prova de matemática, matéria da qual ele não tinha grandes conhecimentos. Mas quem deixaria de ajudar seu semelhante numa contingência dessas?


V

Os que não viam com bons olhos a nossa amizade nos deram tréguas por algum tempo.

Não demoraram, porém, em romper as hostilidades contra nós. Serviram de motivo as promoções, que vieram um ano após o concurso. Para cúmulo do azar, o despeito dos nossos colegas de trabalho fez com que considerassem uma injustiça a promoção do meu companheiro. (Eu é que merecia ser promovido. O acesso de Batista à classe superior — segundo eles — se devia à permanente adulação com que cercava nossos chefes.)

Argumentavam de diferentes maneiras, mas no fundo apenas tentavam disfarçar uma grosseira inveja de alguém que subia pelos próprios méritos.

A minha casa chegaram esses murmúrios e ninguém fez o menor comentário. Fizeram pior: forçavam um silêncio constrangedor todas as vezes que o nome do meu amigo vinha à baila. Punham-se a olhar-me, atentamente, sem pronunciar uma palavra sequer.

Dissimulei o desagrado que o procedimento dos meus parentes me provocava e deixei de falar do companheiro na presença deles.

Enquanto isso, os anos passando, outras promoções vieram. Em algumas fui preterido, em outras não, ao passo que João Batista foi galgando postos, até chegar a chefe da minha seção.


VI

Por essa época, já me assaltara insistente melancolia. Sentia-me deslocado em casa, uma necessidade de andar pela noite adentro, sem parar, cansando-me, evitando os pensamentos. Só me acalmava a companhia de Batista, meu guia e conselheiro.

Certo dia, ao largar o serviço, deixei-me ficar no banco de uma pracinha, a remoer ideias infelizes, um desejo de diluir-me nas nuvens claras que se mesclavam com o azul do céu. A meu lado, uma jovem — silenciosa e triste — parecia compartilhar do mesmo desamparo que me afligia.

A identidade de angústia nos aproximou. Conversamos e um mês depois fomos a uma igreja gótica, onde um padre holandês e rubicundo disse muita coisa que não entendemos, mas como nos declarasse casados e fosse meu padrinho o h>m amigo Batista, senti-me feliz apesar de não se encontrar no templo nenhum dos meus parentes. Ou por essa mesma razão.


VII

Mal decorrera um ano de casados, a tranquilidade do nosso lar, até então completa, veio a ser abalada por um incidente de mínima importância. Para uma promoção a que tinha direito, meu companheiro indicou outro funcionário. Sendo o beneficiado sobrinho do ministro, aconselhei Batista a não sugerir meu nome para a vaga, pois a minha indicação poderia, no futuro, prejudicar-lhe a carreira funcional.

Assim não entendeu minha esposa. Pensando que eu fora deliberadamente preterido, cortou relações com meu amigo, não mais lhe permitindo entrar em nossa casa. Desse dia em diante, tornou-se irritadiça, declarando a todo momento que se sacrificara por um imbecil.

Amargurado, eu não fazia nenhum reparo às acusações, evitando o confronto, como sempre foi do meu feitio. Deixava-me ficar pelos bancos das praças, invejando a insensibilidade das nuvens.


VIII

Não me sendo possível deixar de aparecer em casa e, nela, escapar aos insultos de Branca, resolvi fingir-me doido.

Após duas semanas, a trepar nas mesas, os olhos arregalados, a gritar ou quebrando louças, eu já estava saturado do meu próprio espetáculo. Para aumentar-me o desalento, minha mulher não cuidava de chamar o médico que constatasse minha insanidade. Contentava-se em olhar-me e dizer:

— Não é que esse cretino está maluco mesmo! Que se dane. A gente casa com uma toupeira e ainda tem que lhe aturar as maluquices.

Falava e se recolhia ao silêncio, espiando-me com seus olhos maus.

Entretanto, aquele que sempre cuidou de mim e, em várias circunstâncias, me livrou de situações difíceis, veio em meu socorro. Tão logo soube do que se passava, buscou-me em casa para internar-me em um hospício. Minha esposa, que me desejava ter à mão, a fim de descarregar sua raiva, não concordou com a providência. Aos gritos, esgotou o repertório de palavrões, sem que tomassem em consideração o seu protesto. E fui internado na poética casa de saúde da rua Lopes Piedade.

Enquanto corriam os meses, calado, eu ficava a observar os meus companheiros. Bons e espirituosos amigos: trocaram o meu nome pelo de Alvarenga — Alvarenga Peixoto. Talvez pelo meu ar tristonho ou por ter sempre os olhos postos nas magnólias do parque.


IX

Uma manhã — eu estava de bom humor e um tanto loquaz — conversava com Napoleão sobre o desastre de suas tropas em Waterloo, divergindo dele, que afirmava ter sido derrotado somente por falta de queijos suíços na intendência do seu exército, quando um guarda me chamou a mandado do diretor do hospício.

Na sala da diretoria encontrei meu irmão e um homem de olhinhos espertos, que me apresentaram como sendo o delegado João Francisco. Usava um pequeno bigode empastado de vaselina e foi logo me dizendo:

— Estou aqui para esclarecer fatos relativos a uma denúncia apresentada por pessoas de sua família. Alegam que o senhor jamais sofreu das faculdades mentais e se encontra neste hospício em virtude de uma trama urdida pela sua esposa com a conivência de João Batista Azeredo. De tudo isso já apurei que os dois estão vivendo juntos.

Percebendo aonde ele iria chegar, não me contive e comecei a berrar:

— É uma calúnia! Estou louco! Doido varrido!

Distribuí murros, quebrei armários, os óculos do diretor. Antes que alcançasse o bigodinho vaselinado do policial, fui subjugado pelos guardas.


X

Agora, livre da camisa de força e dos enfermeiros, tenho meditado sobre os acontecimentos de dias atrás e sou levado a acreditar que meu companheiro esteja amasiado com Branca. Não posso desprezar essa possibilidade, mesmo sabendo do ódio que nutriam um pelo outro. Naturalmente Batista descobriu que minha mulher planejava retirar-me daqui e, para evitar que tal acontecesse, foi ao extremo da renúncia, atraindo-a para si. Pobre amigo.

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