Thor na Terra dos Gigantes - Mitologia Nórdica | Mito Completo | Fantástica Cultural

Artigo Thor na Terra dos Gigantes - Mitologia Nórdica | Mito Completo

Thor na Terra dos Gigantes - Mitologia Nórdica | Mito Completo

Autores Selecionados ⋅ 10 ago. 2022
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Poucas aventuras são tão estranhas quanto a de Thor e Loki, dois deuses de Asgard, ao visitarem a fazenda de Thjálfi, uma terra selvagem nos limites do mundo, habitada por monstros e gigantes e onde, segundo dizia-se, ocorriam milagres e os mais esquisitos eventos.

I

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Thjálfi e sua irmã, Röskva, moravam com o pai, Egil, e a mãe em uma fazenda nos limites do território selvagem. Próximo à fazenda viviam monstros, gigantes e lobos, e Thjálfi muitas vezes se metia em apuros e precisava escapar correndo. Ele corria mais rápido que qualquer pessoa ou ser. Por morarem nos limites das terras selvagens, milagres e eventos estranhos eram comuns no mundo de Thjálfi e Röskva.

Entretanto, nada tão estranho quanto o dia em que dois visitantes de Asgard, Loki e Thor, chegaram à fazenda em uma carruagem puxada por duas cabras enormes, que Thor nomeara Rosnador e Rangedor. Os deuses solicitaram comida e hospedagem, e eram enormes e poderosos.

— Não temos alimento para seres como vocês — respondeu Röskva, desculpando-se. — Temos vegetais, mas foi um inverno difícil, e não nos sobrou nenhuma galinha.

Thor resmungou. Sacando a faca, ele matou as duas cabras. Depois esfolou os cadáveres. O deus do trovão jogou a carne no grande caldeirão de guisado pendurado acima do fogo enquanto Röskva e a mãe picavam o que havia sobrado dos vegetais e os jogavam no caldeirão.

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Loki chamou Thjálfi em um canto. O garoto parecia intimidado pelos olhos verdes, pelas cicatrizes nos lábios e pelo sorriso de Loki.

— Você sabia — comentou o deus da trapaça — que o tutano dos ossos dessas cabras é a melhor coisa que um jovem da sua idade pode comer? É uma vergonha que Thor sempre fique com tudo. Se quiser crescer e ficar forte como ele, coma o tutano do osso das cabras.

Quando a comida ficou pronta, Thor pegou uma cabra inteira para si, deixando a carne da segunda cabra para os outros cinco.

O deus pôs as peles das cabras no chão e, enquanto comia, largava os ossos na pele da primeira cabra.

— Joguem seus ossos na outra pele — instruiu. — E não quebrem nem mastiguem nenhum deles. Comam apenas a carne.

Você acha que consegue comer rápido? Devia ter visto Loki devorando sua porção. Em um momento o prato cheio estava bem a sua frente, e, no segundo seguinte, havia sumido, e Loki limpava os lábios com as costas da mão.

Os outros comeram mais devagar. Thjálfi não conseguia parar de pensar no conselho de Loki. Então, quando Thor deixou a mesa para atender a um chamado da natureza, Thjálfi pegou a faca e a usou para quebrar um dos ossos da perna da cabra e comeu um pouco do tutano. O rapaz pôs o osso quebrado na pele da cabra e o cobriu com ossos inteiros, para que ninguém notasse.

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Naquela noite, todos dormiram no salão.

Pela manhã, Thor cobriu os ossos com o couro. Ele pegou seu martelo, Mjölnir, e o levantou bem alto.

— Rosnador, fique inteiro! — ordenou o deus.

Após o clarão de um raio, a cabra se transformou, baliu e começou a pastar.

Thor disse:

— Rangedor, fique inteiro!

E Rangedor ficou. Avançou mancando com dificuldade na direção de Rosnador, então baliu alto, como se sentisse dor.

— Uma das pernas dele está quebrada — constatou Thor. — Tragam-me madeira e pano.

Ele fez uma tala para a cabra. Quando terminou, olhou para a família. Thjálfi achava que nunca vira nada tão assustador quanto os olhos injetados e flamejantes de Thor. O deus cerrou o punho, agarrando o cabo do martelo.

— Algum de vocês quebrou aquele osso — disse, com voz de trovão. — Eu lhes dei comida e, em troca, pedi uma única coisa. Ainda assim, fui traído.

— Fui eu — confessou Thjálfi. — Eu quebrei o osso.

Loki tentava ficar sério, mas não conseguiu evitar um sorrisinho. Não era um sorriso tranquilizador.

Thor ergueu o martelo.

— Eu deveria destruir esta fazenda inteira — murmurou, deixando Egil assustado e sua esposa aos prantos. — Digam: por que não devo transformar este lugar em ruínas?

Egil não respondeu. Thjálfi se levantou e disse:

— Isso não tem nada a ver com meu pai. Ele não sabia que fiz o que fiz. Castigue a mim, não a ele. Eu corro bem e aprendo rápido. Deixe meus pais em paz, e eu serei seu escravo.

Röskva se levantou e anunciou:

— Thjálfi não vai a lugar nenhum sem mim. Se decidir levar meu irmão, terá que levar nós dois.

Thor ponderou por um momento antes de responder:

— Muito bem. Por enquanto, Röskva, você vai ficar aqui e cuidar de minhas cabras enquanto a perna de Rangedor não fica boa. Quando voltar, levarei vocês três. — Então se voltou para Thjálfi. — Já você vem comigo e Loki. Vamos para Utgard.



II

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O mundo depois da fazenda era uma terra selvagem, e Thor, Loki e Thjálfi viajaram para o leste, na direção de Jötunheim, o lar dos gigantes, e do mar.

Quanto mais avançavam, mais frio ficava. Ventos congelantes sopravam, drenando todo o calor de seus corpos. Pouco antes do pôr do sol, quando ainda havia luz suficiente para enxergar, os três procuraram abrigo para a noite. Thor e Thjálfi nada encontraram. Loki levou mais tempo na busca. E voltou com uma expressão intrigada.

— Tem uma casa estranha para aqueles lados — revelou.

— Estranha como? — perguntou Thor.

— É só um grande salão. Não tem janelas, e o portal é enorme, mas não há porta. Parece uma enorme caverna.

O vento frio tirava a sensibilidade dos dedos e açoitava o rosto dos três.

— Temos que ir lá olhar — disse Thor.

O salão ficava a uma boa distância.

— Pode haver feras ou monstros por lá — comentou o deus. — Vamos nos instalar perto da entrada.

E fizeram exatamente isso. Era bem como Loki tinha descrito: uma enorme construção, um grande salão com outro salão comprido de um dos lados. Eles acenderam uma fogueira perto da entrada e dormiram ali por cerca de uma hora, até acordarem com um barulho.

— O que foi isso? — indagou Thjálfi.

— Um terremoto? — sugeriu Thor.

O chão tremia. Eles ouviram um rugido. Pode ter sido um vulcão, uma avalanche enorme, ou uma centena de ursos furiosos.

— Acho que não — interveio Loki. — Vamos para o salão lateral. Por precaução.

Loki e Thjálfi dormiram no salão lateral, e o barulho de rugido-avalanche continuou até o amanhecer. Thor ficou posicionado diante da porta principal a noite inteira, segurando o martelo. Ele foi ficando mais irritadiço com o passar do tempo, só pensava em explorar e atacar fosse lá o que estivesse rugindo e sacudindo a terra. Assim que o céu começou a clarear, Thor deixou seus companheiros dormindo e adentrou a floresta em busca da origem do barulho.

Com o tempo, percebeu que eram sons diferentes que ocorriam em sequência. Primeiro, um rugido estrondoso, seguido de um zumbido, depois o que parecia um silvo mais delicado, agudo o suficiente para fazer a cabeça e os dentes de Thor doerem a cada vez que soava.

O deus chegou ao alto de uma colina e olhou para baixo.

Estendido no vale havia a maior pessoa que Thor já vira em toda a vida. O cabelo e a barba eram mais negros que carvão, e a pele tão branca quanto um campo de neve. Os olhos do gigante estavam fechados, e ele roncava: esse era o rugido, o zumbido e o silvo que Thor ouvia. Toda vez que o gigante roncava, o chão tremia. Era o abalo de terra que tinham sentido à noite. O gigante era tão grande que, em comparação, Thor podia ser um besouro ou uma formiga.

O deus levou a mão ao cinturão de força, Megingjord, e o apertou firme, dobrando sua força para se assegurar de que seria forte o bastante para enfrentar até mesmo o maior dos gigantes.

Enquanto observava, o gigante abriu os olhos — eram de um tom de azul gélido penetrante. O gigante, porém, não pareceu oferecer ameaça.

— Olá — cumprimentou Thor.

— Bom dia! — estrondou o gigante de cabelo negro, em uma voz que parecia uma avalanche. — Sou Skrymir. Significa "grandalhão". Meus colegas são sarcásticos, gostam de chamar um baixinho como eu de grande, mas o que posso fazer? Você viu minha luva? Eu tinha duas ontem à noite, mas deixei uma delas cair. — Ele ergueu as mãos: a direita estava coberta por uma grande luva de couro parecida com uma luva de forno. A outra estava nua. — Ah, achei!

O gigante esticou a mão até o outro lado do monte que Thor escalara e pegou o que obviamente era a outra luva.

— Estranho. Tem alguma coisa aqui dentro — comentou, sacudindo a luva.

Thor reconheceu o abrigo em que ficara na noite anterior, e Loki e Thjálfi caíram rolando da boca da luva e aterrissaram na neve abaixo.

Skrymir calçou a luva esquerda e olhou satisfeito para as mãos enluvadas.

— Podemos viajar juntos — sugeriu o gigante. — Se vocês quiserem.

Thor olhou para Loki, e Loki olhou para Thor, e os dois olharam para o jovem Thjálfi, que deu de ombros.

— Eu consigo acompanhar o ritmo — disse o rapaz, confiante em sua velocidade.

— Muito bem! — gritou Thor.

Eles tomaram o desjejum com o gigante, que sacava vacas e carneiros inteiros da bolsa e os devorava ruidosamente. Os três companheiros comiam menos. Depois da refeição, Skrymir disse:

— Posso carregar as provisões de vocês na minha bolsa. É menos peso para vocês, e podemos comer juntos quando acamparmos à noite.

O gigante guardou a comida dos três na bolsa, amarrou os cadarços e saiu andando para o leste.

Thor e Loki correram atrás dele no ritmo incansável dos deuses. Thjálfi corria mais rápido do que qualquer homem já correu, mas com o passar das horas até ele achou difícil acompanhar, e às vezes parecia que o gigante era só mais uma montanha ao longe, a cabeça perdida nas nuvens.

Alcançaram Skrymir ao entardecer. Ele montara acampamento sob um grande carvalho e arrumara um lugar confortável para si ali perto, repousando a cabeça em um enorme rochedo.

— Não estou com fome — anunciou. — Não se preocupem comigo. Vou dormir cedo. Suas provisões estão na minha bolsa, encostada na árvore. Boa noite.

O gigante começou a roncar. Os rugidos, zumbidos e silvos familiares abalaram as árvores, e Thjálfi escalou a bolsa de provisões do gigante. Ele chamou Thor e Loki, mais abaixo.

— Não consigo desamarrar. O nó é forte demais para mim. Poderia muito bem ser feito de ferro.

— Eu consigo dobrar ferro — retrucou Thor, então saltou até o alto da bolsa de provisões e começou a puxar as amarras.

— E então? — perguntou Loki.

Thor grunhia e puxava, puxava e grunhia. Até que deu de ombros.

— Acho que vamos ficar sem jantar esta noite — comentou. — A não ser que esse maldito gigante desamarre a bolsa para nós.

Ele olhou para o gigante. Depois olhou para Mjölnir, seu martelo. Então desceu da bolsa e foi até o topo da cabeça adormecida de Skrymir. Ergueu o martelo e golpeou a testa do gigante.

Skrymir abriu um olho, sonolento.

— Acho que uma folha caiu na minha testa e me acordou — comentou. — Vocês já acabaram de comer? Estão prontos para dormir? Não posso culpá-los se estiverem. Foi um longo dia.

Ele rolou para o lado, fechou os olhos e voltou a roncar.

Loki e Thjálfi conseguiram pegar no sono apesar do barulho, mas Thor não dormiu. Estava com raiva, com fome e não confiava naquele gigante que encontrara em meio às terras selvagens do leste. À meia-noite, continuava com fome e não aguentava mais o ronco de Skrymir. Voltou a escalar a cabeça do gigante e se posicionou entre suas sobrancelhas.

Thor cuspiu nas mãos. Ajustou o cinturão de força. Ergueu Mjölnir acima da cabeça. E golpeou com toda a força. Tinha certeza de que o martelo afundara na testa de Skrymir.

Estava escuro demais para ver a íris dos olhos do gigante, mas as pálpebras se abriram.

— Uau — comentou o sujeito enorme. — Thor? É você? Acho que caiu uma bolota de carvalho na minha cabeça. Que horas são?

— É meia-noite — respondeu Thor.

— Bem, então nos vemos de manhã.

Roncos gigantescos voltaram a abalar o chão e fazer tremer o topo das árvores.

Amanhecia, mas ainda não era dia, quando Thor, mais faminto, mais irritado e insone, resolveu dar o golpe que silenciaria aquele ronco para sempre. Dessa vez, mirou a têmpora do gigante e acertou Skrymir com toda a sua força. Nunca deu um golpe tão poderoso. Thor o ouviu ecoar pelas montanhas.

— Sabe — disse Skrymir —, acho que um ninho de passarinho caiu na minha cabeça. Gravetos... Algo assim. — Ele bocejou e se espreguiçou. Então se levantou. — Bom, já descansei o bastante. É hora de ir andando. Vocês três estão indo para Utgard? Vão cuidar bem de vocês, por lá. Posso garantir que terão um grande banquete e chifres de cerveja, depois lutas, corridas e disputas de força. Os habitantes de Utgard sabem se divertir. Fica no leste, é só seguir naquela direção, onde o céu já está iluminado. Quanto a mim, eu vou para o norte.

O gigante abriu um sorriso, revelando dentes da frente separados. O gesto teria parecido tolo e sem sentido se seus olhos não fossem tão azuis e penetrantes.

Então se inclinou para a frente e pôs a mão ao lado da boca, como se não quisesse ser ouvido — efeito anulado por seu sussurro, alto o suficiente para ensurdecer qualquer um.

— Não consegui evitar ouvir vocês há pouco, comentando como eu era grande. Suponho que seja um elogio. Mas se os três um dia forem para o norte, vão ver gigantes de verdade, sujeitos realmente grandes. E vão descobrir como na verdade sou bem baixinho.

Skrymir deu outro sorriso e saiu andando para o norte, e o chão trovejou sob seus pés.



III

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Durante alguns dias, eles viajaram para o leste, cruzando Jötunheim, seguindo sempre na direção do sol nascente.

A princípio, achavam que o que viam era uma fortaleza de tamanho normal a uma distância relativamente curta, então apressaram o passo. Mas a fortaleza não aumentava, nem mudava ou parecia mais próxima. Com o passar dos dias, entenderam quão grande era a construção, e como estava distante.

— Ali fica Utgard? — perguntou Thjálfi.

Loki pareceu quase sério ao dizer:

— É. Foi de lá que veio a minha família.

— Você já visitou esse lugar?

— Não.

Os três caminharam até o portão da fortaleza sem ver ninguém. Ouviam o que parecia uma festa acontecendo no interior. O portão era mais alto do que o de muitas catedrais. Era coberto por barras de metal de um tamanho que teria mantido qualquer gigante indesejado a uma distância respeitável.

Thor gritou, mas ninguém respondeu ao chamado.

— Vamos entrar? — perguntou ele a Loki e Thjálfi.

Os três se abaixaram e passaram por baixo das barras do portão. Os viajantes cruzaram o pátio e adentraram o grande salão. Gigantes estavam sentados em bancos altos como copas de árvore. Thor entrou a passos largos. Thjálfi estava aterrorizado, mas caminhava ao lado de seu mestre, e Loki seguia atrás deles.

Viram o rei dos gigantes sentado na cadeira mais alta, no fundo do salão. Cruzaram o aposento e fizeram uma grande reverência.

O rei tinha o rosto estreito, olhar astuto e cabelo vermelho cor de fogo. Seus olhos eram de um azul gélido. Ele encarou os viajantes e ergueu uma sobrancelha.

— Minha nossa, uma invasão de bebês minúsculos. Não, estou enganado. Você deve ser o famoso Thor dos Aesir, o que significa que você deve ser Loki, filho de Laufey. Conheci sua mãe, mas não éramos amigos. Olá, parente distante. Eu sou Utgardaloki, o Loki de Utgard. E você é?

— Thjálfi — respondeu Thjálfi. — Sou escravo de Thor.

— Sejam todos bem-vindos a Utgard — disse Utgardaloki. — O melhor lugar do mundo para todos os notáveis. Qualquer um superior a todos os outros no mundo em habilidade ou astúcia é bem-vindo aqui. Algum de vocês sabe fazer algo especial? Que tal você, pequeno parente? Qual é seu talento único?

— Consigo comer mais rápido que qualquer um — disse Loki, em um tom humilde.

— Que interessante. Eis aqui meu servo. O nome dele é, que ironia, Logi. Aceitaria entrar em uma competição de comida com ele?

Loki deu de ombros, como se a disputa lhe fosse indiferente.

Utgardaloki bateu palmas, e uma enorme travessa de madeira foi trazida para o salão, contendo todo tipo de animais assados: gansos, bois, carneiros, bodes, coelhos e veados. Quando ele bateu palmas outra vez, Loki começou a comer, iniciando na extremidade mais distante e seguindo para o interior do enorme prato.

Ele comeu com determinação, comeu como um louco, comeu como se só tivesse um objetivo na vida: comer tudo o que pudesse o mais rápido possível. Suas mãos e sua boca pareciam um borrão.

Logi e Loki se encontraram no centro da travessa.

Utgardaloki olhou do alto de seu trono.

— Bem, vocês dois comeram na mesma velocidade, nada mal! — constatou. — Mas Logi comeu os ossos. E, nossa, parece que também comeu a travessa de madeira em que os assados foram servidos. Loki comeu toda a carne, é verdade, mas mal tocou nos ossos, e nem começou com a travessa. Então a rodada vai para Logi.

Utgardaloki olhou para Thjálfi.

— Você, garoto, o que sabe fazer?

Thjálfi deu de ombros. Era a pessoa mais rápida de que já tinha ouvido falar. Podia ser mais rápido que coelhos assustados, mais rápido que um pássaro voando. Então disse apenas:

— Eu corro.

— Então correr é o que você fará.

Todos foram para o lado de fora da fortaleza, onde encontraram, em uma área plana de solo, uma pista perfeita para corrida. Vários gigantes estavam parados ao lado da pista, esfregando as mãos e soprando-as para aquecê-las.

— Você é apenas um garoto, Thjálfi — disse Utgardaloki. — Então não vou fazer com que corra contra um homem adulto. Onde está o pequeno Hugi?

Uma criança gigante se adiantou, tão magra que podia nem mesmo estar ali, e não muito maior que Loki ou Thor. A criança olhou para Utgardaloki e nada disse, mas sorriu. Thjálfi não sabia ao certo se o garoto estava ali antes de ser chamado, mas estava ali naquele momento.

Hugi e Thjálfi esperaram lado a lado na linha de partida.

— Já! — gritou Utgardaloki, em uma voz que retumbou como um trovão, e os garotos começaram a correr.

Thjálfi correu como nunca, mas viu Hugi tomar a dianteira e chegar à linha de chegada quando mal estava a meio caminho.

— A vitória é de Hugi — anunciou Utgardaloki. Então se agachou ao lado de Thjálfi. — Você vai ter que correr mais rápido se quiser derrotar Hugi. Mas, mesmo assim, nunca vi um humano correr tão bem. Corra mais rápido, Thjálfi.

O rapaz foi outra vez para o lado de Hugi na linha de partida. Thjálfi estava ofegante, o coração pulsando nos ouvidos. Sabia que correra muito rápido, mas ainda assim Hugi fora o vencedor — e o pequeno gigante não parecia nada cansado. Nem sequer respirava com dificuldade. Hugi olhou para Thjálfi e sorriu outra vez. Algo nele o lembrou Utgardaloki, e o rapaz se perguntou se a criança gigante era filho do rei dos gigantes.

— Já!

Eles correram. Thjálfi correu como nunca tinha corrido na vida, as pernas movendo-se tão rápido que era como se apenas ele e Hugi existissem no mundo. Mas Hugi manteve a dianteira por todo o percurso. A criança gigante cruzou a linha de chegada quando Thjálfi estava a cinco, talvez dez segundos de distância.

Thjálfi sabia que estivera muito perto de vencer daquela vez, e sabia que, se desse tudo de si na próxima, podia ganhar.

— Vamos correr outra vez — pediu, arfando.

— Muito bem — concordou Utgardaloki. — Pode correr outra vez. Você é rápido, meu rapaz, mas acredito que seja impossível vencer. Mesmo assim vamos deixar que a corrida final decida o resultado.

Hugi foi até a linha de partida. Thjálfi parou a seu lado. Não conseguia nem ouvir a respiração do gigante.

— Boa sorte — disse Thjálfi.

— Desta vez você vai me ver correr mesmo — anunciou Hugi, com uma voz que parecia soar na mente de Thjálfi.

— Já! — gritou Utgardaloki.

Thjálfi correu como nenhum homem vivo jamais correra. Correu como um falcão-peregrino mergulha para capturar a caça, correu como o vento de uma tempestade, correu como Thjálfi, e ninguém nunca correu como Thjálfi, nem antes, nem depois.

Mas Hugi tomou a dianteira sem dificuldade, movendo-se mais rápido que nunca. Antes que Thjálfi chegasse à metade da pista, Hugi cruzara a linha de chegada e começara a fazer o caminho de volta.

— Chega! — exclamou Utgardaloki.

Eles voltaram para o grande salão. O clima entre os gigantes estava mais relaxado, mais jovial. O rei dos gigantes se pronunciou:

— Ah, bem, o fracasso desses dois talvez seja compreensível. Mas agora... Ah, agora veremos algo que nos deixará impressionados. Agora é a vez de Thor, o deus do trovão, o mais poderoso dos heróis. Thor, cujas façanhas são cantadas pelos nove mundos. Deuses e mortais contam histórias sobre seus feitos. Vai nos mostrar o que pode fazer?

Thor o encarou.

— Para começar, posso beber. Não há bebida que eu não consiga tomar até o fim. Utgardaloki pensou um pouco.

— Claro. Onde está o portador dos meus copos? — O gigante se apresentou.

— Traga meu chifre especial.

O portador dos copos assentiu e saiu, voltando momentos depois com um chifre comprido. Era mais comprido que qualquer chifre que Thor já vira, mas ele não se preocupou. Afinal, era Thor, e não havia chifre de bebida que ele não fosse capaz de esvaziar. Runas e padrões haviam sido gravados na lateral do chifre, e o bocal era feito de prata.

— É o chifre de beber deste castelo — explicou Utgardaloki. — Todos daqui já o esvaziaram, cada um a seu tempo. Os mais fortes e poderosos de nós o bebem de uma só vez. Alguns, admito, precisam de duas visitas ao bocal. Tenho orgulho de anunciar que não há ninguém neste salão tão fraco e decepcionante que tenha precisado de três.

Era um chifre comprido, mas Thor era Thor, então levou o chifre cheio aos lábios e começou a beber. A cerveja dos gigantes era fria e salgada, mas ele bebeu, drenando o chifre, engolindo até perder o fôlego.

Esperava ver o chifre vazio, mas continuava tão cheio, ou quase tão cheio, quanto quando ele começara.

— Fui levado a crer que você era melhor nisso — comentou Utgardaloki, em um tom seco. — Ainda assim, sei que pode terminá-lo em um segundo gole, como todos aqui.

Thor respirou fundo e levou os lábios ao chifre, então bebeu profundamente, e bebeu bem. Sabia que devia ter esvaziado o chifre daquela vez, mas, ainda assim, quando tirou o chifre dos lábios, o nível do líquido só diminuíra um dedo.

Os gigantes olharam para Thor e começaram a zombar, mas o deus do trovão os encarou, então eles fizeram silêncio.

— Ah, então os feitos do poderoso Thor são apenas histórias — comentou Utgardaloki. — Bem, mesmo assim, vamos permitir que você termine o chifre na terceira tentativa. Não deve restar muito aí dentro, afinal.

Thor levou o chifre aos lábios e bebeu, bebeu como um deus bebe, bebeu por tanto tempo e tão profundamente que Loki e Thjálfi ficaram só olhando, impressionados.

Mas, quando baixou o chifre, a cerveja tinha descido só mais um dedo.

— Para mim, chega! — anunciou Thor. — Não estou convencido de que isso seja apenas um pouquinho de cerveja.

Utgardaloki fez com que o portador dos copos levasse o chifre embora.

— É hora de um teste de força. Você consegue levantar um gato? — perguntou o rei dos gigantes.

— Que pergunta é essa? É claro que consigo levantar um gato — retrucou Thor.

— Bem, todos vimos que você não é tão forte quanto pensávamos. Os jovens de Utgard testam sua força erguendo minha gata. Mas preciso alertá-lo: você é menor que qualquer um de nós aqui, e minha gata é uma gata gigante, então será compreensível se você não conseguir.

— Vou levantar seu gato.

— Ela deve estar dormindo junto ao fogo — disse Utgardaloki. — Vamos lá.

A gata estava mesmo dormindo, mas despertou quando eles entraram no aposento. Era cinza e do tamanho de um homem, mas Thor era mais poderoso que qualquer homem, e envolveu a barriga do animal com as mãos e tentou levantá-lo, decidido a erguê-lo bem acima da cabeça. A gata não pareceu impressionada: arqueou as costas, se esticando, e forçou Thor a se esticar ao máximo.

Thor não seria derrotado naquela simples brincadeira de levantar um gato. Ele empurrou e fez força, e, depois de algum tempo, uma das patas do gato foi erguida do chão.

Thor, Thjálfi e Loki ouviram um ruído ao longe, como de rochas enormes colidindo: o trovejar de dor de montanhas enormes.

— Basta — disse Utgardaloki. — Não é culpa sua não conseguir levantar meu gato, Thor. É um gato grande, e você é, na melhor das hipóteses, um sujeitinho mirrado em comparação a qualquer um de nossos gigantes.

O rei sorriu.

— Sujeitinho mirrado? — repetiu Thor. — Ora, posso lutar contra qualquer um de vocês...

— Depois do que vimos aqui, acho que eu seria um péssimo anfitrião se deixasse você lutar contra um gigante de verdade. Você pode se machucar. E acredito que nenhum de meus homens lutaria contra alguém que não consegue esvaziar meu chifre de beber, que não conseguiu nem erguer minha gata! Mas vou lhe dizer o que podemos fazer. Se quer lutar, vou deixar que lute contra minha velha mãe de criação.

— Sua mãe de criação?

Thor estava incrédulo.

— Ela é velha, é verdade. Mas foi quem me ensinou a lutar, muito tempo atrás, e duvido que tenha esquecido como se faz. Ela está encolhida pela idade, então a altura é próxima da sua. E está acostumada a brincar com crianças. — Então, reparando na expressão no rosto de Thor, o rei dos gigantes completou: — O nome dela é Elli, e já a vi derrotar homens que pareciam mais fortes que você. Não fique confiante demais, Thor.

— Eu preferia lutar contra um de seus homens. Mas vou lutar com sua velha ama.

Mandaram chamar a velha, e ela veio: tão frágil, tão pálida, tão encarquilhada e enrugada que parecia prestes a ser levada pela brisa. Era uma gigante, é verdade, mas era só um pouco mais alta que Thor. Tinha cabelo fino e ralo na cabeça envelhecida. Thor se perguntou quantos anos aquela mulher teria. Parecia mais velha que qualquer um que ele já tivesse encontrado. Não queria machucá-la.

Os dois se posicionaram. O primeiro a derrubar o outro ganharia. Thor empurrou a velha e a puxou, tentou movê-la, derrubá-la, forçá-la para baixo, mas era como se a velha fosse feita de rocha. Ela o encarava o tempo inteiro com seus olhos velhos sem cor, sem nada dizer.

Então a velha estendeu a mão e tocou Thor com delicadeza na perna. O deus sentiu a perna perder a firmeza no lugar onde ela o tocara e a empurrou para se afastar, mas a velha o envolveu com os braços e o forçou para o chão. Thor resistiu com toda a força que tinha, mas foi inútil, e o deus logo se viu forçado a dobrar um joelho...

— Pare! — gritou Utgardaloki. — Já vimos o suficiente, poderoso Thor. Você não consegue nem derrotar minha velha mãe de criação. Acho que nenhum de meus homens vai querer lutar contra você.

Thor olhou para Loki, e os dois olharam para Thjálfi. Estavam sentados ao lado de uma grande fogueira, e os gigantes os receberam com hospitalidade — a comida era boa, e o vinho era menos salgado que a cerveja do gigantesco chifre de beber —, mas falavam menos do que o habitual para uma festa.

Os três estavam quietos e se sentiam desconfortáveis e humilhados pela derrota.

Deixaram a fortaleza de Utgard ao amanhecer, e o próprio rei dos gigantes caminhou a seu lado quando partiram.

— E então? Gostaram da estadia em meu lar?

Os três o encararam com tristeza.

— Não muito — respondeu Thor. — Sempre me orgulhei de ser poderoso, mas agora me sinto um nada, um ninguém.

— Achei que eu corria rápido... — comentou Thjálfi.

— E eu nunca fui derrotado em uma competição de comida — completou Loki.

Eles passaram pelos portões que marcavam o fim da fortaleza de Utgardaloki.

— Sabem — começou o gigante —, não é que vocês sejam ninguém. E nem que sejam nada. Honestamente, se na noite passada eu soubesse o que sei hoje, nunca os teria convidado para meu lar. E vou tomar o cuidado de me assegurar que vocês nunca mais sejam convidados. Sabem, eu enganei vocês, todos vocês, com ilusões.

Os viajantes encararam o gigante, que abriu um sorriso para eles.

— Vocês se lembram de Skrymir?

— O gigante? É claro.

— Era eu. Usei uma ilusão para me tornar grande daquele jeito e mudar minha aparência. Os cadarços da bolsa de provisões eram atados com arame de ferro inquebrável e só podiam ser desamarrados com magia. Quando você me acertou com o martelo, Thor... Bem, enquanto eu fingia dormir, sabia que até o mais leve de seus golpes seria minha morte, então usei magia para pegar uma montanha e colocá-la invisível entre o martelo e minha cabeça. Olhe lá.

Ao longe, viram uma montanha com vales fundos ao longo da superfície. Três vales quadrados, o último mais fundo que todos.

— Aquela foi a montanha que usei — explicou Utgardaloki. — Aqueles vales são seus golpes.

Thor não respondeu, mas seus lábios se comprimiram, as narinas se dilataram, e a barba ruiva coçou.

— Quero saber sobre ontem à noite, no castelo — pediu Loki. — Aquilo também foi ilusão?

— Claro que foi. Já viram um incêndio na mata avançando vale abaixo, queimando tudo em seu caminho? Você acha que come rápido, Loki, mas nunca comerá tão rápido quanto Logi, pois Logi é a encarnação do fogo, e devorou a comida e a travessa com suas chamas. Nunca vi ninguém que comesse tão rápido quanto você.

Os olhos verdes de Loki brilharam de raiva e admiração. (Ele adorava tanto um bom truque quanto detestava ser enganado.)

Utgardaloki virou-se para Thjálfi.

— Quão rápido você consegue pensar, garoto? Consegue pensar mais rápido do que é capaz de correr?

— Claro. Consigo pensar mais rápido do que qualquer coisa.

— E foi por isso que eu o fiz correr contra Hugi, que é o pensamento. Não importa a velocidade com que você corra, e nunca nenhum de nós viu alguém correr como você, Thjálfi, mas é impossível ser mais rápido que o pensamento.

Thjálfi não respondeu. Queria dizer alguma coisa, protestar ou fazer mais perguntas, mas Thor se pronunciou, em um ribombar baixo como um trovão ecoando em uma montanha distante.

— E eu? O que eu realmente fiz noite passada?

Utgardaloki não estava mais sorrindo.

— Um milagre. Você fez o impossível. Você não percebeu, mas a ponta do chifre estava na parte mais funda do oceano. Você bebeu o suficiente para reduzir o nível do mar, para provocar marés. Por sua causa, Thor, a água do mar vai subir e baixar para sempre. Fiquei aliviado quando você não tentou tomar um quarto gole: poderia ter secado o oceano.

"O gato que tentou erguer não era um gato. Era Jörmungund, a serpente de Midgard, a cobra que envolve o centro do mundo. É impossível levantar a serpente de Midgard, mas ainda assim você o fez, a ponto de afrouxar uma de suas voltas quando ergueu a pata do chão. Lembram-se do ruído que ouvimos? Aquele foi o som da terra se movendo.

— E a velha? — perguntou Thor. — Sua velha ama? O que ela era? — Sua voz estava bem tranquila, mas ele segurava o cabo do martelo.

— Aquela era Elli, a velhice. Ninguém pode vencer a velhice, porque, no fim, ela derrota todos nós, deixa-nos cada vez mais fracos até fechar nossos olhos para sempre. Todos nós, menos você, Thor. Você lutou contra a velhice, e todos ficamos maravilhados por você ter permanecido de pé. Mesmo quando ela estava com a vantagem, você apenas dobrou um joelho. Nunca vimos nada como o que aconteceu ontem à noite, Thor. Nunca.

"E, agora que vimos seu poder, sabemos como fomos tolos em deixar que chegassem a Utgard. Planejo defender minha fortaleza no futuro, e o melhor modo de defendê-la é me assegurar de que nenhum de vocês jamais encontre Utgard, ou a veja, outra vez. Quero ter certeza de que, aconteça o que acontecer nos dias vindouros, nenhum de vocês jamais retornará.

Thor ergueu o martelo bem acima da cabeça, mas, antes que pudesse dar o golpe, Utgardaloki desapareceu.

— Vejam! — disse Thjálfi.

A fortaleza tinha sumido. Não havia traço do baluarte de Utgard nem do local onde ele ficava. Os três viajantes estavam parados em uma planície de gelo desolada, sem nenhum sinal de qualquer tipo de vida.

— Vamos para casa — disse Loki. E completou: — Foi tudo muito bem-feito. Ilusões brilhantemente aplicadas. Acho que todos nós aprendemos uma lição hoje.

— Vou contar à minha irmã que corri contra o pensamento — comentou Thjálfi. — E vou contar a Röskva que corri bem.

Mas Thor não respondeu. Estava pensando na noite anterior, em como lutara contra a velhice e bebera o mar. Estava pensando na serpente de Midgard.



Fonte: GAIMAN, Neil. Mitologia nórdica. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

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