Narciso, por Yves-Alain Favre
A origem do personagem e da gênese do mito continuam para nós desconhecidas. Desde sua primeira aparição nas Metamorfoses de Ovídio, a lenda de Narciso se apresentou perfeitamente constituída e possuindo já uma significação mítica.
Narciso nasce dos amores do rio Cefiso e da ninfa Liríope (rio da Beócia). Sua mãe, dotada de rara beleza, logo depois do nascimento de Narciso deseja saber se ele viverá muito tempo. Ela interroga o vidente Tirésias, que lhe responde: "Sim, se ele jamais se conhecer."
Muito belo mas muito orgulhoso, o jovem e selvagem Narciso permanece insensível ao amor. Durante uma caçada, a ninfa Eco toma-se de amores por ele; segue-o apaixonadamente, mas não declara seus sentimentos pois ela jamais pode ser a primeira a falar. Narciso recusa suas demonstrações de afeto:
— Retire estas mãos que me enlaçam — diz Narciso à ninfa Eco. — Antes morrer do que entregar-me a você.
Ele já havia desprezado e repelido outras ninfas. Uma delas, então, suplica à deusa Nêmesis para que ela intervenha e castigue a frieza de Narciso:
— Que também possa ele amar e jamais possuir o objeto de seu amor! — demanda a ninfa.
Certa vez, no campo, Narciso aproxima-se de uma fonte límpida que nunca homem ou animal algum havia tocado, rodeada por uma erva fresca e macia. Por instantes ele descansa, mas sentindo vontade de beber, debruça-se sobre a água para matar a sede. Percebe, então, sua imagem e imediatamente apaixona-se por ela.
Ele contempla seus olhos, dois astros, a cabeleira digna de Baco e Apolo, as bochechas lisas, o pescoço de marfim, a boca graciosa e a pele que une o brilho do cobre à brancura da neve.
Sem saber, deseja a si mesmo. Consumido por este fogo interior, esquece de comer e dormir, e logo começa a definhar. Quando se dá conta de que ama a própria imagem e está apaixonado por si mesmo, deseja morrer.
Uma vez morto, Náiades e Dríades choram-no enquanto preparam seu funeral. Mas, subitamente, reparam que seu corpo desapareceu. No lugar dele, acha-se uma flor cujo centro da cor do açafrão é rodeado por pétalas brancas: o narciso.
O sentido original do mito é facilmente depreendido: ele ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter recusado a amar alguém.
O mito aflora aqui e ali na literatura da Idade Média. O Lai de Narcissus (1160-1165), curto romance versificado, inspira-se diretamente em Ovídio, mas insiste no tema da morte por amor. A ninfa Eco, transformada na princesa Dané, morre de dor ao saber da morte do belo e indiferente jovem. Já o sentido do mito evolui de certo modo, pois passa a mostrar o poder do amor.
Assim, Bernard de Ventadour, na Chanson de l'Alouette (Canção da Cotovia), ama sem esperança; aquela nos olhos de quem ele um dia mirou-se, não sente nada por ele:
Espelho, depois de me ter mirado em ti, meus profundos suspiros me matam; e estou perdido, como se perdeu o belo Narciso na fonte.
A primeira parte do Roman de la Rose (Romance da Rosa), escrita por Guillaume de Lorris (1225-1230), mostra o poeta que penetra no jardim de Déduit e chega perto de uma fonte. Uma inscrição o põe a par de que se trata do lugar onde Narciso encontrou a morte. Ele se lembra então da história: desdenhoso da ninfa Eco, Narciso recusou-se a amá-la e esta clamou a uma divindade por vingança; Narciso apaixonou-se por sua imagem e ficou louco de desespero. Temerosamente, o poeta aproxima-se da fonte, onde tudo se reflete às maravilhas; lá, ele vê duas pedras de cristal e um ramalhete de rosas. Transparente a alegoria: todo aquele que se debruçar sobre o "perigoso espelho" fatalmente verá o reflexo de algum objeto que o porá no caminho do amor.
No final do século XIX, no auge do simbolismo, o mito adquire extrema importância. A primeira obra que André Gide publica, Le Traité du Surelsse (O tratado do Narciso), fez com que a significação do mito fosse bastante atualizada. Inicialmente, Gide pinta um Narciso inquieto e hesitante, corroído pelo tédio. Depois, louco de vontade de poder contemplar-se, ele parte em busca de um espelho e "para à margem do rio do tempo".
Maravilhosas fantasmagorias passam diante dele, vindas do futuro e sumindo no passado: "Por que tantas? Ou por que as mesmas? Elas são, então, imperfeitas, já que sempre recomeçam..." Narciso solha agora com o Paraíso, onde tudo tem uma perfeição estável e harmoniosa.
Gide introduz aí mito de Adão: o andrógino primitivo acaba cansando-se de olhar a magia das formas do mundo; deseja se ver e ousa quebrar um ramo da árvore Ygdrasil. Logo, Adão se desfaz; a harmonia foi rompida e estará daí por diante incompleta; o homem, inutilmente, continuará para sempre buscando o paraíso perdido.
Narciso simboliza o poeta que, atrás das aparências imperfeitas, deseja descobrir os arquétipos e as essências; a água representa a obra de arte "pura — paraíso parcial onde a ideia refloresce em sua pureza superior". De tanto contemplar os reflexos do mundo, Narciso acaba vendo a própria imagem e apaixona-se por ela. Mas percebe que esse amor é impossível:
Não se deve desejar uma imagem; um gesto para possuí-la a esfacela. Ele está só. — Que fazer? Contemplar.
Narciso não pode preferir-se ao mundo.
A mesma concepção se encontra no Discours sur la Mort de Narcisse ou l'Impérieuse Métamorphose (Discurso sobre a morte de Narciso ou a imperiosa metamorfose, 1895), de Saínt-Georges de Bouhélier. O autor transforma um pouco a lenda: Narciso admira tanto sua imagem que passa a desdenhar qualquer mulher, pois "se acha tão maravilhoso que julga impossível encontrar alguém mais belo".
Mas Bouhélier passa rapidamente por cima disso, pois considera esse um episódio insosso. Prefere chamar a atenção para a metamorfose final de Narciso, para a figura do jovem que não soube ver e apreciar os esplendores da natureza, que se afasta dela para ficar na contemplação exclusiva de sua própria pessoa. Uma vez metamorfoseado em flor de ouro, ele passa a lamentar seu erro e deseja transformar-se sucessivamente numa erva, num seixo, numa fonte, numa folha. Semelhante a Narciso, o poeta deve lembrar:
Aquilo que ele [o poeta] adora através da Natureza é, antes de mais nada, apenas a sua Sombra. ... Se ele afastar-se da Terra, enfatuado e apóstata, será castigado por ela.
Por isso, o poeta deve esquecer-se de si mesmo e olhar com amor a Natureza: que ele morra para si a fim de renascer nesta flor que é a obra poética. É essa a mensagem do naturalismo, pregada por Saint-Georges de Bouhélier.
O mito de Narciso constitui uma verdadeira "autobiografia poética" do poeta Paul Valéry. Já em 1890, Valéry escrevia um soneto sobre Narciso onde ele sofre com seu desditoso amor por si mesmo:
Pois eu me amo!...
ó irônico reflexo meu.
Em 1891, no poema Narcisse Parle (Narciso Fala), o mesmo tema é desenvolvido por Valéry: Narciso sofre inutilmente por amar a si mesmo; adora o reflexo de seu corpo, mas chora por ter de viver na solidão. Sem a fonte, Narciso jamais poderia ter admirado sua imagem: para que surja a consciência de si, a natureza é necessária.
Ao mesmo tempo, o ego se revela inesgotável. Mas ele se ressente dos limites que lhe impõe a fonte. Valéry opõe-se dessa maneira ao sentido tradicional do mito, que considera como um erro o amor por si mesmo. Os amantes, com efeito, permanecem separados e estranhos um ao outro, ao passo que Narciso conhece a felicidade da plenitude:
Oh meu querido corpo, bem soberano, só tenho a ti!
O mais belo dos mortais só pode querer a si mesmo...
Só se pode querer a si mesmo:
Eu amo... Eu amo!... E quem pode então amar uma coisa
Que não seja ele próprio?...
Mas Narciso sabe que a fusão entre ele e seu reflexo, entre o ser profundo e a aparência efêmera, jamais será possível. A noite desce, a morte está próxima, o beijo dado na imagem a espedaça; Narciso deve desaparecer também.
Depois de ter mostrado o poder de Nêmesis que castiga aqueles que pretendem escapar do destino usual, o mito de Narciso pintou o imperioso poder do amor. A geração que sucede o simbolismo finalmente acabou decifrando isso, além da complacência do homem para consigo mesmo, "o erro de Narciso" (valendo-nos aqui das palavras de Louis Lavelle), que despreza as belezas do universo e prefere a contemplação de si mesmo. Ela viu o conflito da identidade e da dualidade na natureza humana.
Fonte:
FAVRE, Yves-Alain. Narciso. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2005.