Lilith, antes de Eva - O Mito da Primeira Mulher da Criação | Fantástica Cultural

Artigo Lilith, antes de Eva - O Mito da Primeira Mulher da Criação

Lilith, antes de Eva - O Mito da Primeira Mulher da Criação

Autores Selecionados ⋅ 27 mar. 2021
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Criada antes de Eva, do mesmo barro com que foi feito Adão, Lilith rejeitou o papel de companheira fiel determinado por Deus. Expulsa do paraíso, tornou-se rainha do caos e da noite, admirada por sua determinação e independência, mas temida pelas artimanhas cruéis de sua sexualidade.

Lilith, por Brigitte Couchaux

Lilith - Pintura de John Collier
Lilith - Pintura de John Collier

Este mito, ligado aos grandes mitos da criação, tem origens longínquas, situadas na velha Babilônia, entre os antigos semitas e suas crenças adotadas dos sumérios, seus predecessores. Laços estreitos unem o mito ao da serpente: lembranças de um culto muito antigo que honrava uma Grande Deusa chamada também de a "Grande Serpente" e "Dragão", potência cósmica do Eterno Feminino adorada sob o nome de Astarteia, Istar ou Ishtar, Mylitta, Innini ou Innana.

Inscrições descobertas nas ruínas da Babilônia (Biblioteca de Assurbanipal) esclarecem as origens de Lilith, cortesã sagrada de Innana, a Grande Deusa Mãe, enviada por esta última para seduzir os homens na rua e levá-los ao templo da Deusa, onde se realizavam os ritos sagrados de fecundidade. Confundiu-se Lilith, denominada "A Mão de Innana", com a deusa que ela representava — que, ela própria, recebia às vezes o título de "Prostituta Sagrada".

O nome de Lilith tem uma filiação semítica e indo-europeia. A palavra suméria "lil", que reencontramos no nome do deus da atmosfera, Enlil, significa "vento", "ar" e "tempestade". É o vento ardente que, segundo a crença popular, punha em febre as mulheres logo depois do parto, matando-as assim com seus filhos. Lilith foi primitivamente considerada uma das grandes forças hostis da natureza, parte de um grupo de três demônios, um macho e duas fêmeas: o Lilu, a Lilithu e a Ardat Lili, esta última sendo a mulher do sedutor da luz, ou sedutor-fêmea da luz.

Lilith e Eva - Pintura de Yuri Klapouh
Lilith e Eva - Pintura de Yuri Klapouh

Existe um parentesco também entre Lilith e as palavras sumérias "lulti" (lascívia) e "lulu" (libertinagem). Lilith utiliza sua sedução (bela mulher de cabelos compridos) e sua sensualidade (bem animalesca) para fins destrutivos. Foi provavelmente durante o cativeiro da Babilônia que os judeus travaram conhecimento com esse demônio, ativo principalmente à noite; mas a ligação da palavra hebraica "lail" (noite) com o nome de Lilith foi reconhecida como improvável. No entanto, Lilith é muitas vezes representada sob os traços de uma ave noturna, em geral a coruja.

Duas outras linhas de pesquisa permitem ainda completar a descrição de Lilith pelas possíveis aproximações de seu nome com a raiz indo-europeia "la" (gritar, cantar), por um lado, e, por outro, com a palavra grega "law". De "la" deriva o sânscrito "lik" (lamber), assim como um grande número de palavras relacionadas com a língua e com os lábios: "Lippe" (alemão), "lippe" (francês), "labium" (latim); Lilith devora os filhos, e seus lábios e sua boca são sempre enfatizados nas obras literárias posteriores. A palavra "law", relacionada igualmente com as palavras "lux" (latim), "luz" (espanhol), "light" (inglês) e "licht" (alemão), dá a ideia de luz, ou, mais precisamente, de "ver com uma visão penetrante", "ver à noite", libertar-se da obscuridade". Ora, certos textos literários fazem Lilith intervir numa estranha busca iniciática conduzida pelo herói.

Os Textos Fundadores

Lilith é mencionada no Antigo Testamento, Livros dos Profetas, Isaías 34/14, poema apocalíptico sobre o fim de Edom que se transformou, graças à cólera de Jeová, em piche ardente, antes de se converter em deserto por onde mais ninguém passará, a não ser o pelicano, o ouriço, a coruja e o corvo, que farão desse caos sua morada, e

lá também descansará Lilith, achará um pouso para si em companhia dos gatos selvagens, das hienas, dos sátiros da víbora e dos abutres.

Pintura de Yuri Klapouh
Pintura de Yuri Klapouh

É da aproximação dessa passagem (o exílio de Lilith) com os dois relatos da criação do homem e da mulher por Jeová (capítulos I e II do Gênesis) que nasce o mito de Lilith nos tempos modernos: primeira mulher a ser criada, ela pronunciou o "nome inefável" que lhe deu as asas por meio das quais fugiu do jardim do Éden, onde abandonou Adão, com quem não se entendia. Ratificada pela perseguição de três anjos — Sinoi, Sinsinoi e Samengeloff, que, encontrando-a às margens do Mar Vermelho, em vão pediram-lhe que voltasse —, essa fuga converteu-se em expulsão. Desde esse dia, em resposta à ameaça proferida pelos três anjos (ela veria milhares de seus filhos mortos diariamente), e por desejo de vingança e ciúmes para com Eva, criada depois dela para substituí-la — criada não mais do barro, como Adão ou como Lilith (o que é apontado como sendo a causa do desentendimento entre Lilith e Adão), mas de uma costela deste último —, Lilith retorna ao mundo dos homens, descendentes de Adão e Eva, para fazer-lhes mal.

Os primeiros textos conhecidos que fazem menção a Lilith são textos que alertam contra o demônio Lilith, que oferecem esconjuros e receitas para proteger-se dele, e especialmente para afastá-lo de crianças e parturientes: o Testamento de Salomão (século III), o Talmud (século V) em que aparece também uma terceira classe de demônios com forma humana e dotados de asas: os "Lilinos", o Alfabeto de Ben Sira (século VII) em que se inscreve a versão mais popular e mais ingênua do mito, o Zohar (século XIII) que dá do mesmo a versão mais oculta, e aCabala (por volta de 1600), onde vemos Lilith unir-se a Sammael.

Lilith, a Revoltada

Pintura de Roberto Ferri
Pintura de Roberto Ferri

A literatura interessa-se sobretudo por Lilith, a revoltada, que, na afirmação de seu direito à liberdade e ao prazer, à igualdade em relação ao homem, perde a si própria, assim como perde aqueles que encontra. Mulher sensual e fatal, ela aspira também à supremacia e ao poder. É o que aparece num drama alemão datado de 1965: Jutta, que volta a falar de Lilith, contanto a história de sua neta, Jutta ou Johanna, que ficou famosa como a única mulher a ter-se tornado papisa. Essa história foi retomada no século XX por Lawrence Durrell num romance, A papisa Joana, e por Odile Ehret numa peça teatral encenada na Cartoucherie de Vincennes em Paris em 1983: A papisa ou a lenda da papisa Joana e de sua companheira Bartoleia. Claude Pasteur extraiu também um romance do mesmo tema, nessa época, intitulado A papisa (1983). Milton, no Paraíso Perdido, alude a Lilith em 1667 sob o nome de "feiticeira serpente". Heroína desesperada para os românticos, ela é descrita como mulher bela e sensual, de longos cabelos, que arrasta os outros consigo num turbilhão de infortúnios, desastre e morte. Seu aspecto hediondo, de "bebedora de sangue", é lembrado por Victor Hugo, que a confunde com Ísis em O fim de Satã (1886):

A filha de Satã, a grande mulher de sombra
Essa Lilith que chamam de Ísis nas margens do Nilo...
[...] Sou Lilith-ísis, a alma negra do mundo...

Dante-Gabriel-Rossetti, em Eden Bower e A Casa da Vida (1870-1881), faz de Lilith uma sereia tentadora, a eterna mulher fatal de charme irresistível e infernal, que, por seu mistério, provoca nos homens o desejo e o sentimento de aventura, e os conduz assim à sua perdição.

É desse modo que ela aparece sempre nas obras modernas e contemporâneas do final do século XIX e do século XX.

No romance de Marc Chadoume, Deus criou primeiro Lilith (1935), ela semeia a ruína, a morte e o desespero irremediável, antes de desaparecer, ela própria desesperada e sempre revoltada, ninguém sabe para onde; talvez tenha morrido, talvez não.

Pintura de Andrei Posea
Pintura de Andrei Posea

Lilith, Lulu, Lolita: Complexidade do Mito

A peça Lulu de Wedekind (conjunto que se compõe de O Espírito da Terra, 1893, e A Caixa de Pandora, 1901), adaptada para o cinema por Pabst (1928), retomada pela ópera de Berg e encenada na adaptação integral de Pierre Jean Jouve (1983) na Cartoucherie de Vincennes em 1985, oferece um retrato magistral e deslumbrante de Lilith, pondo em evidência toda a sua complexidade e os temas principais do mito. O que é espantoso é que aquela que se presume que tenha sido a inspiradora da obra de Wedekind, Lou-Andréas Salomé, foi justamente descrita por Freud como possuindo os traços e as características ligados também ao mito de Lilith.

Remy de Gourmont, em sua peça Lilith, de 1892, retoma toda a história tradicional da criação, tal como se acha descrita nos textos sagrados judaicos, envolvendo-a num tom humorístico, mescla de cinismo e erotismo, a que se associa uma visão pessimista da vida humana. Entretanto, não obstante o caráter de divertissement dessa obra, fica evidenciado que a ocorrência do mito de Lilith deixa entrever uma busca desmesurada, para o homem, da origem e do sentido da vida.

É o que aparece igualmente no romance de George Mac Donald, Lilith (1895), onde o herói, confrontado com Lilith, é projetado sobre o fio perigoso de uma longa e penosa iniciação, ao término da qual se reencontra solitário e inseguro.

Lilith - Estátua babilônica em terracota
Lilith - Estátua babilônica em terracota

Algo de semelhante acontece ao herói do romance Lolita de Nabokov (1955), ainda que a iniciação "às avessas" do herói, que o conduz à loucura destrutiva e à morte, apresente-se de maneira inteiramente diversa. Preso, esperando sua execução, é para a glória da "pequena Lilith" que o levou a essa situação, para lembrar-se dela e iludir a dor que nele provocou seu desaparecimento — Lolita morre dando à luz um filho — que Humbert-Humbert escreve sua história. Portanto, a arte inscreve-se como um signo brilhante no quadro do mito, pelo piscar de olhos cúmplice do escritor genial (Nabokov) que designa seu herói escrevendo, e afirma sua liberdade de "transcender como bem lhe apraz a herança nacional".

O aspecto "devoradora de filhos" de Lilith amplia-se até a condição de grande mãe destruidora que engole o mundo humano inteiro em sua grande boca de inconsciência, violência e morte.

Paralelos

Certas associações de Lilith com a Rainha de Sabá lembram sua aparência falsamente luminosa. Cumulando com seus dons o homem que se deixa prender por seus atrativos, ela o orienta para uma procura que o isola dos outros e o arrasta a um caminho que segue em sentido contrário à vida. Fritz Wittels, psicanalista austríaco, inventou em 1932 um "complexo (ou neurose) de Lilith", que tem a ver com isso.

O mito de Lilith tem por função afastar dela os homens, alertando-os do perigo que representa para eles.

Pintura de Jeszika Le Vye
Pintura de Jeszika Le Vye

Sua função principal, contudo, é alertar as mulheres: aquela que não segue a lei de Adão será rejeitada, eternamente insatisfeita e fonte de infelicidade. O final do conto de Anatole France, "A filha de Lilith", no livro Balthasar, faz dessa heroína um paralelo feminino do "Holandês Volante", que aspira ao destino de Eva e à condição de mortal para conhecer "a vida" e "o prazer".

No entanto, a evolução desse mito ao correr dos textos, e suas ressurgências repetidas nos tempos modernos, tendem a atrair nossa atenção de maneira particular para essa figura feminina — que representa também uma visão da vida e do mundo humanos, e da hierarquia que os governa — rejeitada pela sociedade dos homens e que deseja se fazer conhecer, "às avessas" se necessário, pelo mal que lhes faz.

A confusão de Lilith com Ísis, adorada como Grande Mãe que cura e salva, e com outros mitos vizinhos, de ambivalência benéfica-maléfica, fez-nos lembrar que seus efeitos sobre a vida humana dependem em grande parte da perspectiva em que os homens a inscrevem, e do olhar com que a encaram. A moda turística das excursões ao deserto não deixa de expressar isso: certos homens estão dispostos a ir visitar Lilith, se for o caso, no próprio terreno de seu exílio. É significativo que, de um lado, os revolucionários israelenses, e, de outro, as mulheres americanas, tenham utilizado o nome de Lilith como título de revistas, numa perspectiva de revolta e de liberdade. Reconhecida e reintegrada, dentro da comunidade humana, no respeito a seus talentos e a seus direitos, quem sabe ainda se tomará uma deusa benéfica e protetora, como aconteceu com Kishimojin, uma de suas irmãs na Índia, a qual, filha da Deusa Dragão e destruidora e raptora de crianças, converteu-se na deusa que ajuda nos partos depois que Buda lhe restituiu seu filho. É, de qualquer modo, uma perspectiva otimista quanto ao futuro, entre outras que o são menos...

Seja como for, Lilith nos fará lembrar sempre que as forças do mal respondem às forças da vida, e que tudo se equilibra — dia e noite, obscuridade e luz, feminino e masculino — sem que nenhum julgamento de valor ou relação de dominação possa ser atribuído a uma ou outra parte do mesmo todo, sob pena de acarretar consequências nefastas para este. Ela também tenta nos dizer que há sempre algo a descobrir, com resultados benéficos para o conjunto, em qualquer parte rejeitada da criação, que, de muito longe, continua a acenar para nós.


maca 2

Fonte:

COUCHAUX, Brigitte. Lilith. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2005.

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