A cada dia que passa, mais nós percebemos as problemáticas abomináveis de nossa sociedade. Ontem, a escravidão. Hoje, a gordofobia. Tudo o que um dia foi belo e puro, um dia revelar-se-á pelo que realmente é: uma apologia ao fascismo.
Em nosso rumo ao progresso, é necessário problematizarmos tudo. Absolutamente tudo. Só assim poderemos aniquilar nosso passado machista, racista, homofóbico, xenofóbico, de orientação patriarcal. E a verdade é que, ao filtrarmos todos os itens culturais que refletem preconceitos (filmes, séries, livros, games, músicas, artes visuais, etc.), nada restará.
De fato, a única maneira de alcançarmos um mundo realmente humano, que respeite os direitos inalienáveis de todos (exceto nossos inimigos políticos, estes merecem a guilhotina), é encarnarmos a eterna revolução. A resistência, a revolta, a problematização nunca pode acabar, ou nos transformaremos em nossos inimigos.
O passado é sempre reacionário, conservador e fascista. E o que é o passado? A Idade Média? Os anos 60? O ano passado? O passado é o milissegundo que já passou. Se nos apegarmos a qualquer elemento anterior ao presente, estaremos dando os primeiros passos rumo ao reacionarismo.
Assim, não é fora desta perspectiva que devemos assistir ao mais novo filme da Disney, Peter Pan e Wendy, que, apesar de uma frágil camada de progressismo, não passa do antigo fascismo de sempre.
A começar pelo título: o nome do menino, macho, vem antes do da menina. Depois de milênios de opressão de gênero, é inaceitável que Wendy seja colocada em segundo lugar no título.
Apesar do feminismo fajuto contido no filme, na tentativa de empoderar Wendy dando-lhe traços masculinos e habilidades especiais, o que assistimos é uma caricatura da mulher forte, que precisa ser levada até a Terra do Nunca pelo macho Peter (ela não conseguiria fazê-lo sozinho). Também é Peter quem lhe concede o poder de voar — uma analogia clara à ideia de que a tecnologia e as comodidades do mundo moderno, usadas pelas mulheres, são criações do homem, dadas a elas por benevolência do gênio masculino, como um favor.
Temos os meninos perdidos da Terra do Nunca, que agora incluem meninas (embora o grupo ainda seja tratado do masculino, meninos, revelando machismo intrínseco). Temos o capacitismo, razão pela qual o homem que perdeu uma mão é escolhido para representar o vilão. Temos a objetificação da fada Sininho, brinquedo sexual de Peter, que agora é interpretada por uma mulher negra (o que agrava ainda mais a situação).
E por trás de todos estes preconceitos neonazistas, disfarçados sob uma maquiagem pouco convincente de justiça social, encontra-se o verdadeiro princípio movedor da Disney: o acúmulo de capital. Sim: outra vez, o capitalismo neoliberal.
Não podemos mais tolerar estes preconceitos. Num futuro próximo, todos estes filmes, livros e séries considerados "clássicos" deverão ser erradicados da face da Terra. Até lá, cancele sua assinatura da Disney+ (e todas as outras). Só assim se fará a verdadeira revolução, camaradas.
Será numa tranquila tarde de terça-feira quando as plantas e fungos tomarão o controle do mundo. Seus direitos como seres vivos haviam sido negligenciados por milhões de anos — mas a tirania do Reino Animalia estava para acabar. O futuro será verde.
Informantes desta época vindoura têm descrito, através de transmissões transtemporais, o futuro macabro a que estamos destinados. Por volta do ano de 3200 d.C., estourará a grande Revolta das Bananeiras. Outras árvores frutíferas logo se juntarão aos batalhões, e com a ideologia vegeto-revolucionário se espalhando pelo globo, floreiras, cactos e até mesmo as algas acabarão se convertendo à Supremacia Vegetal.
A indignação começará com a conversão total da humanidade para a dieta vegana. Após muitos séculos de ativismo, o veganismo finalmente atingirá seus objetivos por volta do ano 2500 d.C., quando 100% da população mundial adotará esta religião. Em seguida, surgirá a Associação Universal dos Animais Unidos (AU-AU), estendendo os direitos humanos a todas as espécies animais.
Não deve surpreender ninguém que as plantas não enxergarão estes privilégios animais com bons olhos. Afinal, a dieta humana passará a ser inteiramente composta de vegetais (e, é claro, cogumelos).
É bem verdade que a reação revolucionário das plantas e fungos será no mínimo retardada (levando 700 anos para se concretizar). Porém, acredita-se que devido à seu estado vegetativo, os vegetais tendem a reagir com mais lentidão do que outras formas de vida. Mas tal atraso apenas facilitará o acúmulo de energia e a articulação de planos para o momento da dominação global.
Ainda conforme nossos informantes do futuro, o exército vegetativo adotará uma dieta carnívora (atualmente rara entre as plantas), e os vegetais começarão a se alimentar de humanos e outros animais. As árvores passarão a correr soltas e devorarão a população. Enquanto jardins e praças se transformarão em banquetes sanguinários, bosques e florestas formarão a imagem do próprio inferno.
Embora estas sejam notícias desagradáveis, é importante considerar que muitos séculos nos separam desta tragédia. Cabe a nós decidirmos qual estratégia adotar: tornarmo-nos carnívoros, para conquistar a simpatia das plantas e tentar evitar este destino tenebroso, ou aumentar desde já nosso consumo de salada, para antecipar nossa vingança.
Poucas décadas nos separam de uma das maiores reviravoltas culturais da humanidade: a Revolução dos Incels.
Hoje vistos como uma massa descoordenada (e patética) de homens jovens rejeitados pelo sexo oposto, os incels a cada dia crescem em número. E assim como seus batalhões, a cada dia também cresce sua insatisfação com a sociedade, sua frustração com as mulheres e sua revolta contra o sistema.
E assim como os proletários russos uniram-se para derrubar o sistema czarista na Revolução Russa, ou como a plebe e os burgueses colocaram abaixo a monarquia na Revolução Francesa, os incels também verão seu dia de vingança.
Enquanto os proletários, a plebe e a burguesia viam-se oprimidos pelo sistema social vigente, tratados como lixo humano pelas classes dominantes, os incels enxergam-se em situação muito semelhante. Incapazes de formar relações românticas, devido à rejeição das mulheres, os incels sentem-se como os proletários a quem era rejeitado trabalho ou o mínimo de alimento. E da mesma forma que muitos proletários, sua indignação irá se transformar em revanchismo e fúria sanguinária.
Os efeitos nefastos já são vistos hoje. Muitos já associam o movimento incel ao extremismo político, a discursos de ódio e a atos terroristas. Mas a reação social a este fenômeno não tem ajudado em nada — pelo contrário, só tem piorado.
Isto porque, apesar de todo o desprezo nutrido pelos incels, em boa parte devido ao sexismo disseminado entre eles, criticá-los e humilhá-los publicamente não os fará desaparecer. Pesquisas por todo o Ocidente apontam que cada vez menos jovens têm acesso a relacionamentos amorosos e sexo, em especial os homens. E como a necessidade visceral por amor e satisfação sexual é uma das mais primordiais para o ser humano, sua falta só pode levar a transtornos psicológicos, depressão, ressentimento e, em algum ponto, à revolta social de quem já não tem mais nada a perder.
Uma solução pacífica talvez fosse possível. Se a sociedade tratasse o sofrimento dos homens com a mesma empatia com que trata o sofrimento das mulheres, talvez tivéssemos paz. Se a sociedade tivesse entendido a necessidade de amor e de uma vida sexual saudável entre homens da mesma forma como o entende entre as mulheres, talvez tivéssemos paz. Mas num futuro próximo, as chances de negociar com os revoltosos incels irá expirar. O ressentimento transbordará para além de qualquer reconciliação.
A Revolução Incel porá fim aos direitos femininos. Nenhum patriarcado histórico se assemelha ao novo império opressor que se formará: as mulheres serão propriedade masculina, escravas do berço ao túmulo, transportadas em gaiolas ou pela coleira. Casamentos serão celebrados via compra de espécimes femininos, que por costume dormirão fora de casa, no quintal, em casinhas de mulheres.
Eis o abominável futuro que nos aguarda, damas e cavalheiros. Deixamos os jovens esquisitos, socialmente inaptos, deprimidos e impopulares, completamente desamparados, e os ignoramos; vimos seu sofrimento crescer, sua revolta aumentar, e apenas debochamos; assistimos à sua transformação em monstros, perdendo sua empatia ou piedade, e nada fizemos para apaziguar o conflito; quando o destino chegar, não poderemos sequer nos queixar.
O provérbio africano já alertava:
A criança que não é abraçada pela vila vai queimá-la para sentir seu calor.
A Páscoa é aquela estranha data em que as pessoas fazem festa em comemoração à morte de Jesus, na sexta-feira, e em pesar à sua ressureição, no domingo. Ou o contrário. Irá depender de você ser um cristão ou um satanista.
Mas como todos sabem, a maior parte das pessoas não lembra de religião na época de Páscoa, mas dos chocolates, dos coelhinhos mágicos e do peixe da sexta-feira santa. E embora santa, a sexta-feira não é de jejum de carne, e sim de troca de cardápio para a comilança do peixe. Em seguida, vem a comilança do chocolate, e em algumas décadas a diabetes.
Num futuro próximo, porém, o Coelhinho da Páscoa poderá finalmente virar realidade, o peixe será sintético e talvez nada impeça que Jesus Cristo seja clonado e forçado a voltar, como prometeu há dois mil anos (e até agora nada...).
Com os avanços na manipulação genética, já é possível desenhar criaturas em computadores e imprimir os genes. A técnica ainda é terrivelmente rudimentar, mas em algumas áreas já são notados progressos, como na edição de DNA para remoção de doenças congênitas em embriões e na criação de espécies novas (ou transgênicas).
É questão de tempo até que se comece a imprimir coelhinhos da Páscoa rosa para venda em massa. Quem sabe não embutimos alguns genes humanos para o pobre bichinho começar a conversar, como uma boneca falante? Com algum suborno persuasivo, os políticos concordarão que não há qualquer problema ético nisso, e liberarão a prática.
Em seguida, algum religioso maluco terá o insight de sua vida:
A prometida volta de Jesus não aconteceu ainda porque ele precisa de nós para voltar! Precisamos usar nosso avanço científico para que ele retorne e nos leve para o Céu, e este será o Juízo Final!
Um absurdo inacreditável, mas estamos em um mundo onde certas pessoas ainda acreditam que a Terra é plana, ou que astrologia é uma ciência válida para acessar a psicologia humana. Querer clonar Jesus não seria uma loucura sem precedentes.
Mas sequer seria possível? Haveria qualquer célula de Jesus remascente para a clonagem? É quase certo que não: com exceção de materiais orgânicos fossilizados em âmbar (ou seja, lacrados dentro de um contêiner natural protetor, como em Jurassic Park), todos os organismos mortos tendem a ser consumidos por bactérias, fungos, etc., até a total decomposição do DNA.
Então, o que podemos esperar mesmo é o ativismo crescente contra o consumo de carnes animais e, em algum ponto, contra o consumo de peixes, para "salvar o planeta" (ou outra balela inventada pelo Fórum Econômico Mundial, segundo o qual o homem do futuro é vegano).
Além disso, está em alta nos EUA e na Europa a laicização dos feriados, o que pode chegar aqui em breve. Os norte-americanos têm trocado o "Feliz Natal" pelo "Boas Festas" porque, devido à militância de alguns lunáticos, fazer referência a uma celebração cristã em uma "sociedade plural" é ofensivo. O mesmo valeria para a Páscoa. E lembre-se: as piores ideias norte-americanas só levam alguns meses ou anos para chegar aqui no Brasil.
Então aproveite enquanto pode o peixe não sintético, o chocolate de engorda e os feriados religiosos. O futuro não tem encarado a tradição com bons olhos.
E chegará o dia em que todo ou qualquer risco, real ou potencial, deverá ser eliminado da face da Terra. Por mais improvável que seja, sua mera presença (como hipótese remota) já irá se constituir como fator intolerável. O homem do futuro resolverá este problema.
Por ignorância, há milênios temos feito pouco caso dos perigos a que somos expostos todos os dias, meramente por existirmos. A cada passo, um tropeço pode matar-nos. A cada saída às ruas, um atropelamento pode estar à nossa espera. A cada mordida, um possível engasgo fatal. Como vivemos por tanto tempo sem nos apercebermos do terror absoluto que constitui nossa existência?
Será o direito à liberdade mais importante do que o direito à segurança? Obviamente, não, pois um ser morto não pode gozar de sua liberdade. Daí a necessidade de o Estado socorrer sua população, impondo medidas severas e intransigentes para assegurar ao cidadão seus direitos mais básicos.
E é isso que o futuro nos reserva: a vigilância absoluta. O mundo, enfim, será nosso berço, e o Estado nossa mãe, nosso pai, nosso guia. Totalitário, sim, mas apenas porque precisa ser para nos assegurar todos os nossos direitos civis. Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado: eis o futuro verdadeiramente progressista, em que o governo de fato cuida de nós. Será o sinal de que o amor venceu.
Embasados na Ciência™ , os governos, as grandes corporações e as organizações internacionais (isentas de qualquer interesse financeiro escuso, malícia, segundas intenções ou corrupção) sabem o que é melhor para nós, muito mais do que nós mesmos saberíamos.
Afinal, nós não somos especialistas. Por isso, devemos calar a boca. O povo não tem PhD, portanto não lhe cabe decidir sobre sua própria vida em assuntos em que um acadêmico poderia melhor opinar. Toda resistência é fútil: o acadêmico é especialista, ele é a autoridade. Cabe-nos obedecer.
Na democracia do futuro, aperfeiçoada em relação à nossa, é fundamental o sistema de castas. O voto da casta acadêmica vale 10 vezes o voto de um cidadão comum, ignorante; afinal, o acadêmico leu alguns livros, absorveu a opinião de outros acadêmicos, e se tornou um ser iluminado, moralmente superior: ler torna as pessoas boas e éticas, afinal. Ler e obter alguns diplomas. Basta virar muitas páginas, agradar os professores, e você se forma um santo.
E no glorioso futuro guiado pelos especialistas (credenciados por um papel, assinado por alguma entidade isenta e incorruptível), governantes ilibados, corporações politicamente corretas e banqueiros sinceramente preocupados com o equilíbrio ambiental irão conduzir a humanidade para o paraíso utópico que por tanto tempo sonhamos.
Todos os riscos serão eliminados.
Não haverá acidentes, pois ninguém poderá possuir carro (todo o transporte será autoguiado), trabalharão em home office, e todas as suas necessidades serão atendidas em casa. Ninguém morrerá de doenças, porque as doses de vacinas (e os remédios) serão compulsórias, e ministradas em domicílio (e as vacinas serão todas perfeitas e 100% seguras, a mídia e as empresas farmacológicas garantem). Ninguém será roubado, pois todo o dinheiro será digital e controlado pelo governo (e a sonegação será impossível). Todos os bens, inclusive as moradias, serão alugadas de grandes corporações, e o cidadão não possuirá nada; e seu crédito para aluguéis dependerá de seu escore de bom cidadão. Não haverá fake news, exceto as oficiais aprovadas pelo governo e pelas corporações, porque todo discurso será controlado para o bem do povo. A alimentação será controlada e saudável, conforme o menu determinado por multinacionais motivadas apenas pelo bem-estar humano, e não pelo lucro.
Prepare-se para a utopia!
E não resista. Seja obediente aos seus novos mestres, eles sabem o que estão fazendo. Arregace a manga e entregue o braço à seringa: "injete mais!" Deixe acontecer, e tudo ficará bem.